Veredas do Grande sertão
Por Mauro Libertella
Em 1908,
enquanto Henri Matisse dava a conhecer Harmonia em vermelho no Hermitage em São Petersburgo, nasciam
personagens tão diferentes como Simone de Beauvoir, Atahualpa Yupanqui e James
Stewart e se fabricava o primeiro carro Ford T. Nascia também João Guimarães Rosa.
A secreta lógica do mundo acertou que o nascimento se produzisse em Cordisburgo,
um povoado perdido nas Minas Gerais, no coração do vasto mapa brasileiro. Seu pai,
como quase todos ali no lugar, praticava muitas e estranhas profissões: comerciante
de aves, juiz de paz, cabeleireiro e contador de histórias. Essa multiplicidade,
tão própria do aqui e agora em que se formou Guimarães Rosa, marcaria uma das grandes
linhas narrativas que se destaca de sua obra.
Em sua
primeira infância, o menino fugia de casa e vagava buscando aqueles lugares
onde os trabalhadores e os vaqueiros contavam suas histórias enquanto comiam. Podemos
imaginá-lo escondido entre as cadeiras de palha de um casarão, ouvindo
assombrado as narrativas que quarenta anos depois iria polir e transformar em
sua grande obra-prima, o Grande sertão:
veredas. Recordaria, então, aqueles anos dessa maneira: “Não gosto de falar
da minha infância, é um tempo de coisas boas mas sempre com pessoas grandes
incomodando a gente, intervindo, comentando, estragando os prazeres. Recordando
o tempo de criança, vejo por lá um excesso de adultos. Papai era comerciante,
homem muito rigoroso. Quando eu era menino, me levava para caçar com ele, eu
avistava a caça e gritava: Papai! Ele vinha correndo e a caça fugia. Um dia
papai desconfiou que eu gritava de propósito, só para ele não matar os bichos,
e nunca mais me levou. Tempo bom de verdade só começou com a conquista de
alguns isolamentos, da segurança de poder me fechar no meu quarto, trancar a
porta, deitar no chão e imaginar histórias, poemas, romances, botando todo o
mundo conhecido como personagem”.
Algum tempo depois,
um médico amigo da família que havia sido
convidado para jantar, se surpreendeu com a maneira como João olhava as coisas.
Examinou-o, se descobriu que ela era míope e lhe deram uns óculos. Ali se abre
um novo capítulo na vida de Guimarães Rosa: agora podia ler e, calado e sozinho
como era, mergulhou nesse vício sem qualquer mediação, de um modo selvagem.
Menino prodígio, autodidata e de um intelecto voraz; seus biógrafos recordam-no, por unanimidade, que aos sete anos se lançou à empresa de aprender por conta própria, e ao mesmo
tempo, o francês, o holandês e o alemão. O fulgor plurilinguista nunca o deixou
e anos mais diria: “Eu falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto,
um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas
com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática:
do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituano, do polonês,
do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês,
do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E
acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à
compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém,
estudando-se por divertimento, gosto e distração.”
A turma de Medicina de Guimarães Rosa. Registro de 1930. |
Aos catorze
anos descobriu que seu outro fascínio eram os insetos e a vida natural em
geral. Colecionava mariposas, aves mortas e serpentes. Provavelmente isso tenha
influenciado para que anos depois se matricule na Faculdade de Medicina de
Minas Gerais. Do primeiro ano como universitário sobrevive uma anedota. Um colega de
curso morreu por febre amarela e foi velado na aula magna da faculdade. Quando Guimarães
se aproximava do caixão, escutou um rapaz que, reclinado sobre o morto, meditava
em voz alta: “As pessoas não morrem, ficam encantadas”. Quarenta e um anos
depois, o escritor repetiria aquela frase em seu discurso de ingresso na Academia
Brasileira de Letras.
Depois de
diplomado se mudou para Itaguara, um povoado pequeno com poucas casas e sem
médicos. Ali pode exercer sua profissão por quase dois anos. Estava acompanhado
por sua mulher e suas duas filhas. O doutor Rosa atendia de maneira igual carentes
e figuras importantes, trabalhadores braçais e fazendeiros. Assim pode vislumbrar as primeiras arestas de
uma arquitetura única, aquela que se erige no interior profundo do Brasil, distante
das cidades e no ponto tenaz dessa terra que chamam sertão. Durante toda sua
vida, como atividade paralela, quase secreta, e no fundo exclusiva, Guimarães
Rosa percorreria parte do Sertão brasileiro, essa geografia semidesértica que tem como
limites geográficos o Goiás, a Bahia e Minas Gerais. Todavia nada
sabia, ainda, do Grande sertão: veredas.
Aos 28 anos,
o escritor ganhou o primeiro prêmio literário; da Academia Brasileira de Letras
por um livro poesia, Magma. O poeta
Guilherme de Almeida teceu palavras de alto elogio pelo escritor mineiro.
Muitos afirmam que aquele poeta foi ninguém menos que o descobridor de Guimarães
Rosa, vinte anos antes de se tornar o escritor mais importante do Brasil. Magma, que o autor se recusou a publicar, só veio à luz três décadas depois
da sua morte. Mas, a estranha recusa pela publicação não seria um empecilho
para que continuasse sua carreira literária. Em “sete meses de exaltação, de
deslumbramento” escreveu seu primeiro livro de contos, livro que ficou em
segundo lugar noutro concurso. Um ano se passou e foi nomeado cônsul-adjunto em
Hamburgo. Como tantos outros, encontraria na diplomacia o tempo e as condições econômicas
necessárias para tecer tranquilamente sua literatura. Mas, o clima da época não
era dos melhores. Veio a guerra e ele próprio ajudou muitos judeus a fugir das
garras do nazismo. Anos depois, seria homenageado em Israel. E, nos arquivos do
Museu do Holocausto, em Jerusalém, descansa um grosso volume com declarações de
sobreviventes que afirmam dever a vida a Guimarães Rosa.
Antes de
findar a guerra, nos últimos estertores do horror, se mudou para Bogotá, onde escreveu
seu livro editado postumamente, Estas estórias.
De volta ao Brasil, se dedicou a limar as pontas de toda sua produção contística
e publicou, depois desse trabalho, o seu melhor, no livro Sagarana. Mas, ainda faltavam dez anos para o Grande sertão: veredas. O livro esgotou em poucos meses duas
edições e o nome Guimarães Rosa começou a circular pelo mundo literário como um
que nunca desapareceria.
Entre 1957 e
1951 alterna sua residência entre Bogotá e Paris e em 1952 regressa em
definitivo para sua terra. Passou dez anos sem publicar, tempo em que seu
primeiro livro continuava sendo vendido, mas seu nome passando a um segundo
plano. Pensava-se que fosse mais um autor de um livro só. Até que, daí a quatro
anos derrubou todas as especulações com a força implacável de dois títulos.
Primeiro, veio Corpo de baile. Mas, o
impacto definitivo veio meses depois; em maio, Guimarães Rosa publica seu romance
insuperável.
Ninguém ficou
indiferente. Como acontece sempre com os grandes livros, aqueles que desestabilizam, as críticas não foram em uníssono e tudo se dividiu de imediato entre os
fervorosos defensores e os mordazes detratores. Dois anos depois, a revista Leitura publicou um dossiê intitulado “Escritores
que não conseguem ler Grande sertão: veredas”.
Um ano antes, o crítico Alfonso Arinos havia distinguido o efeito da leitura
num belo parágrafo: “cuidado com este livro, pois Grande sertão: veredas é como
certos casarões velhos, certas igrejas cheias de sombra. No princípio, a gente
entra e não vê nada. Só contornos confusos, movimentos indecisos, planos
atormentados. Mas, aos poucos, não é luz nova que chega: é a visão que se
habitua. E, com ela, a compreensão admirativa. O imprudente ou sai logo, e
perde o que não viu, ou resmunga contra a escuridão, pragueja, dá rabanadas e
pontapés. Então, arrisca-se chocar inadvertidamente contra coisas que, depois,
identificará como muito belas”.
Guimarães Rosa. Cerimônia de posse na Academia Brasileira de Letras. |
Durante a década
seguinte de sua vida, Guimarães Rosa editaria alguns livros de contos que
mostram a maestria da narrativa alcançada em estado puro. Em 1967, aceita finalmente
a entrar para a Academia Brasileira de Letras, honra conferida alguns anos antes e
que o escritor não havia aceitado por medo de não conseguir se apresentar a
altura. O aceite foi seu último ato. Três dias depois, em seu apartamento em Copacabana,
aos 59 anos, com uma saúde frágil, Guimarães Rosa morria em silêncio. No dia
seguinte, o Jornal da tarde, um dos diários
de São Paulo, estampou em sua capa um título imenso: “Morreu nosso maior escritor”.
No momento
de sua morte, a literatura latino-americana já havia ultrapassado a barreira do
Boom e os ecos daquele estopim perduraria com uma longevidade obstinada. As obras
fundamentais do fenômeno já haviam sido cozinhadas e servidas em bandeja aos
mais diversos paladares do mercado europeu e nesse ínterim a literatura
brasileira tramava seu próprio rumo. Pode-se afirmar que as décadas de 1930 e
1940 formaram a era de ouro da narrativa brasileira. Em apenas duas décadas os
mais diversos escritores do vasto país conseguiram, armados das ferramentas da
renovação formal, da busca temática e da apropriação das heranças europeias, fazer
deslanchar a tímida literatura que vinham fazendo. E fizeram bem.
Dessas décadas,
os nomes mais reconhecidos são Guimarães Rosa e Jorge Amado. Mas, em 1943, Clarice
Lispector publicaria seu primeiro romance, Perto
do coração selvagem, sobre o qual a crítica diria que era a primeira narrativa
dentro do espírito e da técnica a Virginia Woolf. Os caminhos
estavam, assim, abertos. E podemos pensar que o Boom chegou ao Brasil um pouco
antes. Ou melhor: o Boom no Brasil foi um estouro paralelo, de tentativas próprias,
fora e dentro da grande ponte que estendeu a literatura latino-americana para além de suas fronteiras. Porque também precisamos pensar nesse gênero tão único,
enraizado nos alvores das letras brasileiras: a literatura do sertão. Curiosamente,
as diferentes tradições latino-americanas, de pouquíssima antiguidade em
relação com o Velho Mundo, se apropriaram dos movimentos estéticos europeus,
mas cultivaram seu próprio desenho, uma literatura que só poderia ser escrita
deste lado do mundo. Na Argentina aconteceu com o que se chama de gauchesca. A
literatura do sertão brasileira é um fenômeno parecido. Surgida da intrincada
topografia do Brasil, os romances do sertão conjugam os mil e um dialetos que
formam a totalidade do país, com histórias devedoras do picaresco e um muito
elegante componente local. Alguns dos autores mais importantes nesta linha
foram José Lins do Rego e Graciliano Ramos. Ambos morreram um pouco antes da
publicação de Grande sertão: veredas.
E, podemos dizer sem maior preâmbulo: Grande
sertão: veredas leva a narrativa do sertão ao seu ponto mais alto e seu fechamento.
Como acontece com Martín Fierro no limite da gauchesca, o romance de Guimarães
Rosa absorve toda a tradição e constrói o artefato culminante, a expressão máxima
do gênero.
Como acontece
em muitas obras, a história que se conta em Grande
sertão: veredas pode se resumir em um parágrafo, num só argumento escorregadio
que nos diria pouquíssimo sobre o livro. Essa trama seria a seguinte: Riobaldo,
um velho cangaceiro do Brasil semiárido, relata sua vida e as vidas que conheceu
no sertão, num extenso monólogo para um ouvinte mudo cuja presença gravita com
a força de um segundo narrador. Riobaldo tem um segredo: fez um pacto com o
Diabo e agora é invencível. Está condenado assim a vencer Hermógenes, a
representação do mal, e cujo oposto é Diadorim, a figura do bem em Riobaldo.
Assim, no fragor dessa simples e complexíssima trama, se desenvolve paulatinamente
uma narrativa que afirma e se contradiz, e onde se narra, antes de tudo e
sobretudo, uma forma. Com recursos herdados de James Joyce (hoje se diz que o Grande sertão: veredas é o Ulysses latino-americano), com o agora clássico
mas então vanguardista fluxo de consciência, o romance de Guimarães Rosa se ergue
como um edifício de uma arquitetura trabalhadíssima, onde a trama e a forma já não
podem se pensar como pares binários porque absorvem mutuamente, se sobrepõem até
o ponto de se dissolver. O autor joga com a linguagem e a estira até o ponto em
que a palavra “experimentação” deixa de funcionar. Porque é algo mais que apropriar-se
da linguagem e experimentá-la. É, talvez, e por que não, a invenção de uma
língua, destilada com a passagem dos anos, decantação de tradições orais e escritas,
europeias e americanas.
Em 1967, um
pouco antes da morte de Guimarães Rosa, uma tradução para o espanhol desse
livro foi concluída e no mesmo ano publicada. É curioso: enquanto em seu
modesto apartamento no Rio de Janeiro o mineiro deixava de respirar, seus livros
começavam a ser traduzidos; essa forma tão literária da imortalidade, a glória
póstuma, começava a se consolidar. A estranha tradução para o castelhano foi do
poeta espanhol Angel Crespo para a Seix Barral. Um pouco antes do fim,
Guimarães Rosa havia dito, com extrema bondade, que a tradução superava o original.
É que, se a tradução é por si uma prática do impossível, Grande sertão: veredas apresenta complexidades demasiado únicas
para se transpô-las para outra língua. Assim, disse o tradutor, então: “A
linguagem de Riobaldo, narrador de suas próprias aventuras, possui uma variedade
de termos, expressões e até da sintaxe do interior do estado de Minas Gerais.
Apontam nela certos arcaísmos correntes no interior do Brasil e que buscamos correspondência
noutros da estirpe espanhola. Mas o mais característico de sua maneira de falar
é o emprego impróprio de certas palavras que, sem dúvidas, modificam o contexto
da frase”.
O livro é, além
disso, riquíssimo em neologismos, alguns cunhados na concentração de várias vozes
numa palavra e outros que foram chamados de “cultismos”. Claro, isso não pode nos
dar mais uma pálida ideia das dimensões titânicas da inventiva linguagem do romance.
Só a leitura poderá desentranhar essas complexidades. Inclusive poderíamos afirmar
que este livro foi escrito para ser recitado, lido em voz alta. A narrativa de Grande sertão: veredas é subsidiária e
remite em cada movimento ao ritmo falado, nas subidas e descidas desse longo
discurso de Riobaldo. A respeito do título, vale dizer que a tradução espanhola
é quase literal (Gran sertón: veredas). As veredas
são as correntes de água que bordeiam os vales. Assim, uma tradução castelhana
do livro poderia intitular-se Gran
Desierto: Arroyos. Mas, um dos grandes méritos de Angel Crespo foi justamente
o de preservar certos regionalismos, não os submeter à lógica do castelhano. A
tradução mantém o que talvez tenha feito grande o livro: ser, com toda sua
realidade e suas contradições, uma visão total do mundo. Uma visão total em sua
parcialidade, uma visão subjetiva, como são todas as visões. Não é um romance à
maneira do século dezenove, que reflete a totalidade social, mas um romance de
linguagem e de ação que fala do sertão a partir de todas as perspectivas
humanas e linguísticas dessa realidade.
Em 1965,
Emir Rodríguez Monegal, um dos primeiros a trabalhar a fundo a obra de Guimarães
Rosa em língua espanhola escreveu: “Pela magnitude e de sua empresa, pelo nível
de criação verbal e mítica em que se situa o Grande sertão: veredas, pela sabedoria de seu enforque humanístico e
a ironia experiente de sua visão narrativa, esta obra de Guimarães Rosa é uma
das maiores criações da literatura latino-americana de então. É, também, uma
síntese magistral das essências dessa enorme, desmesurada, cindida terra de
Deus e Diabo que é sua pátria”.
Agora, tantos
anos depois de sua publicação, e com uma quantidade infinita de ensaios críticos
que o livro tem recebido pode-se tê-lo como uma grande estrela que flutua no
imenso oceano da criação, é uma obra
moderna que apagou de nosso continente seu regionalismo e ao mesmo tempo que o compreendeu impecavelmente. Um livro soberbo, cujas sucessivas reedições são um
reconhecimento sobre uma das mais completas e diferentes literaturas do mundo.
Ligações a esta post:
* Este texto
é uma tradução de “Gran Sertón: 50”
publicado em Página 12.
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