Nikos Kazantzákis, sem idade para o espanto

Por Aglaia Berlutti

Nikos Kazantzákis. Foto: Henri Chaillet.


Quando um livro é considerado “controverso”, ou sua leitura se torna obrigatória ou o leitor começa a se questionar sobre esse elemento polêmico que torna a narrativa um paradigma. Talvez por esse motivo, à obra de Nikos Kazantzákis só interesse muito mais o elemento controverso que a história que se conta, a que tenta expressar uma ideia complexa cuja polêmica é apenas uma parte do discurso e da ideia que se tenta construir. Não obstante, Kazantzákis, com sua prosa precisa e sua capacidade para construir atmosferas complexas através da sensibilidade, parece muito distante do mito de simples escândalo e mais próximo da ideia profunda de uma obra escrita para refletir situações controversas. Uma sólida estrutura literária capaz de avançar além do espanto e criar algo mais substancial que a mera confrontação.

Trata-se de algo que Nikos Kazantzákis obteve tão logo que assumiu a literatura como uma possibilidade de olhar criticamente o seu tempo – e a opinião cultural. Poeta, dramaturgo, cronista, ensaísta e romancista, foi um criador convencido da necessidade de utilizar a metáfora e o olhar crítico como uma maneira de construir uma nova noção sobre a identidade e o tempo em curso, algo que soube fazer melhor que ninguém e que o levou a renovar a literatura de seu país – marcada por uma intrincada história – e criar algo significativo.

Mas sua fama de crítico e, sobretudo, o de cético antecede a condição de escritor; fama esta que se alarga ainda mais depois de seus três melhores romances, Vidas e proezas de Aléxis Zorbás, O Cristo recrucificado e A última tentação – todos levados ao cinema com enorme sucesso de público e de crítica. Além da extravagância de suas histórias – sempre surpreendentes e a maioria das vezes com um toque desconcertante que lhe acrescenta certo exotismo – Kazantzákis tentou mostrar a Grécia profunda, o pensamento helênico despido da lenda, do folclore universal. Isso faz com que suas narrativas tenham um toque fundamentalmente marcado pela dor.

Uma percepção sobre sua ambivalente profundidade é a decisão do escritor por elaborar uma percepção elementar de seu país e de sua história através de certa sensibilidade narrativa. E, Kazantzákis sempre pareceu dotar suas obras de um tom autobiográfico, com suas personagens fortes e secas (ou melhor, endurecidas por uma longa e tormentosa vida) que por vezes se confundem de tão parecidas com seu autor, sempre referido por seu humor e sua fúria espiritual. Por esse motivo, essa noção sobre si mesmo continua a ser o elemento melhor reconhecível de seus romances, enquanto o que aí também prevalece é a celebração às gargalhadas e com cerveja quente em algum kafeneion iluminado por tocos de velas, sorvendo de vez em quando um gliki vrasto e no fim da noite, embebedando-se divertidamente com um tsikoudia enquanto ri e dança com os braços levantados para o céu. A qualidade reconhecível, portanto, de sua obra é sua atemporalidade, sua capacidade para refletir a variabilidade desse temperamento grego – talvez tão humano – em cada uma de suas personagens.

Kazantzákis jogou com essa noção sobre o tempo – e a atemporalidade – em cada um de seus romances e se atreveu a remontar o tema do vivido e do passional até ao limite de algo mais complexo. Como se seus romances, transbordantes de uma emoção verdadeira, radical, à flor da pele, fossem algo mais que narrativas sobre a vida e as vicissitudes de suas personagens. Algo mais próximo à descrição de uma vitalidade inédita, poderosa e enigmática, capaz de fazer com que essa percepção de Kazantzákis sobre a essência do que narra transcenda para além do escrito. Uma interpretação melancólica sobre a passagem das pequenas histórias, as pessoais e as desconhecidas.

Uma vez o escritor grego comentou com um jornalista que todos os seus romances careciam de cronologia, apesar de serem perfeitamente reconhecíveis em seu espaço e no lugar onde ocorrem as histórias. Explicou que para os gregos o passado, o presente e o futuro são indissociáveis. Variações de um mesmo tema contínuo que muitas vezes não estabelece referências com o externo ao texto. Afinal é, ainda repetindo suas palavras, essa linha ininterrupta – essa percepção do todo como uma única realidade – o que faz a literatura grega incapaz de perecer; como se tudo acontecesse num mesmo espaço onde os deuses e os mortais convivem num eterno conflito cada vez mais difícil de compreender.

Talvez por esse motivo, o romance mais conhecido de Kazantzákis seja uma narrativa atemporal sobre uma das passagens transcendentais da cultura ocidental. Porque A última tentação de Cristo não é apenas um livro desconcertante em sua temática – um Jesus Cristo tomado pela dúvida, com uma visão intrigante sobre sua natureza divina e sua missão sagrada; é um livro que tem o poder de seduzir a imaginação do leitor. Permiti-lo ao questionamento. Desconcertá-lo. E isso sempre será extraordinário, uma maneira de compreender o mundo que o autor desenha para além do próprio homem. Reside aí, certamente, o fato de o polêmico ser uma característica dominante da narrativa e esta interfira de alguma maneira no mundo comum.

Entretanto, para Nikos Kazantzákis, vê-se, a história é ainda mais importante que a necessidade de impressionar. Por isso, constrói um tema complexo, ao mesmo tempo forte e sensível com uma inteligência sutil e precisa. Sua prosa – elegante, objetiva e rica em matizes – desenha essa outra realidade de um homem sagrado com uma sensibilidade que nos desconcerta, o humaniza. O Jesus de Kazantzákis não é infalível, nem tenta sê-lo; é, como já dissemos, atormentado por suas próprias dúvidas, ferido por essa condição humana que lhe é ao mesmo tempo que próxima, tentadora; o escritor grego amplia a complexidade de uma personagem, tornando-a profundamente existencialista. Ora com observações, testemunhos incômodos, sobre a história principal. Isto é, o leitor tem a sensação de que o escritor conta, através da narrativa aí forjada, uma visão singular sobre o sagrado e o divino através de um Jesus dividido, preso na incerteza, e finda por oferecer uma nova forma de santidade, outra maneira de conceber o sagrado e o divino.

Parte dessa aguda visão sobre o sagrado, o obsceno, o humano e o divino do romance, se constrói pelo ponto de vista crítico do próprio escritor acerca da religião na qual foi educado: ele realizou os primeiros estudos com padres católicos na Escola Franciscana de Santa Cruz em Naxos. Depois ingressou no Gymnasium de Heraleion, para mais adiante cursar direito na Universidade de Atenas, onde graduou-se em 1906.

Mas, mais significativa que sua educação formal, foi sua formação como filósofo e livre pensador; desde 1907 até 1909 estudou filosofia com Henri Bergson no Colégio de France. Eis então algum motivo que faz com que se perceba como suas obras estão a meio caminho entre o existencialismo, a crítica e uma complexa visão da teologia e é em muitos pontos mais filosófica para um texto de um poeta ou de um romancista; ainda: que em suas obras se apresentem claras influências tanto do pensamento do seu mestre Bergson como de Nietzsche, sobre quem Kazantzákis chegou a escrever um estudo; ou de William James; das ideias implícitas em diferentes concepções religiosas – entre elas o Budismo.

E essa maneira de conceber o mundo, entre o profano e o sagrado, é o que converte a obra de Nikos Kazantzákis numa análise sobre a busca do divino, qualquer que seja sua acepção e seu alcance. Desde a visão do presente à do passado, da nostalgia pelo sagrado transformada em algo mais complexo. Não é em vão que seus livros estão sempre em pauta; eles formam parte dessa percepção sobre a literatura que provoca uma discussão intelectual e espiritual sobre questões complicadas e na maioria das vezes sensíveis.

Vida e proezas de Aléxis Zorbás foi muito criticado no país natal do escritor; atacado por mostrar uma imagem rural e duríssima sobre a Grécia contemporânea. O Vaticano chegou a proibir A última tentação de Cristo em 1954 e a igreja ortodoxa grega excomungou o autor. Kazantzákis sempre pareceu muito surpreso com essas percepções de sua obra que a acusavam de escandalosa. Em mais de uma ocasião disse que cada livro é um reflexo de quem o lê e mais que isso, seus defeitos. Chegou a insistir que sua obra não era outra coisa “que um olhar simples sobre a identidade que nos une sem sabermos” como se seus livros fossem na verdade crônicas existencialistas ocultadas pela noção de narrativa. Mas, sua obra curiosamente complexa se torna mais contestadora que tudo: uma análise sobre a incerteza, a dúvida e esse elemento tão humano como misterioso que chamamos com muita inocência de crença, a partir de cenas cotidianas.

O que faz uma obra polêmica? O que provoca, tanto tempo depois da morte de seu autor, que ainda continue surpreendendo e comovendo o leitor? Talvez se trate de uma combinação de fatores onde sua precisa capacidade para desnudar a realidade em suas dores e preconceitos seja sempre poderosa. Depois de tudo, cada livro que se escreve é um reflexo do que se cria e se constrói como expressão formal da realidade. E além disso, um legado perdurável de nossa consciência coletiva. Nossa capacidade para celebrar a única forma de eternidade a que podemos aspirar: uma ideia poderosa através da qual possa abraçar sua própria transcendência.

Ligações a esta post:
>>> A luz e a escuridão do Cristo de Kazantzákis
>>> No Tumblr do Letras, imagens raras de Kazantzákis

* Este texto é uma tradução de “Kazantizakis y el asombro sin edad”.

Comentários

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

A poesia de Antonio Cicero

Boletim Letras 360º #610

Boletim Letras 360º #601

Seis poemas de Rabindranath Tagore

16 + 2 romances de formação que devemos ler

Mortes de intelectual