Uma tentativa de descobrir as leis da literatura
Por Joshua
Rothman
Ilustração: Pierre di Sciullo |
A crítica
literária deve ser uma arte ou uma ciência? Um tanto considerável depende da
resposta a essa pergunta. Se você é um graduando em Língua Inglesa, o que você
deve estudar: um idiossincrático grupo de escritores que por acaso te
interessam (arte) ou história e teoria literárias (ciência)? Se você é um
professor de Literatura Inglesa, como deveria aproveitar seu tempo: produzindo
“leituras” de obras literárias que lhe são importantes (arte) ou buscando
padrões que moldam formas e padrões literários inteiros (ciência)? Diante dessa
questão, a maioria das pessoas tenta dividir a diferença: se você se conecta à
crítica como uma arte, tome algumas aulas teóricas; se você se conecta a ela
como ciência, encare bravamente algumas leituras cerradas (O artigo de Louis Menand sobre Paul de Man, na New Yorker dessa semana, cita o crítico
Peter Brooks, que lembra como de Man podia “sentar em frente a um texto e
arrancar coisas mágicas dele”). Quase ninguém, enquanto isso, quer responder a
questão em definitivo, pois, para um crítico, alternar entre os temperamentos
artístico e literário é divertido – é como comutar entre o mar e o sol na
praia.
Franco
Moretti, um professor de Stanford, cuja coleção de ensaios Distant Reading1
(Verso, 2013) acabou de ganhar o National Book Critics Circle Award na
categoria crítica, fascina os estudiosos em grande medida porque ele quer
responder a questão definitivamente. Ele acredita que a crítica literária deve
ser uma ciência. Em 2005, em um livro intitulado Graphs, Maps, Trees: Abstract
Models for a Literary History2, ele se valeu de visualizações
geradas por computador para mapear, entre outras coisas, a emergência de novos
gêneros. Em 2010, ele fundou o Stanford Literary Lab, que se dedica a analisar literatura
com software. A ideia básica do trabalho de Moretti é a de que, se você
efetivamente quer entender literatura, não deve apenas ler alguns livros e
poemas repetidamente (Hamlet, Anna Kariênina, “A terra devastada”). Ao invés
disso, é preciso trabalhar com centenas ou mesmo milhares de textos de uma vez.
Ao converter os livros em dados, e analisar esses dados, você pode descobrir
fatos sobre literatura em geral – fatos que são verdade não apenas para um
pequeno número de obras canônicas mas para o que a crítica Margaret Cohen
chamou de “the Great Unread” (os grandes não lidos). No Literary Lab, por
exemplo, Moretti está envolvido em um projeto para mapear as relações entre
personagens em centenas de peças, da época da Grécia antiga até o século XIX.
Estes mapas – que se parecem como teias de aranhas mais do que organogramas –
podem então ser comparados; em teoria, as comparações podem revelar algo sobre
como as relações entre personagens mudaram ao longo do tempo, ou como elas
diferem de um gênero para o outro. Moretti crê que esses tipos de análise podem
ressaltar o que ele chama de “a regularidade do campo literário. Seus padrões,
sua lentidão.” Eles podem nos mostrar a floresta no lugar das árvores.
O trabalho
de Moretti ajudou a tornar a “crítica computacional”, e as humanidades digitais
de modo geral, em um verdadeiro movimento intelectual. Quando, na semana
retrasada, Stanford anunciou que os graduandos estariam aptos a se inscreverem
em “joint majors” (graduações mistas) combinando ciência da computação tanto
com inglês ou com música, foi difícil não ver nisso um sinal da influência de
Moretti. Mas Moretti tem seus críticos. Eles apontam que, até agora, os
resultados de suas investigações são ou incorretos ou inexpressivos. (Uma
descoberta típica de Moretti é que, na Grã-Bretanha do século XVIII, por
exemplo, os títulos de romances tornaram-se menores enquanto o mercado de
romances crescia – um fato “interessante” apenas entre aspas.) E ainda assim
esses tipos de objeção não diminuíram o entusiasmo pelo trabalho de Moretti. E
isso porque, não importa como os projetos individuais de Moretti se saiam, seu
método, em si mesmo, faz uma afirmação significativa. Ele impele os críticos a
repensar o que fazem (em especial os que se consideram muito instruídos). Em um
ensaio chamado “Conjecturas sobre a literatura mundial” – publicado em 2000 e
reunido em Distant Reading – Moretti diz o seguinte:
“O que
significa estudar literatura mundial? Como fazer? Eu trabalho com narrativa
europeia ocidental entre 1790 e 1930, e já me sinto um charlatão fora da
Grã-Bretanha ou da França. Literatura mundial?
Muitas
pessoas leram mais e melhor do que eu, claro, mas ainda assim estamos falando
aqui de centenas de línguas e literaturas. Ler ‘mais’ dificilmente parece ser a
solução. Sobretudo porque acabamos de iniciar a redescoberta do que Margaret
Cohen chama os ‘grandes não lidos’. ‘Eu trabalho com narrativa europeia
ocidental etc.’ — ou nem isso: trabalho com sua fração canônica, o que não é
nem sequer um por cento da literatura publicada. E volto a insistir: algumas
pessoas leram mais, mas a questão é que há trinta mil romances britânicos
oitocentistas por aí afora, quarenta, cinquenta, sessenta mil — ninguém sabe ao
certo, ninguém os leu, ninguém jamais o fará. E isso sem contar os romances
franceses, chineses, argentinos, americanos...”3
Ponha de
lado as análises de Moretti: os próprios números fazem você ver a literatura de
modo diverso – como algo vasto, social e impessoal que talvez seja melhor abordado
de forma estatística. Por volta de 2005, Moretti havia determinado esses
números e tabelado a produção de romances ao longo do tempo. Você pode ver
alguns destes resultados em Graphs, Maps, Trees. É uma pena que não
tenham sido incluídos em Distant Reading, pois estão entre as melhores coisas
que Moretti já fez. Seus gráficos que rastreiam romances publicados por ano têm
quase um atributo poético, marcando esforço e ambição no eixo y, contra as
corrosões do tempo no eixo x. Um gráfico extraordinário, “British novelistic
genres, 1740-1900”4, mostra o que Moretti chama de “uma mudança de
guarda consideravelmente regular”, uma vez que gêneros vitais – o “romance de
conversão”, o “romance deambulante” e o “romance garfo-de-prata”5 – florescem e então desaparecem.
A
grandiosidade desta escala expandida dá poder estético ao trabalho de Moretti
(Ele desempenha um papel mais amplo em seu apelo, suspeito, do que a maioria
dos Morettianos admitiria). E a abordagem de Moretti possui certa força moral
também. Um dos prazeres de Distant Reading é o de que congrega muitos ensaios,
publicados em um longo período de tempo, em uma espécie de biografia
intelectual; isto tem o efeito de enfatizar as raízes marxistas de Moretti.
Seus impulsos são inclusivos e utópicos. Ele deseja que críticos reconheçam
todos os livros que não estudam; ele admira a praticidade colaborativa do
trabalho científico. Visto do estatístico cume montanhoso de Moretti, a crítica
literária tradicional, como seu foco idiossincrático, pessoal em obras individuais,
pode parecer autoindulgente, mesmo frívola. Qual o sentido, seus gráficos
parecem dizer, de continuar interpretando livros individuais – especialmente
livros que já foram interpretados repetidamente? Os intérpretes, escreve
Moretti “já disseram o que tinham que dizer”. Melhor focar nas “leis da
história literária” – em explicar, mais do que interpretar.
Tudo isso
soa austero e pretensioso. Não é. Distant Reading é uma leitura prazerosa.
Moretti é um escritor sagaz e convidativo e, se suas ideias por vezes parecem ásperas,
elas raramente se suavizam pelo uso excessivo. Tenho minhas objeções, é claro.
Sou cético, por exemplo, quanto à ideia de que há “leis da história literária”;
por todo seu tecnofuturismo Moretti pode parecer antiquado em sua ânsia por
desvelar padrões e estruturas ocultas dentro da cultura. Mas Moretti não é
nenhum arrivista. Ele é paciente, experiente e de mente aberta. É óbvio que ele
pretende continuar coletando dados e, sempre que possível, substituir suas
especulações por respostas. De certo modo, o fato do livro ter recebido um
prêmio reflete o papel desempenhado por Moretti em assegurar um assento
permanente na mesa para um novo paradigma crítico – algo que acontece muito
raramente.
Mesmo assim,
minha aposta é que, enquanto muitos críticos admirarão Moretti, relativamente
poucos o seguirão. As habilidades técnicas são adquiríveis; graduandos em
Inglês podem fazer cursos de ciência da computação. Mas os sacrifícios,
intelectualmente e, por assim dizer, artisticamente, são grandes demais.
Moretti, parece-me, estabeleceu uma missão de sentido único. Na crítica
literária costumeira – do tipo que divide a diferença entre arte e ciência – há
um constante toma lá dá cá entre o geral e o particular. Você circula da teoria
de volta ao texto; você ajusta, ou enobrece, ciência com arte. Mas a crítica de
Moretti não funciona desse jeito. A generalidade é o verdadeiro ponto. Ao fim
de sua jornada, Moretti talvez esteja apto a ver toda a literatura, mas ele a
verá como um astronauta em Marte vê a Terra: de longe, sem um caminho para
casa. Em 2006, o site literário the Valve sediou um simpósio online
sobre Graphs, Maps, Trees tendo Moretti como participante. Em uma de suas respostas, ele perguntou, retoricamente, se sua abordagem “abole o prazer
de ler literatura”. Sua resposta:
“Não – ela
apenas significa que entre o prazer e o conhecimento da literatura (ou ao menos
uma grande parte do conhecimento) não há qualquer continuidade. Saber não é
ler.”
Talvez seja
estranho sentir gratidão pelo trabalho de um crítico de quem sempre se discorda,
mas sinto-me grato a Moretti. Como leitores, somos agora beneficiados por uma
divisão do trabalho crítico. Podemos continuar a ler da maneira antiquada.
Moretti, de longe, nos contará o que aprende.
Notas:
1. Leitura à distância, sem
tradução no Brasil.
2. Gráficos, mapas, árvores:
modelos abstratos para uma história literária, sem tradução no Brasil
3. Tradução de José Marcos Macedo.
Disponível aqui.
5. Respectivamente,
“the conversion novel”, “the ramble novel” e “the silver-fork novel”.
* Tradução livre de Guilherme Mazzafera a partir do original “An attempt to discover the laws of literature”, publicado na The New Yorker em 20 de março de 2014.
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