Cortar o barato
Por Andrea Valdés
Audre Lorde |
Em seu
impressionante ensaio sobre Sor Juana Inés de la Cruz, Octavio Paz avaliou com
luvas de pelica a relação dela com sua mecenas, amparando-se na comum
fórmula sobre “a cumplicidade feminina”, como se seu desejo por ela, que brota
e por pouco incendeia seus versos, fosse um espelhismo barroco. Intelectualizando-a
a afastou dessa tradição iniciada por Safo e que outras continuaram com maior ou
menor riqueza. Às vezes, inclusive, de maneira anônima. Sempre órfãs. Na
introdução de Sita, Kate Millett dá conta
dessa solidão. “Eu rezava todas as noites a Proust porque queria sua música,
sua maneira de entender os matizes e a discrição, essa ousadia sua que insistia
na essencial e às vezes terrível verdade, embora tivesse que empregar disfarces.
[...] E a Violet Leduc, minha única modelo em todo este caminho de escuridão
até chegar a Safo. Não havia existido uma linguagem para este amor; tampouco
exemplos”. Pouco antes nos informa sobre a tímida acolhida experimentada por seu livro
nos Estados Unidos, mencionando que foi uma decepção que Sita não desse uma melhor imagem do amor lésbico e o que foi seu
último desenlace ficou fora do texto. Quem dá título ao livro acabou suicidando-se,
o que embaça ainda mais sua leitura.
Dito isso,
eu a segui com atenção e, sim, a desfrutei, em toda sua sutileza e complexidade,
em sua música, embora nesse eu que flutua, se rearma e desdobra o primeiro
gesto existisse algo que me irritasse. Meses antes comecei a ler com interesse o
romance de Eva Baltasar, Permagel, e não concluí. Foi por essa música, que
neste caso percebi sem matizes, um tom monocórdio e frio. Que vazias as
reflexões de sua protagonista, que eu mais insosso. Que outras a celebrem! Consolei-me
um pouco pensando na candidez de Olivia, aprendiz na qual se projetou Dorothy
Strachey para narrar a atração entre uma professora e uma aluna. Sim, aqui encontrei
certa afetação, o achaco pela juventude de sua protagonista. Como Sita, essa obra está escrita em
primeira pessoa. Também Teresa e Isabel,
uma paixão, de Violette Leduc, ou Ver
uma mulher (tradução livre), de Annemarie Scwharzenbach, duas obras muito
notáveis e que acertaram sendo breves.
Pergunto-me
por que essa insistência no monólogo interior que em seus melhores momentos
desemboca numa prosa lírica e febril e nos mais difíceis se torna hermética,
obsessiva, e até mesmo suicida. É que entre as mulheres tudo há de ser, sempre
assim, intenso? À princípio não fica claro para mim se o tormento é aqui reflexo da
impossibilidade de um amor ou da dificuldade para narrá-lo, que na mulher sempre
será maior, sendo um sujeito historicamente negado (sim, é preciso repetir isto , até que deixe de ser uma verdade). Talvez é por isso que em muitos casos
sua escrita está tão relacionada ao corpo, como defendeu Hélène Cixous: “Fui criada a
leite de palavras. As línguas me alimentaram. – Abre a boca. – Não. Deixei-me
alimentar só pela voz, pelas palavras. Havia fechado um trato: só engoliria se
me faziam ouvir”. Monique Wittig levou o assunto mais longe, soletrando-nos “ciprina”.
Descobriu para nós essa palavra.
Se politicamente
gosto da ideia de as mulheres criarem sua própria sintaxe e esta fale um idioma
estranho ao logocentrismo, admito que literariamente me cansa o torvelinho
textual que nos propiciam. O profundo precisa ser sempre sinônimo de visceral? Tampouco deixaremos de nos surpreender que quem se viu obrigada a viver no espaço doméstico tenha que produzir uma escrita confinada. Se seu amor é socialmente condenável, mais do mesmo. Não
é em vão que os espaços são tão importantes: do internato de Olivia a esse
apartamento de Sita em que se sente deslocada e aos poucos vai reconquistando-o.
Em breve prisão, Sylvia Molloy levou ao limite este jogo de interioridades e,
outra vez, deixei uma obra sem concluir. Tenho para mim que, se Virginia Woolf reivindicou
um quarto todo seu foi para livrar-se de casa, não se prender em seu interior. Por
sorte, seu Orlando é como Sor Juana: uma
anomalia. Ela que tanto trabalhou o monólogo interior, o descartou em seu romance
mais lésbico, o que escreveu pensando em sua amante e sua mansão de 365 portas
(é o que dar ser rica: um quarto por dia!).Aí a música não é a de uma mulher
angustiada e por se desintegrar, mas a de um ser que se metamorfoseia e se reinventa.
Tudo é dinâmico. Imagino que se isto foi possível é porque escreveu em plena
sedução, não como uma sobrevivente de uma grande desilusão.
Mas, é pedir
muito que nos contem mais sobre amores lésbicos insistindo no que teve de belo e construtivo
e não no seu aspecto efêmero ou doentio? É pedir muito, livros como Zami? Não deixa de ser irônico que seja Audre
Lorde, quem tanto defendeu o ódio como ferramenta política, quem agora me lembre
que o amor, inclusive quando fracassa, não mina a identidade. Apenas nos ensina uma nova maneira de escrever nossos nomes. E isso é muito
valioso. Vamos dar a atenção que merece e busquemos as Zamis que existiram em
Sita. É certo que existem.
* Este texto
é uma tradução de “Cortar el rollo”, publicado no jornal El País.
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