Adeus às armas, de Ernest Hemingway
Por Pedro Belo Clara
É claro para todos, inclusive
aos leitores menos experimentados nos mais dilectos frutos do universo
literário, que trazemos hoje à discussão, traçada à guisa de conselho de
leitura, um dos maiores autores de sempre – e com ele uma das suas principais
obras. Bem, aceitamos que este último facto poderá não ser conhecido por todos
os leitores em iniciação, mas negar os louros a uma das mais proeminentes
figuras da afamada “Geração Perdida”, tal como a nomeou Gertrude Stein, ao
Pulitzer de 1953 e Nobel no ano seguinte, será acto diante do qual nenhuma mão
quererá esboçar um movimento negativo. Não são os prémios que fazem o autor,
obviamente, por isso acresce em seu benefício a tremenda popularidade da obra,
várias vezes transposta para o cinema (como o trabalho que hoje seleccionámos),
e também uma por vezes rara apreciação consensual da crítica competente sobre o
lugar de Hemingway entre as estrelas maiores do vasto firmamento da literatura
mundial.
É importante desde já sublinhar
que o trabalho jornalístico que desempenhou em dado momento da sua vida em
muito moldou, um pouco como aconteceu com John Steinbeck, por exemplo, a
expressão do traço de Ernest Hemingway. Competente contador de histórias,
destaca-se quase sempre na sua escrita a implacabilidade dos factos expostos
com grande transparência, o que em cada narrativa traz uma extraordinária
dimensão de realidade. Mas, a bem da verdade, nem seria necessário tal
artifício, isto é, o de mascarar ficção como realidade, pois a base de trabalho
de Hemingway foi por várias ocasiões a sua própria experiência – como este
livro exemplifica.
Fortemente
autobiográfico, embora moldado à imaginação do autor, adquiriu a justa
classificação de sério testemunho dum período tão conturbado da história da
humanidade como o foi o da 1ª Grande Guerra – para muitos, até, o melhor
romance americano que resultou desse trágico acontecimento. Ademais, sobressai
na escrita de Hemingway uma notável clareza de expressão e, como os seus leitores
mais atentos decerto concordarão, a elevação do diálogo a um nível de
manifestação bastante puro, por ser simples e abundante, até tão banal, por
vezes, como qualquer conversa de café ou breve diálogo de amigos que se cruzam
numa certa esquina das suas manhãs. Dada tal valência, com extrema facilidade o
leitor se permite captar e sem reservas transportar para o palco da acção
narrativa, convivendo de perto com cada personagem e com a realidade onde se
encontram. Tal virtude permite o aflorar duma intimidade rara na literatura,
talvez só ao alcance dos grandes mestres.
Sobre a história em si, um digno
exemplo da corrente realista e seus principais preceitos, dividida em cinco
secções com contagem de capítulos ininterrupta, tem como personagem principal
Frederic Henry, um americano que estudava arquitectura em Roma. Com o deflagrar
do conflito, alista-se no exército italiano e torna-se, tal como Hemingway, um condutor
de ambulâncias. Apesar duma aparente protecção que o cargo poderá sugerir, tal
era até dotado de sérios riscos, dada a exigência de estar presente na frente
das batalhas por forma a poder recolher os feridos que se iam verificando. Uma
vez mais, assim como o autor Frederic é ferido com gravidade num momento de
puro lazer. Recebendo prontamente o tratamento indispensável, é logo depois
transportado para a cidade de Milão – onde serenamente iniciará uma lenta
recuperação.
É nesta cidade que se desenvolve
seriamente o seu romance com uma enfermeira inglesa de passado turbulento,
iniciado tempos atrás, durante a sua estadia nas redondezas de Udine, no norte
de Itália, onde as tropas de Victor Emmanuel III combatiam com grande
dificuldade as ferozes ofensivas dos austríacos. Começa assim a desenhar-se um
contraste interessante entre os óbvios horrores da guerra e um mundo pessoal
que os jovens amantes haviam começado a construir, uma espécie de universo
paralelo como defesa contra a cor naturalmente cinzenta que reinava sobre os
dias do grande conflito.
Note-se que
também Hemingway se apaixonou por uma enfermeira durante os seus tempos de
soldado. No caso, quem dele cuidou durante a recuperação do seu grave ferimento:
uma americana de origem alemã, Agnes von Kurowsky, que chegou inclusivamente a
estar noiva do então jovem Hemingway, embora tal romance tenha conhecido um
desenlace totalmente diferente daquele que o livro oferece.
Neste
momento, a narrativa tende a tombar num clima mais fastidioso para o leitor,
principalmente se este estiver ávido de aventura. Os tempos vividos nesse microclima
ilusório de romance, com os estoiros dos morteiros e os ecos das ofensivas
inimigas em plano muito longínquo, são lentos e pródigos em diálogos demorados
e encontros nocturnos amorosos, sem grande avanço para o intuito global da
obra. Compreende-se a sua utilização, é claro, apenas se avisa que neste
momento o interesse de alguns leitores poderá decair – como aliás acontecerá
noutras ocasiões, pois ainda que seja um livro de guerra ele não se foca
totalmente no conflito em si, na frente absoluta da batalha, não vive de
explosões, tiroteios, do chapinhar em poças de sangue misturadas com a lama
convocada pelas insistentes chuvas, gritos de feridos desamparados e agudos
esgares de moribundos – desse aspecto do conflito estará o leitor resguardado,
o que poderá desiludir os mais afoitos e os adeptos de ritmos e sensações mais
fortes.
Por intervenção duma enfermeira
que nunca teve Frederic nas suas mais cintilantes graças, ora não fosse um
jovem tenente com uma incorrigível inclinação para o álcool (assim como
Hemingway, convenhamos), a licença de recuperação do apaixonado tenente é
encurtada e de novo vê-se na frente de batalha, no norte do país. Já recuperado
dos seus ferimentos, graças à competente intervenção dum cirurgião conceituado,
Frederic regressa aos assombros do conflito e observa em primeira mão o quanto
em poucos meses mudou. É um facto natural, em tempo de guerra: a mudança de
tudo é rápida e chega sem qualquer aviso. Os seus companheiros mais próximos
estão diferentes, o peso do conflito faz-se cada vez mais sentir em todos eles,
e o próprio Frederic acha-se nesse momento um outro homem, longe do seu amor e
do filho que começa a crescer no ventre de sua mãe.
Mas a estadia a norte
revelar-se-á breve. Alemães e austríacos ameaçam o território e uma retirada
impõe-se. A partir de aqui a narrativa retoma um ritmo mais intenso em lento
crescendo, e assim mais interessante, decerto, à tal categoria de leitores que
atrás citámos de modo geral. Tentando escapar ao epíteto de “alvo fácil” em
situação de bombardeamento, dado que a evacuação se fará, a dada altura, de
modo incrivelmente demorado, com estradas em engarrafamento por quilómetros sem
fim, Frederic e os seus companheiros condutores decidem tomar um atalho. Dessa
decisão a história abarcará na sua essência situações de deserção e lealdade,
morte e sobrevivência – peripécias das quais o nosso bravo herói não se verá
salvo.
Após árduas provações, Frederic
decide desistir da guerra. Os oficiais do exército começam a ser perseguidos e executados,
os soldados aclamam o fim da guerra imediato e, sem grande escapatória,
Frederic decide regressar a Milão e aos braços de Catherine, a sua amada. Com a
ajuda preciosa de amigos de ocasião, Frederic e Catherine, com uma gravidez
cada vez mais adiantada, conseguem atravessar de noite o grande lago, que se
deduz ser o Como, e assim entrar clandestinamente na Suíça. O casal é bem
sucedido na tarefa, e conhecerá em breve os mais tranquilos e belos dias da sua
atribulada existência.
Mas todo o sonho termina com os
primeiros e mais frios raios da manhã, por mais idílico que ao sonhador se
tenha apresentado. A tragédia da guerra poderá ter ficado de vez para trás, não
obstante a marca que sempre deixa naqueles que de perto a conhecem, mas uma
outra não tardará a chegar – ela que páginas antes é já preconizada num leve
ritmo de triste profecia. Por respeito ao leitor que ainda não leu a obra, e
sendo este texto não mais que uma sugestão de leitura exposta em modo de
conversa sadia, é este o momento em que colocaremos o nosso ponto final.
Um pouco à semelhança do que
acontece num dos seus maiores trabalhos, O velho e o mar (1952), também aqui
Hemingway coloca a questão da enorme impotência do Homem diante da natureza e
suas forças, ou ainda, se quisermos, a fatalidade do destino humano,
inevitavelmente marcado pela morte – sendo apenas uma questão de quando, como e
onde. E é nesta atmosfera que o derradeiro contraste oferecido pelo autor se
eleva, não só entre a vontade do Homem e a da Vida em si, mas igualmente a
ideia de que não é necessária uma guerra de proporções mundiais para a tragédia
tocar a existência humana – o que, por isso mesmo, só deverá sublinhar a sua
tremenda inutilidade. Os mais filosóficos poderão ainda observar a tragédia
como um palanque para um entendimento mais profundo sobre a vida e o mundo; em
suma, a existência humana na plenitude da sua condição. O autor não desenvolve
esse tópico, mas pelo que não escreve abre-se a porta à reflexão: pode a vida,
afinal, ser apenas o que aparenta: um palco imenso manchado de conflito e
tragédia? Uma história de sobrevivência atribulada ou algo mais, sendo tais
pesares apenas o impulso para um
mergulho fundo e esclarecedor no coração da existência?
Não se estranhará, pelo que se
expôs, que Adeus às armas, que deve o seu título a um poema inglês do século
XVI, tenha sido o primeiro grande sucesso de Ernest Hemingway. Um livro que,
afinal, consegue combinar os elementos mais apetecíveis num bom romance: amor,
amizade, lealdade, traição, provação e tragédia. Mesmo optando por revelar uma
faceta trágica, tão natural na vida comum, trata-se sem dúvida dum romance de grande
competência, publicado quando o autor contava apenas trinta anos de idade
(1929), permitindo já o antever duma carreira brilhante – o que aliás se
verificaria. Embora no seu global a obra pareça ainda algo longe da força genial
e até da delicada poesia do já citado O velho e o mar, mas sobretudo de Por quem os sinos dobram (1940), não hesitamos em confirmá-la como uma das
indispensáveis em qualquer boa biblioteca.
"Quando as
pessoas defrontam o mundo com tanta coragem, o mundo só pode quebrá-las
matando-as, e por isso, é claro, mata-as. O mundo quebra toda a gente, e depois
muitos ficam mais fortes no lugar da fractura. Mas àqueles que não consegue
quebrar, mata-os. Mata os muito bons, os muito doces, os muito corajosos,
imparcialmente. Se não sois desses, também vos há de matar, mas nesse caso não
será particularmente apressado".
Comentários
Beijos.
O meu agradecimento pelos vossos comentários.
Abraços.