Tribalismo, leituras e debates políticos sem demonização
Por Rafael Kafka
Ilustração: George Tooker |
O tribalismo
segue sendo um tema que muito me interessa. Ele começou a chamar minha atenção
após as eleições do ano passado, no dia seguinte à eleição do presidente Jair
Bolsonaro. Naquele mesmo dia, decidi que passaria a estudar as bandeiras
políticas defendidas por gente que o apoiou para poder fazer uma crítica mais
substancial e concreta do que estava enfrentando. Lembrei-me de uma expressão
usada por Terry Eagleton em seu ensaio sobre marxismo e crítica literária: o
significante tem significado.
Nas aulas
básicas dos cursos de letras, uma das primeiras coisas que aprendemos é que o
signo linguístico, seu caráter convencional, é nascido da fusão entre um
significante e um significado, uma imagem acústica e um sentido social usual. A
fala geralmente deprava esse sentido, expandindo seus usos e por isso mesmo não
é estudada, por si só, pelos linguistas. A expressão de Eagleton mostra como a
ligação entre significante e significado muitas vezes é transgredida e
subvertida pela experiência vivida. Os signos em sua essência não são algo
constante e pronto e muitas vezes aquilo que está por fora determina o que está
por dentro.
Exemplo
claro disso pode-se citar na palavra “vagabunda”. Enquanto usamos seu masculino
para falar claramente de homem desocupado, o feminino se refere à conduta
sexual de uma mulher em tom condenatório. Podemos aqui tecer hipóteses sobre
esse sentido criado pela experiência de uma sociedade machista – provavelmente
afirmação de que somente uma mulher sem nada para fazer em casa teria tempo de
fazer sexo, pasmem, por prazer -, mas o que importa é que mesmo o dicionário
dizendo que “vagabunda” é tão somente o masculino de outro termo a palavra
assumiu nova conotação e se falar isso para uma mulher é das piores ofensas
possíveis.
Em um sentido
mais amplo, as eleições, nas quais fiz campanha contra o atual presidente,
fizeram-me entender perfeitamente o maniqueísmo que infesta muitas das vezes a
política partidária. Em anos anteriores, isso foi mais intenso e lembro
claramente de não me propor a ler qualquer texto cujo léxico envolvia termos
como “liberalismo”, “empreendedorismo”, “mercado”, etc. Eu me sentia como deve
se sentir um cristão fervoroso diante de uma aparição a qual ele vincula a
religiões e seitas demoníacas.
Com o passar
do tempo, passei a me propor a ler alguns textos curtos em redes sociais e ver
os debates, ou brigas verbais de foice, envolvendo gente de direita e de
esquerda. Muitas vezes, as pessoas do meu espectro político levavam a mim
vídeos e textos em tom de crítica que na verdade mostravam, em edições ruins
ainda, argumentos falhos de gente que defendia posições justas, mas não tinha
cabedal teórico para a defesa. Banalizou-se o uso do termo fascista como novo
tipo de maniqueísmo de esquerda e muitos de nós não entendemos que os eleitores
do atual presidente não são fascistas moradores da periferia e sim
trabalhadores que não entendem bem uma política neoliberal ou sujeitos que
entendem bem isso e acreditam ser o ideal para sairmos da lama.
Após as
eleições, eu me peguei, paradoxalmente, brigando mais com gente da esquerdado
que gente da direita. Por mais que o pensamento de violência contra os direitos
humanos seja mais comum no espectro destro, penso que isso deve muito ao
populismo de partidos desse lado o qual se aproveita do medo das pessoas em
relação aos crimes e mortes que tanto infestam a nossa sociedade. A maioria
dessas pessoas trabalha demais e pouco tem acesso a bens culturais e assim fica
difícil simplesmente demonizar quando o medo é amplificado pela falta de
conhecimento sobre um problema sério, ainda mais quando esse problema pode te
matar ali na virada da esquina.
Comecei a
brigar mais com gente da esquerda porque entendi o que eu era há alguns anos
atrás, quando já tinha o poder da crítica literária em mãos. Por mais que haja
pessoas que não querem ou não conseguem debater e precisem do botão do block às
vezes, há quem queira trocar ideias e podemos aprender muito sobre posições
contrárias às nossas. Isso não significa abraçar completamente essas posições,
mas tão somente entender um novo modo de raciocinar a realidade em suas
diversas nuances e sob diversos matizes, algo que tem se mostrado prazeroso a
mim.
Penso que o
medo homofóbico de lidar com homossexuais se deva à homossexualidade latente
que muitos têm dentro de si e com o qual não conseguem lidar. Esse medo se
encaixa dentro do mal maior do tribalismo. Quando nos negamos a ler um texto
por causa de seu léxico, a entender um outro ponto de vista para somente depois
apontar suas falhas, então assumimos duas coisas: 1) não conseguimos dialogar
com aquele texto, por falta de instrumentos teóricos suficientes, e nossa
discordância pode estar mais ligada a sentimentos de antipatia; 2) um temor de
que aquelas ideias podem tomar conta das nossas e destruir nossas crenças,
assim como para o homofóbico num fundo não tão fundo o homossexual representa a
ameaça da destruição da lógica criada para o mundo ao redor e para si mesmo, de
repente inclusive com o desejo se soltando e quebrando toda uma identidade, como
ocorre com o pai militar do excelente Beleza americana.
Por esses
dias, uma conhecida, eleitora de Fernando Haddad, postou algo sobre criticando
a postura de Ciro Gomes em bienal da UNE. Mas em sua postagem, ela afirma que
tanto Ciro como seus eleitores devem repensar as besteiras feitas durante as
eleições. Comentei algo falando da postura lamentável do ex candidato e isso
gerou um debate no qual fui chamado de termos bem curiosos típicos da esquerda
mais pós-moderna universitária: hétero babão, esquerdomacho privilegiado e, no
final, o mais surpreendente: soberbo intelectual. O uso ao que parece se deu
pelo fato de eu ter afirmado na troca de mensagens em forma de comentários que
nós da esquerda devemos entender as demandas sociais e econômicas tidas pelos
mais pobres que os levaram a votar em Bolsonaro. Muitos não querem perder o
SUS, a escola pública, etc, mas melhorias desses serviços para os mesmos não
serem realidades distantes de si.
Em dado
momento, fui ironizado, pois dizia muito sobre mim e meu candidato que eu me
propusesse em atos contra reformas do governo do futuro estar em eventos ao
lado de eleitores de Bolsonaro, por exemplo. Minha resposta foi um pedido para
a pessoa tentar mudar a realidade dialogando tão somente com os eleitores dos candidatos
de esquerda para daqui a alguns anos conversarmos sobre os resultados obtidos.
O mais curioso, porém, foi a crítica da exposição dos hábitos de leitura em
minhas postagens diárias – isso daria assunto para um texto imenso aqui.
Lembrei de quando mais jovem, uma amiga de então dizia “vai lá ler dez livros
para voltares aqui e discutir comigo”. Na época, eu não entendia bem o que era
esquerda e direita, mas já lia autores de esquerda e amava as ideias
socialista, bem como cultivava muito a arte e defendia justiça social. Minha
amiga também. Não obstante, e hoje ela é de esquerda, ela achava criticável meu
comportamento de ler vários livros para participar de um debate político
qualquer.
Muitos podem
dizer que a crítica não é ao fato de eu ler, mas sim ao fato de eu me gabar de
ler. Porém olho minhas postagens nas quais falo de leitura e tão somente
expresso minhas visões sobre filmes, séries e livros. Em poucos momentos, eu me
deparo com debates em minhas redes sociais e muitas vezes para debater sobre
filmes preciso ir até os bons cineclubes de minha cidade para trocar ideias.
Todavia, o simples fato de em textos como esse aqui citar um teórico marxista e
um filme do diretor Sam Mendes parece ser acusatório o suficiente para a pecha
de soberba intelectual.
Penso que
isso se deve em muitos casos ao fato de que mesmo os membros da esquerda, que
se propõem uma visão modificadora da realidade, pouco se propõem a ler sobre
ela, preferindo longos debates usando frases feitas e memes. Para tais pessoas,
qualquer indivíduo falando de suas leituras recentes, sejam elas no cinema ou
dentro do âmbito da literatura, é alguém que está se vangloriando do ato de
ler. A meu ver isso, é profundamente indicativo de como nós, em geral, lemos
pouco e tomamos como ofensa qualquer pessoa que manifeste o seu gosto pelo ato
de ler.
Fico
pensando que a imagem ideal de ambiente social é justamente uma sociedade em
que cada espectro político consiga ler aquilo que sirva de combustível para
suas ideias e depois aquilo que se opõe a elas, com o fito de uma crítica mais
consistente e sadia. Mas penso estar sendo utópico demais. Estamos ainda em uma
sociedade na qual demonizar o outro lado e usar as expressões mais simples
possíveis para defender nossos pontos de vista vale muito mais do que uma troca
sadia de visões sobre um mundo melhor.
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