Anatomia do ócio, de R. Leontino Filho



Por Pedro Fernandes




As discussões sobre o texto poético quase sempre partem de um jogo de relações que dissociam, às vezes por oposição e exclusão, os elementos que distinguem a prosa narrativa. O que podemos chamar de submissão do poema a tais limites deve-se a um ponto impossível de deixá-lo de fora quando tocamos no assunto: o amplo lugar alcançado pela prosa e sua penetração no cotidiano comum faz este gênero ocupar a posição de partida ou grade de leitura para a compreensão da poesia. Esta, por sua vez, ampliou, no tempo dos exageros, sua condição de à margem. Dizemos isso, evidentemente, porque se considerarmos, no âmbito da história da literatura (e mesmo de sua teoria), sempre encontramos a poesia como a mais insubmissa das formas e consequente a que deve, por sua condição, prevalecer no lugar-qualquer; na Poética, Aristóteles não lhe dedica interesse e elege a tragédia como o gênero mais significativo no âmbito das criações com a palavra, enquanto na República, Platão prefere deixar de fora os poetas. Nisso tudo, a poesia, porque nunca terá deixado sua condição determinante, é sempre território de morada da palavra. Cumpre, portanto, a mais delicada das forças literárias: a criação. Isto é o que nos levará a compreender que todo império da prosa não foi suficiente para um rebaixamento da poesia e mesmo, agora, quando alguns dos protocolos de existência da prosa passam por algum agravo, é à poesia que se recorre.

É necessário ressalvar que as discussões aqui apresentadas respondem por uma espécie de poesia, a lírica. Ao tomar os elementos da narrativa como a grade de leitura para sua compreensão e tê-los ora como oposição ora exclusão dos elementos desta espécie o que se constata é uma óbvia não correspondência. O que não pode figurar, de forma alguma, como uma verdade absoluta, se considerarmos a contínua tarefa do poeta como a de subversão da rigidez das formas. Entretanto, o princípio determinante da poesia, a poiesis, ainda que se modifique as estratégias de criação, radicalize-se as formas de expressão, é a chama perene. Nesse sentido, se parece didático partir da prosa narrativa para a compreensão da poesia, não será útil restringir-se a um mero jogo comparativo.

Tomemos o tempo. Na narrativa, sua função está quase sempre submissa à mimese e à verossimilhança, por mais diversamente que o escritor manipule tal dimensão. O que ocorre à poesia é que o tempo, desapegado dessas duas determinantes, sobretudo da última, é simultaneamente o lugar de situação do poeta e da poesia. Mesmo que assuma o lugar de tema, sua posição antecede e se materializa simultaneamente na ordem do poema. Assim, se o escritor pode simular o tempo ou nele se localiza mesmo como simulação, para o poeta o tempo é sempre experiência e essa não se assume como um todo determinado por um segmento, porque transubjetivo, impessoal e, logo, atemporal. Em matéria de poesia, o tempo é invólucro, portanto, a medida própria do poema e para sua criação. Pode-se mesmo ilustrar essa tese com os versos de um poema de Anatomia do ócio – estão no terceiro momento do poema “Anatomia do nome”, espécie de síntese de todo o livro: “Na fissura do tempo / as mãos refinam o dia / – a flor marítima da malícia / afugenta a margem branca do idioma”.

Este livro de R. Leontino Filho é, nesse sentido, uma obra paradigmática. Sem tornar o tempo em temática uni ou pluridimensional, este se constitui no embalo do próprio poeta para a realização da obra. Cronologicamente, terá levado mais de duas décadas para sua publicação, se considerarmos que o seu último título de poesia, Sagrações do meio, viu a público em 1993. E, a experiência do poeta com o tempo se verifica na unidade do livro, no primor com que se desenham os poemas, materiais integralmente lapidados. Nada sobra. Nada falta. E o leitor não deixará de sentir, por entre o silêncio da leitura, no vagar com que é intimado a ler o poema (porque não só a forma assim pede, mas também a estrutura), a parcimônia e o zelo dedicados pelo poeta no que dentro e fora da obra se mostra como um desafio ao tempo hodierno, naturalmente saturado de excessos. A justeza da palavra, que parece a qualidade mais significativa à poesia do nosso tempo, prova-se no exercício vocabular criterioso, no verso bem desenhado, alguns dos fatores que obrigam o leitor a, ele próprio, precisar uma dilatação do tempo para a leitura do poema.

Como este título sugere, o leitor encontra o poeta enredado naquele universo que o melhor lhe serve à criação; ao falarmos sobre a necessária dilatação do tempo para a fruição da poesia – qualidade inerente à própria condição deste gênero – dizemos que o ócio é revelado aqui não enquanto matéria, mas enquanto lugar de estar e de reaproximação do ouvido com as vozes mais irreconhecíveis na turbulência comum de nossos dias. É isto sua anatomia. A poesia, visível da tessitura das palavras é a quietação, o vagar do poeta; sua relação com a palavra e o poema, a tessitura, sua anatomia, aparelho construído pelas mãos de quem desafia o tempo, essa entidade incapaz de perdoar a existência de qualquer coisa.

Dessas duas dimensões, fiquemos com esta relação do poeta com a palavra, a medida primeira e o fim do poema; a única possibilidade de, se não total (e nunca saberemos), de questionamento do tempo. Não é que Anatomia do ócio caia na repetição desnecessária da metapoesia. Se alguma vez ou outra esta condição já agora transformada em fundamental para a determinação do literário (o que na teoria se chama por autorreflexão), R. Leontino Filho integra-se mais ao fluxo das relações do poeta com a diversidade de materiais que o rodeiam, incluindo o poema, é para apontar para outra visão ou lugar. Isto é, a metapoesia como espécie de acesso ao não presente, àquilo que apenas pode ser experimentado pela subjetividade. Provam isso quase todos os poemas da última parte do livro, “Meninez das palavras”. Quer dizer, a poesia de R. Leontino Filho, é sempre um ponto de acesso a.

Já agora, próximos do fim destas notas, reiteremos sobre outro tópico, para situar melhor leitor sobre essa condição da poesia do poeta de Cidade íntima; trata-se de um tópico que com a metapoesia se constitui entre as recorrências de sua poética: o tópico do amor. Em Anatomia do ócio, ele não é nada de idealização platônica, mas pulsão e corporeidade; multiplica-se em suas forças adjacentes: o desejo, a latência erótica do corpo, a paixão, o gozo, o cio, o frêmito. A partir desse campo semântico diverso, o poeta acessa o mundo e as delicadezas do corriqueiro. A palavra então se torna objeto transmutado em imagem e, por sua vez, toma contorno metafísico, tendendo à pulsão onírica ou presentificação desse vácuo imperceptível entre os signos e os sentidos. Da mesma a variedade de rememorações corporais, afetivas, estas sempre dupla dimensão, da memória de si que chega quase-sempre atravessada continuamente pela memória das leituras.

Justifica esse último caso, a insistência do poeta em tornar a dedicatória um elemento recorrente na sua obra, quase titular em boa parte dos poemas, apontando-se claramente que a quem se dedica pode ter sido o elemento-motivador para o despertar do que se desenha no poema. Ou mesmo, a marcação epigráfica que ilumina cada um dos cinco segmentos que constituem o livro. Isto é, ao diálogo metapoético, o poeta prefere certo dialogismo, abrindo a poesia para outra condição: deixar de olhar a si, de ser forma narcísica, para servir de salto para. A revelação do poema se constitui, assim, por vezes, um salto para outro poema. O poeta é um ser enredado nesse grande labirinto de vozes. E mesmo a criação, já destituída da ordem dos acasos, é produto dialógico. No diálogo entre textos revelado ou velado, tal como se passa em Jorge Luis Borges, o que se refunda é a palavra enquanto princípio e fim do poema, isso que o faz objeto autônomo, impossível, portanto, de prendê-lo a uma órbita determinada.

Singular, nesse sentido, é o longo poema que finaliza Anatomia do ócio: “De (não) poder ser palavra”. Marcado com duas possibilidades de leitura, não dicotômicas mas dialéticas, o poeta finda por construir um ensaio no qual retoma o duplo poder da palavra. Dele, ampliamos a compreensão de que a palavra não é apenas o princípio e o fim do poema – é o princípio e o fim do homem, das coisas e do mundo. E porque nada reside fora dos seus limites, todos, não apenas o poeta, estão condenados a ela. Nesse jogo, o poeta finda por alcançar uma compreensão aparentemente tautológica – mesmo a palavra está condenada à palavra. Aparentemente porque, essa tautologia aponta algumas direções: uma delas se alimenta da impossibilidade de determinação sobre o que ultrapassa a ordem da palavra, ou o próprio mistério de existir. Encalacrado nesse labirinto, o poema finda por revelar a condição do próprio livro. Fomos levados como se estivéssemos numa brincadeira de o que vem antes do depois ao vazio absoluto. Eis revelada a própria anatomia do ócio: criador e destruidor de todas as formas.


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