Rapnik: "ou eu ganhava as batalhas ou não andava mais"
Por Wagner Silva Gomes
Jean-Michel Basquiat |
Considero
aqui poesia periférica como toda aquela que os poetas do gueto vêm produzindo
em termos de prosa e verso desde 1970, tendo como referência discursiva o
movimento Hip-Hop, que surgiu nos guetos norte-americanos e se espalhou pelo
mundo.
Partindo deste
recorte, tem-se a droga primeiramente algo comum, já que o seu consumo era
usual como recurso anestesiante para os males do trabalho, para os males da
guerra (Vietnã de 1955 a 1975), usada também para se ter uma percepção
sonhadora ao ver a realidade, pois com a opressão, a falta de recursos, pouco é
permitido sonhar no gueto. Além de muitos imigrantes jamaicanos, alguns deles
responsáveis pelo surgimento do movimento (Kool Herc, Afrika Bambaataa) virem
de uma cultura onde a maconha tem um uso religioso de encontro com Jah.
A paranoia
que se segue ao escrever ou ler é também comparável ao uso de droga, já que se
persegue uma ideia, a de que aquele mundo descrito está acontecendo. Para criar
esse universo são necessários muitos recursos.
Os samples
dos djs, carregando de imagens os sons como uma mandala que pulsa, o break
extasiante revitalizando o corpo violentado que voa como um helicóptero que
chega em missão de paz, verdadeira, já que faz do uso violento do corpo uma
competição artística. Estes elementos da cultura hip-hop têm nesse universo das
drogas algo estimulante, uma potência imediata aplicada no corpo e no
inconsciente, nos traumas, na dor, que fazia de tudo uma viagem, da qual não se
teria medo de aproveitar da forma mais inusitada.
Essa maneira
de fazer arte foi requisito usado pelos beatniks, movimento literário dos anos 1950
e 1960, de Kerouac, Ginsberg e outros mais, antecessor do hip-hop, que fazia de
tudo para deixar fluir a intuição e os instintos que os abriam as portas da
percepção para sair do modo de vida padrão, criado pelo patronato industrial e
até os anos 50 seguido conservadoramente, nas roupas, na dança, em que o homem
conduz a mulher, no eurocentrismo, tudo questionado na década seguinte pela
contracultura, que conquistou uma maior abertura ao modo de vida e à arte dos
povos colonizados e considerados subdesenvolvidos.
No entanto,
o estilo de vida americano, que incitava a livre concorrência, o consumo
massivo, a busca pelo prazer a todo custo, fez com que as drogas virassem um
vício, uma doença, uma epidemia, e o povo oprimido fosse perdendo o seu ânimo e
mesmo sua vontade de reivindicar seus direitos cidadãos. Desde então as
drogas são tratadas de forma delicada pelos poetas rappers.
Uso o grupo
Racionais Mc's como foco das melhores ideias provindas na poesia periférica do
Brasil. No rap "Da ponte pra cá" o grupo atenta logo para o
perigo alucinógeno da fantasia na periferia "Não adianta querer ser, tem
que ter pra trocar / O mundo é diferente da ponte pra cá". E numa comprovação
de que o usuário está sendo usado para se ganhar dinheiro como faz um
capitalista desumano (a maioria, podendo se considerar até uma redundância),
que não se importa com o reflexo de seu produto na sociedade, nem com a vida de
quem consome, diz o rap em outro refrão, simétrico ao dos versos já descritos:
"Não adianta querer, tem que ter (*se você tem de qualquer jeito), tem que
pá (*você tem o que pode matar – destaque para a onomatopeia, que indica o
tiro) / O mundo é diferente da ponte pra cá". Nesta análise sugerida com
os asteriscos, se é um viciado que tem o produto de qualquer jeito, tem a arma
para matá-lo, só que está em outra mão. Se é um traficante que tem de qualquer
jeito, ele tem a arma pra matar (este tem o produto e está resguardado com uma
certa proteção). Quando os caminhos se cruzam é morte na certa. No
entanto, o mesmo grupo reconhece que a droga é um universo potente:
O que é, o
que é?
Clara e
salgada,
Cabe em um
olho e pesa uma tonelada
Tem sabor de
mar,
Pode ser
discreta
Inquilina da
dor,
Morada
predileta
Na calada
ela vem,
Refém da
vingança,
Irmã do
desespero,
Rival da
esperança
Pode ser
causada por vermes e mundanas
E o espinho
da flor,
Cruel que
você ama
Amante do
drama,
Vem pra
minha cama,
Por querer,
sem me perguntar me fez sofrer
E eu que me
julguei forte,
E eu que me
senti,
Serei um
fraco quando outras delas vir
Se o barato
é louco e o processo é lento,
No momento,
Deixa eu
caminhar contra o vento
Do que
adianta eu ser durão e o coração ser vulnerável?
O vento não,
ele é suave, mas é frio e implacável
(E quente)
Borrou a letra triste do poeta
(Só) Correu
no rosto pardo do profeta
Verme sai da
reta,
A lágrima de
um homem vai cair,
Esse é o seu
BO pra eternidade
Diz que
homem não chora,
Tá bom,
falou,
Não vai pra
grupo irmão aí,
Jesus
chorou!
O que é? Dá
prazer, como dá uma mulher; como dá o mar; paga aluguel pra dor; é parecida com
a loucura e demora a passar. Como numa brincadeira de adivinhação. É a lágrima.
O que no final se identifica com o choro de Jesus, que se para alguns era louco
pelo universo que criou com o pensamento e a ação, pra outros era responsável
por criar uma bela realidade, transformadora. Desta dicotomia surgiu a paixão;
daí violência, opressão.
Com isso, a
poesia periférica passou a usar o mundo das drogas de forma metafórica, vendo
nele um mundo literário, como uma tópica ou um leitmotiv, oferecendo recursos importantes. O poeta Sérgio Vaz,
criador do Sarau da Cooperifa, fez de um bar um lugar onde as pessoas falassem
de se beber poesia (passa de 200 pessoas, quando lotado), falassem do lugar
como um centro de recuperação, "resgatando mais gente do que o SAMU",
diz o rapper Inquérito, que também publica livros, no rap "Lição de
casa".
Diz o poeta
Sérgio Vaz no poema "A vida é Loka" (clara referência a "Vida
loka" dos Racionais Mc's):
Essses dias
tinha um moleque na quebrada com uma
arma de
quase quatrocentas páginas na mão.
Umas mina
cheirando prosa, uns acendendo poesia.
Um cara sem
Nike no pé indo pro trampo com o zóio vermelho de tanto ler no ônibus.
Uns tiozinho
e umas tiazinha no sarau enchendo a cara de poemas. Depois saíram vomitando
versos na calçada.
O tráfico de
informação (*o Emicida e o MV Bill também usaram essa comparação) não para, uns
estão saindo algemados aos diplomas depois de experimentarem umas pílulas de
sabedoria. As famílias, coniventes, estão em êxtase.
Esses vidas
mansas estão esvaziando as cadeias e desempregando os Datenas.
A vida é
mesmo loka?
A vida glamourizada
dos traficantes também é ressignificada de forma poética, refletindo sobre a
inteligência dos mesmos no que atrai tanta gente, por ser um poder, que só é
mal canalizado porque é voltado para o crime. Cito de novo os Racionais Mc's em
"Tô ouvindo alguém me chamar":
(...)
Guina, eu tinha mó admiração, ó
Considerava
mais do que meu próprio irmão, ó
Ele tinha um
certo dom pra comandar
Tipo, linha
de frente em qualquer lugar
Tipo,
condição de ocupar um cargo bom e tal
talvez em
uma multinacional.
É foda...
Pensando bem
que desperdício
Aqui na área
acontece muito disso
Inteligência
e personalidade
mofando
atrás da porra de uma grade
No rap
"Lion man" do Criolo, há um paralelo entre uma vida que só
trouxe desgraça para a periferia, mas que se mudar somente o jeito de fazer,
isto é, contra a opressão, sem ser fazendo tráfico de drogas, imitando
opressores, com matanças etc., é comprovado que terá sucesso. Segue um trecho
do rap:
"Vamos
às atividades do dia:
Lavar os
copos, contar os corpos e sorrir
A essa morna
rebeldia
Só os loco
O Criolo qué
colá pra somá
Sempre foi
assim, ã! o que vivi
Acho melhor
não desacreditar, fi
Os muleque é
novim e faz um dinheiro sim"
Outros, como
Djonga e Baco Exu do Blues são mais parecidos com a geração Beat, passando uma
visão de quem consegue dominar a percepção da droga, não se entregando ao
vício, ou se entregando quando quer. Segue um trecho do rap "BB
King", do último citado, que diretamente presta uma homenagem a
Kerouac e seus camaradas:
Mano
eu sou baco
Deus da
putaria da loucura e dos palcos
Eu não me
governo
Sou minha
empresa
Meu próprio
governo
Meu amor,
sou eu mesmo
Sorri ao
receber flores no meu enterro
Eu sou
eterno
Da geração
dos iluminados
Dos raivosos
incompreendidos
Dos que
nasceram pra liberdade
Se pedir um
feat vai sair fudido
Kerouac, eu
fiz uma rima pra sua geração beat
Kerouac, eu
fiz uma rima pra sua geração beat
Sempre que
gozo dentro eu me sinto profano
Ela sorri e
fala, "Baco eu te amo
Se lembre,
você é humano
'Cê é forte,
aguente o dano"
Dominar o
mundo não é mais só um plano
Tudo que a
concorrência faz me soa mediano
'Cês juntam
umas palavra e acham que tão rimando
Domine o
campo igual Cristiano
'Cê entrou
duas vezes pra história em dois anos
Só com 22
dois anos
Você rima
como se fosse o B.B King solando
Autoestima,
eu te amo
Piva, nessas
ruas eu me sinto rei (wow, wow)
Eu vivi, eu
caí, eu me consertei (wow, wow)
Sou
resultado das pessoas que eu amei (wow, wow)
Eu bebi eu
transei eu me transformei (wow, wow)
Três nove na
camisa e eu me sinto um rei
Três nove,
nove na camisa e eu me sinto um rei
Três nove na
camisa e eu me sinto um rei
Três nove
nove na camisa e eu me sinto um rei
Na poesia
escrita há o Jhon Conceito, que também é rapper, e no livro Depois do nada (clara referência também
ao disco Nada como um dia após o outro,
dos Racionais Mc's), testemunha os frutos da resistências periférica sampleados
no livre estilo de vida, que é um pouco do que defendeu a contracultura mas
atentando para os riscos da loucura, já que ocupa o lugar de testemunho dos que
não conseguiram ressignificar os atos, reféns que foram do sistema, vivendo
muito dos males da contracultura no crime, que sequestrou o homem periférico,
lhe tirando a cidadania. O poeta, no entanto, liberta a poesia, e quando
sai vivo recupera a cidadania. Segue um trecho do poema "Quem será
testemunho":
De uma noite
tímida se pode esperar qualquer coisa.
Essas noites
frias e nubladas de segundas e terças feiras.
Porra,
Drummond, não estou justificando nada.
Mas e agora
quem vai falar
Sobre o que
e como roubamos, o quanto perdemos e se ganhamos?
Sobre as
putas que comemos e dividimos regados a bebidas destiladas e químicas,
Quem será
testemunho?
Não te
deixaram chegar aos 30, porque poderíamos dominar o mundo.
Mas lhe dou
parabéns por sua coragem de viver.
Você era
pedra de xangô, orixá que dizia:
Não há
justiça se há sofrer
Não há
justiça se há temor
E se a gente
sempre se curvar
Fizemos
justiça e revolução.
Fizemos o
caos, tocamos o foda-se.
Foi breve,
mas respirei vida.
Deixe-me
testemunhar nossa história, porque a morte aqui não foi um fim.
Chamo os
rappers com este perfil de: rapnik1. São os que ressignificam o
glamour do tráfico; fazem do show business algo comum ao homem periférico,
como o peladeiro da rua que depois vira o melhor do mundo; rappers que gostam
dos benefícios das drogas, mas também ressignificando, que, sabendo do perigo,
também brincam com ele. São rappers que têm a disciplina das ruas e bebem muito
da cultura erudita. São os que mataram aula para ver um filme cult ou porque
queriam pensar por si, enfadados com a aula. Não é um ou outro que cita
os beatniks como referência. Marcelo D2 é outro que diz no rap "prelúdio
em rimas cariocas": "Eu
tenho sangue suburbano, a camisa velha de 2Pac / Tenho a alma
de favela e a estrada de Kerouac"
E o rapper
Aori, conterrâneo de D2 e parceiro de estrada diz no rap "Sinfonia da
Revolução":
(...)
Eu vim do rap e isso me levou a Nike
Antes de ter
tiete meus tênis já eram os tais
Mentira,
cheguei em SP com uns boots tão velhos
Ou eu
ganhava as batalhas ou não andava mais
Eu tô no
melhor time
Minha vida
daria um filme das rimas na esquina a jantares com Tinker
Superei
barreiras, não caí pra nenhum drink
Nesse Mortal
Kombat eu tenho o killer instinct (...).
Notas:
1 Rapnik:
sem os tênis da Nike mas tão velozes que levam à nik (o "eu" em
basco, a verdadeira vitória da liberdade, que por uma paranoia louca da escrita
encontrei por intuição, como os da geração beat, mas do jeito periférico que
estes rappers fazem).
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