O excesso que vive: Mac e seu contratempo, de Enrique Vila-Matas
Por Guilherme Mazzafera
Mac e seu
contratempo (Companhia das Letras, 2018, tradução de Josely Vianna Baptista), o
mais recente livro do barcelonês Enrique Vila-Matas lançado no Brasil, é, em
verdade, meu primeiro contato com sua obra. A honestidade é o point d’honneur do
resenhista. Como decorrência deste fato, sou incapaz de pontear em que medida
tal romance, erigido sobre “o obscuro parasita da repetição que se oculta no
centro de toda criação literária”, não configura ele mesmo, em relação à obra
pregressa de seu autor, um exemplar do que tão minuciosamente esmiúça.
Em linhas
gerais, Mac Vives Vehin, o protagonista, é um advogado (ou seria construtor de
imóveis?) entrado nos sessenta que se vê de repente desempregado. O caráter
repentino do destino, supostamente motivado por uma citação inadequada de
Wallace Stevens, impele-o a dedicar-se ao aprendizado da escrita por meio de um
diário secreto. Nada de novo sobre o sol (aliás, senti falta do Eclesiastes no
rol de leituras e reflexões sem fim de Mac). O engajamento de Mac com o ato de
escrever passa por uma ânsia formativa, movido pela perspicaz asserção – mencionada
mais de uma vez, como seria de se esperar – de Nathalie Sarraute de que
“escrever é tentar saber o que escreveríamos se viéssemos a escrever”.
Na abertura
do romance, Mac deixa claro o desejo por falsificar um livro póstumo, que só
poderia ter fim pela própria morte: “Se eu morresse enquanto o escrevo ele iria
se transformar, aí sim, num livro de fato último e interrompido, o que
acabaria, entre outras coisas, com esse meu anseio por falsificar.” Como modelo
imprescindível, o 53 jours de Georges Perec, romance inacabado em que o autor
parece ter galgado o impossível: “o romance de Perec não fora interrompido pela
morte, já fora terminado havia muito tempo, mas precisava de um contratempo tão
forte como a morte – que Perec já havia incorporado ao próprio texto – para ser
completado, embora à primeira vista pudesse parecer interrompido e incompleto.”
Amante das
formas breves, Mac parece não apreciar muito a ideia de escrever um romance
(que, a despeito de suas intenções, é o que lemos), pois, como lembra Roland
Barthes, romances são “uma forma de morte: transformam a vida em destino”. Assumindo-se
principiante, seu método de escrita é bastante rigoroso e consciente da necessidade
da própria dissolução:
“O fato é
que escrevi tudo a lápis nas folhas arrancadas do caderno, depois as revisei
com lentes de aumento, passei tudo a limpo no computador, imprimi e li tudo de
novo e continuei pensando nelas, revisei as cópias – esse é o verdadeiro momento das escrita –, e então,
depois de ter transferido o texto revisto para meu PC, não deixei nenhum rastro
de manuscrito e finalmente aprovei minhas notas do dia, que ficaram bem
escondidas no enigmático interior do computador.”
A conclusão
deste encadeamento de procedimentos e elisões não é a garantia de sua
concretização, mas o da falibilidade caprichosa de toda escrita: “os parágrafos
perfeitos não resistem ao tempo, porque são apenas linguagem”. E, como linguagem,
tais parágrafos podem facilmente se converter em vítimas da “desatenção de um
linotipista”, de usos impróprios e distorcidos e, mais importante, da “própria
vida”.
Sendo um
“modificador incansável” que de tudo deseja se apropriar para tornar seu –
sempre gostamos de ser o que não somos, dirá ele – Mac tem por projeto
reescrever Walter e seu contratempo, romance esquecido de Ander Sánchez, o
“reconhecido escritor barcelonês” e seu vizinho no bairro El Coyote. Tal
romance, por sua vez, é uma espécie de doppelganger de Uma casa para siempre,
romance do próprio Vila-Matas publicado em 1988 e não muito bem recebido pela
crítica. O contratempo do ventríloquo Walter seria o de ter voz própria, a
mesma tão vorazmente buscada por todo escritor principiante, que acabava por
impedi-lo de exercer propriamente a profissão. O livro de Sánchez, em certa
medida, ilustrava em seu primeiro capítulo a superação desse problema e o
esparramar daquela voz única em diversas cadências e ritmos, compondo pontos de
vista distintos que demarcavam os capítulos seguintes do romance e que tinham,
cada um deles, uma voz mestra que os guiava (Hemingway, Borges, Poe...),
demandando evocação subvertida da parte de um eventual repetidor criativo.
Ainda no
início, Mac observa que os eventos da rua parecem pedir admissão no diário,
turvando-o em direção ao romanesco. Gradualmente, as coisas da vida cotidiana
começam a se tornar mais “narráveis do que antes”, e o próprio anseio de
refazer o romance do vizinho se vê atravessado por entroncamentos subjetivos.
Um dos capítulos deste leva o título de “Carmen”, o mesmo nome da esposa de
Mac, e a evocação desta, no livro de Sánchez, em uma juventude não conhecida
por nosso herói irá assombrá-lo. Lendo que a personagem se especializara em
“provocar desesperos”, Mac instantaneamente leva as mãos à cabeça, sem saber
por que o faz – “talvez seja só amor de perdição, só desespero de tanto amor e
de tanto temor de perdê-lo”. A porosidade entre escrita e realidade parece se
infiltrar de vez no próprio alicerce do processo de refazimento do romance de
outrem, pois Mac crê que antes de se sentir capacitado para a tarefa de
modificador do alheio, “a própria leitura dessa obra vai por vezes me obrigar a
viver previamente algumas de suas sequências”.
Em uma breve entrevista sobre o romance, Vila-Matas desvela sua busca por “reviver a criação
literária”, a criação como experiência transfigurada, quem sabe até mesmo
improvisada, desde que avessa do dogma da autenticidade propalado pelo mercado,
deixando claro que, neste livro, achou “conveniente lembrar que o artista hoje
deve ser radicalmente não original”. Com isso em mente, cabe perguntar: Se um
escritor encontra sua voz, algo que o distingue dos pares e principiantes, repercuti-la
em novo livro, sem a necessidade de uma impostação inédita, é inevitável
caminho para a perdição? A originalidade irredutível e multiforme é
efetivamente uma necessidade na literatura ou apenas manifestação perversa de
uma visão político-econômica?
Como
sabemos, a imitatio era parte inerente a qualquer aprendizado artístico no
mundo pré-romântico, o que não impedia arroubos originalíssimos como o
cavaleiro andante de Cervantes ou o teatro shakespeariano, obras que ainda nos
fascinam mesmo após rastrearmos a fundo suas fontes mais prováveis. Obras que
se desdobram, em grande parte, porque dialogam mais abertamente com suas fontes
do que o mercado editorial costuma achar conveniente. Refletindo sobre o
assunto, Mac remonta a Yo ya he estado aquí, de Jordi Balló e Xavier Pérez, em
que os autores destacam que o mito da novidade editorial deseja ocultar “as
fontes originais das narrações”. O reconhecimento de narrativas pregressas
agrega uma dimensão experimental ao fazer ficcional, já que este não se depara
com a originalidade apenas “na rememoração de seu episódio piloto, mas também
na potencial capacidade dessa origem de se desdobrar em novos universos”. Bem o
sabem as fanfics e seus universos expandidos.
Se levarmos a discussão para o campo
cinematográfico, com seus créditos-vaidade e films d’auteur, quem seria mais
original, Stanley Kubrick ou Woody Allen? O primeiro, com apenas 13 filmes, alterna
constantemente entre gêneros, estilos e temas, raramente produzindo roteiros
originais. Além de diretor impecável e obsessivo, é um grande modificador, como
vemos nos exemplos flagrantes de Laranja mecânica (1971) e O iluminado (1980), adaptações
dos romances de Anthony Burgess e Stephen King, respectivamente. Mas como
observa Mac, um olhar atento perceberia nessa aparente flexibilidade a
predominância de “um círculo fechado de repetições obsessivas”. Aliás, o mesmo
Mac recorda que uma das cenas antológicas de O iluminado é justamente a
descoberta do desequilíbrio mental de Jack Torrance, cena de “terror metafísico”
que se dá pela escrita repetitivamente angustiante da frase All work and no
play makes Jack a dull boy. Woody Allen, por sua vez, reescreve em ritmo quase
atual o mesmo filme desde o início dos anos 1970, sempre com roteiros próprios.
Desde as fontes utilizadas nos créditos e a trilha sonora, sempre pré-1950 e em
diálogo constante com o enredo, seus filmes são imediatamente reconhecíveis,
embora o cineasta tenha feito algumas incursões menos óbvias como Interiores
(1978) ou mesmo Match Point (2005). Como um de seus núcleos, a fulgurante frase
do personagem de Allan Alda em Crimes e pecados (1989): “comedy is tragedy plus
time”, com sua carga social e histórica de repetição diferenciada. Seria a marca
Woody Allen superior à repetição que beira (se é que isso existe) o autoplágio?
Ou a novidade permanente estabilizada sob a rubriKaKubrick desbanca o recurso a
histórias alheias?
De volta à
literatura, podemos pensar em um caso paradigmático nosso, o de Guimarães Rosa.
Dono de um dos estilos mais exuberantes e reconhecíveis da língua portuguesa,
ninguém negaria originalidade à sua obra. Esta, no entanto, constantemente
recobra vozes do passado, seja da cultura letrada ou da popular, e, com ouvido
atento, dá vazão a uma linguagem peculiar que funde estas duas instâncias
expressivas. Descendo ao nível das palavras, o acesso à documentação do
escritor salvaguardada pelo Instituto de Estudos Brasileiros da USP permite
entrever que a transfiguração do alheio faz-se método, a ponto de Rosa ter
efetivamente criado um símbolo, o m% (meu cem por cento), para marcar o gesto
apropriativo, que varia entre uma criação plenamente autoral e o simples interesse
por um termo ou expressão customizável.
No caso dos
textos completos, vê-se em “Cara-de-Bronze”, de Corpo de baile (1956), o
expediente de citações diretas, em notas, de Dante e Goethe, mas há também,
segundo Benedito Nunes, algo de Platão engastado no tecido narrativo. Para o
crítico, o conhecimento dos filósofos por Rosa não se dava pela erudição vazia,
mas “se traduzia em convivência”. O próprio Rosa, aliás, não fazia grande
distinção entre o que lia e o que ouvia: “Vou lendo os filósofos e deles
transcrevo nos meus cadernos o que me interessa. Isso, depois, como tudo quanto
recolho dos livros e da boca das pessoas, poderá fazer parte de uma estória.” Rosa
acaba por confirmar a Nunes que Platão de fato dá as caras naquela narrativa,
mas assevera que pode “contrafazer o autor do Banquete” e que nenhum erudito
lhe poderia desmascarar.¹
Se pensarmos
sobretudo em Grande sertão: veredas (1956), construído a partir da técnica do
monólogo dialógico ou diálogo oculto, há certa afinidade com o que Mac pensa
sobre as vozes perdidas que constituem a matéria literária: “É com elas que se
construiu a literatura, que para mim é uma forma de preservar aquela chama do
que foi dito de viva voz, junto ao fogo, na noite dos tempos.” Mesmo sabendo de
que no máximo teremos uma falsificação, o esforço reconstrutivo, além do valor
estético, adquire também uma dimensão ética. E Rosa já nos alertava: “Narrar é
resistir”.
Com isso, talvez
possamos atualizar (que é também um modo de repetir) a famosa formulação de
Coleridge sobre a voluntária suspensão da descrença. Nas palavras de Mac Vives,
a súmula da fé poética seria: “acreditar numa ficção que se reconhece como
ficção, saber que não existe mais nada e que a refinada verdade consiste em ser
consciente de que se trata de uma ficção e, mesmo assim, acreditar nela.”
Mac e seu
contratempo tem algo de palavroso, obsessivo e potencialmente infinito,
acelerando a cadeia dos eventos nos capítulos finais em uma espécie de diáspora
contínua na busca de Mac pelo “centro histórico das fontes do conto”, que
estaria supostamente localizado na “Arábia Feliz”, o que o faz atravessar
Portugal, Marrocos, Tunísia, Egito e chegar aos limites dos continentes
asiático e africano, o estreito de Bal-el-Mandeb, com “uma caravana de vozes
incansáveis e anônimas” organizada por ele. Nessa expansão progressiva dos
sentidos e da experiência, emerge cada vez mais forte um retorno inevitável ao
familiar bem como a percepção de uma “escrita pedestre, de uma geografia da
qual esquecemos que somos os autores”.
O tema da
repetição, no entanto, é tão espantosamente fértil por si que uma resenha não
digressiva é quase inviável, pelo que aqui nos escusamos. Extrapolando um pouco
a questão, cabe indagar: em que medida uma resenha não é um contratempo, uma
asserção virulenta que, por meio da repetição do livro resenhado (citações e
paráfrases), aspira ao novo, a dizer o não dito posto que a mera repetição
seria sua morte? No entanto, o novo a que se aspira só se produz pela asserção
do texto de base, cuja presença na resenha é compulsória mas sempre tende ao
excesso. Talvez toda resenha tenha, no fundo, um excedente, um fértil
precipitado cujo derramamento faz vicejar novos sentidos independentes de sua
matriz. Ou, mais provavelmente, talvez seja apenas o texto de Vila-Matas (e de
Mac Vives) recobrando seu predomínio nesta resenha para me lembrar da
observação de Mac sobre uma noite em que dormiu com as luzes acesas, gastando
energia. Ele o fizera “não para desperdiçá-la à toa, e sim por pensar, só isso,
que o excesso em si mesmo pode ser sentido como vida e, curiosamente, fazer com
que nos sintamos mais vivos.”
Notas:
¹ As três
últimas citações foram extraídas de: NUNES, Benedito. Guimarães Rosa em
novembro. In: A Rosa o que é de Rosa. Literatura e filosofia em Guimarães Rosa.
Organização de Victor Sales Pinheiro. Rio de Janeiro: Difel, 2013.
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