John Steinbeck muito além da ira e do Éden
Por Roberto Breña
Para Ale, razão
porque Steinbeck é significativo;
A René, por
sua amizade
“Sempre me
pareceu muito estranho. As coisas que admiramos nos homens, bondade e
generosidade, franqueza, honestidade, compreensão e sentimento são os elementos
do fracasso em nosso sistema. E as características que detestamos, astúcia,
ganância, cobiça, mesquinharia e egoísmo, são os fatores do sucesso. Enquanto
os homens admiram as qualidades que citei, adoram o resultado das outras
características.”
John Steinbeck,
A rua das ilusões perdidas
Exceto As vinhas da ira e Ao
leste do Éden, os dois grandes romances de John Steinbeck (1902-1968), e
duas de suas narrativas mais longas, Ratos e homens e A pérola, praticamente
todo o resto da extensa obra desse autor é pouco conhecida e diria pouco lida.
“Pouco lida” é uma expressão necessariamente subjetiva, inverificável e que,
além disso, é quase anódina num mundo em que os “grandes escritores” são cada
vez menos lidos. Em todo caso, meu propósito nestas linhas é aproveitar a
passagem dos 50 anos da morte de Steinbeck no passado 20 de
dezembro como argumento para convidar os leitores a se aproximarem de seus romances
e outras narrativas. Vários desses escritos de ficção não apenas são de excelente
riqueza, mas combinam de diversas maneiras alguns elementos mais característicos
disso que poderíamos denominar “o mundo Steinbeck”; entre eles, a nobreza dos
marginalizados sociais, as amizades à prova de balas, os homens solidários e
solitários ao mesmo tempo, a busca desesperada por relacionar-se com os demais,
a mirada compassiva sobre todos os seres humanos (incluindo os aparentemente
menos dignos dela), e as enormes, quase insuperáveis, dificuldades que têm
praticamente todos esses mesmos seres humanos para comunicar-se uns com os
outros.
Não faltará
quem diga que John Steinbeck não é um grande autor. Isso é o que não só poucos críticos
literários expressaram quando ele recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1962;
o mesmo se disse, certamente, vários críticos franceses quando Albert Camus recebeu
o galardão uma década antes, em 1957. A reserva de desconfiança minha sobre os críticos
literários como tinham Steinbeck e o próprio Camus, não me interessa neste breve
texto. Em primeiro lugar, porque não sou um crítico literário e sim apenas um
leitor a mais. Em segundo, porque meu objetivo é que alguns leitores destas
linhas se aproximem de Steinbeck e, portanto, me deter em múltiplas críticas
realizadas sobre sua obra iria no sentido oposto (embora, resta dizer que talvez,
algumas delas são necessárias). Em qualquer caso, melhor que sejam os leitores
quem decidam se Steinbeck é ou não um grande autor.
Convém começar
por destacar o caráter plurifacetado de John Steinbeck como escritor. Além dos
dois romances referidos no início e sem pretender ser exaustivo, menciono a
seguir os textos mais importantes do escritor e à forma a que pertencem para dar
uma ideia da diversidade de sua obra. Entre suas narrativas breves, cito em
primeiro lugar uma grande novelle, Ratos e homens, e outras que são também
notáveis em vários aspectos: Boêmios
errantes, A rua das ilusões perdidas,
A longa noite sem lua, Chama devoradora (tradução livre para Burning Bright). Entre seus contos, é provável que nenhum seja tão
famoso como “Os crisântemos”, mas
“Arreios”, “Johnny Bear” e “O presente” (primeira parte de “O pônei vermelho”)
têm muita força. Steinbeck é também autor de quase uma dezena de escritos que
não são de ficção, entre eles se destacam Um
diário russo, Correspondente de
guerra, Log from the Sea Cortez (Pelo
mar de Cortés, t.l.) e Viajando com
Charley. O escritor converteu ainda dois de seus livros em obras para o teatro e
escreveu dois roteiros de cinema (Um barco
e nove destinos e Viva Zapata!), assim como o roteiro de
um quase-documentário sobre a luta entre o atraso e o progresso que tem como cenário
um povoado isolado no México indígena e rural de início da década de 1940, O povoado esquecido, t.l.).
Sobre a vida de Steinbeck, algumas pinceladas.
Ele nasceu no povoado de Salinas, Califórnia, em 1902. Filho de uma mãe de
origem irlandesa e de um pai de família alemã, o jovem Steinbeck desfrutou
muito da natureza e da companhia de pessoas de todos os níveis sociais, mesmo ele pertencendo à classe mais abastada do seu lugar. Estou na Universidade
de Stanford entre 1919 e 1925, mas nunca obteve um título. Começou a escrever
desde muito jovem, mas seu primeiro sucesso só chegaria em 1935 com a publicação
Boêmios errantes. Com este livro
sobre um grupo de paisanos mexicanos
que vivem nas margens do povoado californiano de Monterey e que habitam também
às margens da sociedade começa um período bastante frutífero na vida de Steinbeck
uma vez que logo viriam outras obras de grande impacto, como Ratos e homens (1937), Luta incerta (1936) e As vinhas da ira (1939); entre elas, o
escritor publicou a antologia de contos intitulada O vale sem fim (1938). Com esses títulos considerados em conjunto,
Steinbeck não só aparecia com pleno direito na paisagem das letras dos Estados
Unidos como se convertia num autor muito popular nesse país (uma popularidade que
não o abandonaria); conseguia isso mostrando uma consciência social e uma capacidade
crítica de sua sociedade que seriam a marca da casa a partir de então (com
alguns altos e baixos ao fim de sua vida).
Era de uma curiosidade
vital que não tinha limites somada a uma personalidade tímida e introvertida,
mas sempre movida por uma empatia natural pelos seres humanos, sobretudo pelos
menos favorecidos. O fato de ter vivido toda a primeira parte de sua vida na
Califórnia permitiu a Steinbeck ser testemunha não apenas das consequências da
depressão de 1929, mas também do chamado Dust
Bowl (as tempestades de areia e a seca que assolaram grande parte do
meio-oeste e sul dos Estados Unidos durante a década de 1930, deixando milhares
de famílias sem teto e sem sustento). Para um homem em busca de experiências
(para seus livros) e com uma profunda vocação para a empatia com o próximo, as
vivências daqueles anos e o fato de habitar num estado fronteiriço como a
Califórnia (para onde emigram milhares dos assolados pelo Dust Bowl), tudo isso lhe proporcionou material para alguns dos escritos
mencionados no parágrafo anterior, e também para obras posteriores, entre as
quais pode se destacar A rua das ilusões
perdidas (1945). O protagonista deste romance, Doc, é um reflexo do homem
que foi o melhor amigo de Steinbeck: Ed Ricketts, um biólogo marinho que contribuiu
mais que todos para que o escritor tivesse essa noção tão rica e profunda sobre
a amizade, o que se reflete em vários de seus livros.
No plano
pessoal, depois de dois casamentos que por distintos motivos
terminaram mal e de ter dois filhos com sua segunda companheira, em 1950 Steinbeck
conheceu Elaine Scott, a mulher que seria seu grande amor, que logo se converteu
em sua terceira companheira e com quem compartilharia os últimos dezoito anos
de sua vida. Esta fase, no plano das criações ficcionais, se refere à escrita,
dentre outras, de Chama devoradora (1950),
A Leste do Éden (1952) e O inverno da nossa desesperança (1961).
Steinbeck morreu no dia 20 de dezembro de 1968. Desde então, Elaine Steinbeck
se torna em incansável promotora de sua obra e responsável por sua memória e
seu legado.
John Steinbeck e Robert Capa |
Não é fácil
saber a verdadeira ciência pela qual um determinado autor se sente atraído. No caso
de Steinbeck não farei mais que sugerir alguns dos motivos que me levaram a escrever
estas linhas. Se no caminho alguns leitores se interessaram em se aproximar da
obra do escritor, então terei cumprido meu objetivo. Cabe apontar aqui ainda
dos escritos que não são de ficção: Um
diário russo e Correspondente de
guerra. O primeiro é uma espécie de diário que escreveu durante sua visita
à União Soviética em 1948. Essa viagem realizou acompanhado do célebre
fotógrafo Robert Capa, que se encarregou de fazer milhares de fotografias (muitas
delas incluídas no livro). O objetivo de Steinbeck era aproximar-se o máximo
possível do povo russo, do povo simples, conhecê-lo na medida do possível (ele
nada falava de russo) e transmitir esse conhecimento para o público
estadunidense. Numa época em que para muitos do seu país os russos eram uma
espécie de “comedores de criancinhas”, a viagem de Steinbeck resultava
pertinente e corajosa ao mesmo tempo (sua fama de comunista nos Estados Unidos
se dá não apenas pelos temas de seus livros de ficção e de sua maneira de
abordá-los, mas também por livros como este). O resultado é um diário sem maior
profundidade, mas que, me parece, cumpre de sobra sua função. Enquanto Correspondente de guerra, é a reunião
dos textos que Steinbeck escreveu durante a Segunda Guerra Mundial como correspondente
do New York Herald Tribune
(concretamente, na Inglaterra, África e Itália). Estes artigos foram publicados como livro em 1958 com o
título de Once There Was a War. Cabe
sublinhar que o conjunto é mais atraente pelo que diz de Steinbeck do que pelo
que ele diz sobre a guerra – para os que buscarem ler este livro com interesses
eminentemente bélicos asseguro que se sentirão enganados.
Voltando às
narrativas breves de Steinbeck. De início podemos nos sentir meio distanciados
de nossos companheiros desabrigados, alcoólatras e revoltados de Boêmios errantes ou das personagens não
muito diferentes de A rua das ilusões perdidas.
O incrível é que pouco a pouco Steinbeck consegue fazer com que a gente se sinta cada
vez mais próximos, até o ponto em que, ao terminar de ler, sentimos falta da
sua presença. No caso de A longa noite sem lua, o cenário é completamente
diferente: um povoado do norte da Europa ocupado pelas tropas alemães durante a
Segunda Guerra Mundial. O que no papel se contempla como uma ocupação sem
maiores dificuldades, vai se complicando cada vez mais pelo valor moral dos
líderes de uma resistência que resulta inevitável para Steinbeck, mas sobretudo
pela maneira de comportamento do povoado em seu conjunto. Tachada com frequência
de “peça de propaganda”, acredito que é muito mais que isso, embora só seja
porque o processo que sofre um oficial nazista ao longo do relato é um processo
de humanização.
O pônei vermelho é uma novelle de Steinbeck sobre a súbita e
dolorosa maturidade que vive um menino de 10 anos chamado Jody. Este relato é
de leitura obrigatória em muitas escolas nos Estados Unidos. Tem a peculiaridade
de estar dividido em quatro partes que podem ser lidas separadamente. A
primeira, “O presente”, me parece como a melhor; as duas últimas me parecem
bastante soltas. Embora muito menor em tamanho, acredito que algo parecido se
pode dizer de um relato bastante conhecido do escritor, A pérola (que alguns conhecem
pelo célebre filme dirigido por Emilio Fernández em 1947). Ao meu ver esta
história peca por um excesso de simbolismo e de sentimentalismo; a partir de certo
momento a fuga de Kino e Juana se alonga demais. É verdade que o relato contém
algumas passagens memoráveis, seja por seu retrato da condição humana (a inveja
e a ganância) ou por sua crítica social (o parágrafo da primeira parte em que
Kino, um índio, espera que abram a porta da casa do doutor, um homem caucasiano,
é notável nesse sentido), mas no geral me parece que A pérola é um relato superestimado. Diria justamente o contrário de
A longa noite sem lua, que considero
um romance muito potente. Joe, Saul, Ed, Victor e Mordeen formam um quarteto
literário de enorme intensidade. Um quarteto que parece encapsular todos os afetos
e todas as paixões humanas. A protagonista é Mordeen, com sua indestrutível
vontade e seu infinito amor. Personagens muito simbólicas e no fim de contas
pouco críveis? Pode ser, mas me atrevo quase a ameaçar os leitores a conhecerem
este romance e passar um par de horas em companhia de suas personagens.
Mordeen como
protagonista me leva a um grande conto de Steinbeck, incluído em O vale sem fim; refiro-me a “Os crisântemos”.
Nesta ocasião não será a vontade indestrutível da personagem o que nos cativará,
mas o amor de Elisa pelos crisântemos e sua insondável tristeza final (que não se
limita, certamente, a uns ramalhetes deixados pelo caminho). Também em O vale sem fim está incluído outro conto
de amores profundos (e também renegados, embora no fim de contas resultem ser
mais profundos que a morte); refiro-me a “Arreios”, concretamente o amor entre
Peter e Emma contido neste belo relato. Os dois contos mencionados são os dois
que mais gostei, mas essa antologia contém outros tão simples e tão cheios de
solidariedade como “Café da manhã”, tão perturbadores como “Cobra” ou mais
ainda como “O assassinato”, tão cheios de valentia e consciência social como “O
ataque” e tão cativantes e inverossímeis como “Johnny Bear”, um conto em que o protagonista
é difícil de esquecer.
Deixo para o
final Ratos e homens (tudo o que
Steinbeck quis nos dizer está neste título) porque me parece um livro realmente
excepcional (eu o li na escola quando era adolescente e aí começou minha
admiração pelo escritor). George e Lennie são personagens extremamente cativantes.
Sua amizade não tem limites; nem neste mundo nem no além. Na última parte da
narrativa é quase impossível não derramar algumas lágrimas e, sem dúvida ou talvez
justamente por isso, depois de terminar Ratos
e homens é difícil não sentir profunda ou vagamente isso que transmitem todas
as grandes obras literárias: apesar do sofrimento e apesar de tudo, a vida é um
grande tesouro... e estamos vivos.
Ligações a esta post:
* Este texto
é uma tradução de “John Steinbeck más allá de la ira y el Edén”, publicado em Nexos.
Comentários
ótimo texto.