A pele, de Curzio Malaparte
Por Pedro Fernandes
Curzio
Malaparte é um homem do seu tempo e este romance é, talvez, a prova mais sincera
disso. Formou parte com os soldados que lutaram na Primeira Guerra Mundial,
quando foi agraciado com o título de capitão no Quinto Regimento Alpino; membro
do Partido Nacional Fascista até meados dos anos 1930, quando os vapores de uma
nova guerra pairavam sobre a Itália. Foi nessa ocasião que escreveu vários
artigos voltando-se contra Mussolini e Adolfo Hitler, o que levou ao exílio
forçado na ilha de Lipari por cinco anos, entre 1933 e 1938; depois disso,
ainda foi preso várias vezes e nesse mesmo período que cobre quase uma década
da sua vida construiu uma casa na Ilha de Capri que serviu de recepção a várias
figuras importantes no fim do segundo conflito. A título apenas de curiosidade,
foi esta casa cenário de Le Mépris,
de Jean-Luc Godard, filme em que estrelaram Brigitte Bardot e Fritz Lang e baseado
no romance de mesmo nome de Alberto Moravia.
A pele cobre o período final da Segunda
Guerra Mundial, quando a Itália acorda o armistício com os Aliados, isto é, a partir
de 1943, mas não se restringe a tanto. Centrado em Nápoles, a narrativa principia
pela presença das forças militares dos Estados Unidos que escolheram a cidade
porque era o porto mais ao norte que poderia receber apoio a partir da Sicília.
Mas, não é o front, nem as batalhas em
campo aberto sobre o que se detém o narrador semiautobiográfico. Tampouco o
leitor encontra uma repetição em linha reta dos acontecimentos que culminam no
fim do conflito. Malaparte, entretanto, cumpre com os amigos estadunidenses, a
grande jornada de libertação da Itália, de Nápoles a Milão, passando por Roma.
E nesse curso registra os grandes horrores, sobretudo o contínuo cenário de
mortos e perda de alguns dos seus mais importantes companheiros. Se um acontecimento
importante para a derrocada do poderio nazifascista na Itália, a prisão de
Mussolini, é registrado ao acaso por uma notícia que escuta no rádio num
rompante casual, a morte do ditador não deixará de ser mostrada, de forma,
titubeante, en passant, não como um
triunfo, mas como o indício sobre a possível retomada de uma ordem em torno de
um bem-comum, a própria ideia de nação, desfeita pela barbárie.
Malaparte se
dedica, à maneira de um cronista, ao registro sobre as rápidas transformações
experienciadas pela cidade agora ocupada de figuras sempre respaldadas como os verdadeiros
vitoriosos de um conflito de base eminentemente europeia; sobre as esperanças
que douram os grupos perseguidos pelo regime hitlerista, a diversificação dos ideais
de liberdade de existir e de pensar e os rastros de destruição, sobretudo moral
deixados pela guerra. Nápoles é o ponto de partida e de chegada dessa jornada.
E nesse intervalo de tempo, somam-se outras memórias do escritor, sua relação com
as forças estadunidenses com as quais conviveu durante a restauração da ordem
no seu país. Além da dedicatória à memória do coronel Henry H. Cumming e ao que descreve como
“todos os bravos, bons, honestos soldados americanos, [seus] companheiros de
armas de 1943 a 1945, mortos inutilmente pela liberdade da Europa”, toda a obra
finda por ser uma louvação, revestida de todo clichê militar sobre a honra dos
estadunidenses descritos por oposição à miséria do continente europeu e sempre
bafejados por uma aura iluminadora que ressalta um caráter heroico dos Estados
Unidos. Reproduz, não ingenuamente, é bom que se diga, a consciência desse
próprio tempo.
Se em várias
passagens o leitor não deixará de perceber certo complexo de inferioridade em
relação aos povos puros, como faz crer seu discurso eivado de certos traços
ideológicos do nazismo, tal rebaixamento responderá por uma alternativa de reconstrução
de uma dignidade perdida. À primeira vista, a oscilação poderá parecer uma incoerência
discursiva, mas, não tardará para se compreender que esta é puramente uma
estratégia que tenta apreender a maneira como o escritor percebe a condição do
seu povo. Quando se dirige ao leitor, Malaparte não deixa de fazer escorrer o
veneno contra o que com ele logo se compreende como degradação dos valores, éticos
e morais; mas, quando em contato com o estadunidense sua posição é de defesa do
seu povo, ressaltando justamente o contrário, uma dignidade e compreendendo o
que o estrangeiro vê como degradação humana como produto da necessidade de se
preservar, acima de tudo, a vida.
Assim, parece
justificar o título de seu romance. A perda ou a preservação da dignidade é um
mal da pele, extraindo daqui um sentido individual, o de salvar a própria pele.
Quer dizer, salvar a própria pele, não perecer, é uma condição, em si,
diversa, vária, de acordo com quem vê. Malaparte entende que apenas os italianos
têm a autonomia, para não dizer o direito, de sublinhar a condição de
rebaixamento moral que os definem e criticá-la como um mal a ser combatido. Assim
se justifica a dupla visão, desconexa, incongruente e por vezes contraditória,
que anima a narrativa de A pele. O
que resta ao vencedor, compreende, é puramente respeitar tacitamente o mal dos
vencidos, repetindo o conteúdo da epígrafe colhida de Agamenon, de Ésquilo: “Se respeitam os templos e os Deuses dos vencidos
os vencedores se salvarão”.
Talvez
fazendo jus ao sobrenome de seu pseudônimo (Curzio Malaparte foi o nome escolhido
por Kurt Erich Suckert), isto é, a parte
má (por oposição a Bonaparte), com
o estadunidense Jack, transita por toda a periferia de Nápoles interessado em testar,
como se um diabo, os limites da honra do amigo numa cidade onde mulheres vendem
suas crianças por um maço cigarros, ou por menos que isso entregam-se à
prostituição, onde pais exploram sexualmente suas filhas, homens vendem negros como
objeto de exibição pública, outros prostituem-se em troca de comida. Da mesma
maneira se porta quando se utiliza de uma sorte de conclusões adversas para
justificar aos estadunidenses que toda esta desumanidade significa a única
alternativa num mundo de total nulidade da vida. Mas, as convicções do homem
ante o civilizado se distinguem totalmente do que ele próprio acredita – seja
porque se sente parte atingida no rebaixamento do seu povo, seja porque se guia
ainda por um princípio heroico incapaz de perdurar no mundo em que vive, o de
salvação do espírito pela salvação do corpo.
Um exemplo
disso se apresenta ao longo do capítulo “O filho de Adão”. Nele, Malaparte
relata o encontro com o amigo gay Jeanlouis; sem a presença do nazismo, Nápoles
se torna uma espécie de oásis da liberdade e, para a cidade, retornam grupos em
fuga das mãos dos nazistas. O reencontro é uma das “provações” a que Malaparte
submete o amigo Jack. A ocasião servirá para que se rompa a frágil máscara (e
possível) de um escritor tomado pelos ideais plurais ou mesmo interessado
apenas no registro de um tempo em abertura sem os julgamentos rasos, tendenciosos
e deterministas absorvidos da complexa engenharia ideológica de seu tempo.
Há, em A pele, a construção de uma leitura
política do seu contexto impossível de descartá-la porque visível à superfície
da narrativa. Até certo ponto é válida a leitura que faz das incongruências das
consciências políticas fundadas numa utopia e formadas a partir de uma leitura
simplista das ideologias, substituindo um modelo marcado mais pela cega paixão
que pela visão reflexiva e ponderada. A elevação do ideal marxista, por
exemplo, à categoria de um dogma, no sentido estrito do religioso, é a face
diferenciada, mas alinhada de alguma maneira com aquilo que já tinha dado os
sinais de pura loucura, o extremismo que havia condenado a Europa à barbárie.
Mas, tudo está à serviço desse lugar de destruição dos povos; falta ao escritor
uma consciência capaz de sepultar alguns dos males pela imposição de modo de
pensar estritamente centrado na preservação de uma só via de ver as coisas.
O relato do convívio
com o grupo de jovens do amigo Jeanlouis mostra os fins próprios do pensamento
de Malaparte. Deixa de ser a provocação má,
questionadora, para recair numa reflexão carregada de preconceito e digna das conclusões
estapafúrdias que voltam a estar na moda neste início de século. Para o narrador,
o declínio da Europa que levou os povos à guerra ainda em curso quando narra A pele se deveu em parte a uma
liberalização dos costumes, com o sublinhado importante para a homossexualismo,
ou para o que designa, quando não com este termo, como pederastia. Não fosse o
acentuar uma causa, talvez pudéssemos
compreender a ponto de concordar com a primeira linha do raciocínio. Mas, dessa
observação tudo se multiplica numa contínua cascata de compreensões marcadas
por um preconceito em nada mais velado. Para ele, há uma relação estreita entre
o marxismo cultural (e mesmo político, uma vez que nada está fora dessa conjuntura)
e o homossexualismo. Pior: concorda
que a pederastia é uma atitude na moda entre os marxistas, capaz mesmo de contribuir
para uma homossexualização (no
sentido de corrupção dos corpos) da sociedade. Para espanto ou não do leitor,
essas ideias encontram reverberação no mesmo debate agora corrente que atende
pelo ridículo nome de ideologia de gênero
como estratégia de gays para a corrupção da família e dos jovens. E o leitor fica
entre o espanto da naturalidade do narrador no estabelecimento do impropério ou
porque tal visão em voga no nosso tempo nos coloca ainda mais perto de um
triste tempo na história da humanidade. Toda essa exposição, aliás, reveste-se
desta condição entre a indignação, a preocupação e o espanto.
Mesmo a
louvação aos estadunidenses não se oferece totalmente como uma verdade. Não
podemos esquecer a quem se dedica A pele;
nem da baba irônica que envolve todas as situações ou um fio de violento sarcasmo
que aviva o lugar desse homem no mesmo grupo dos fortemente marcados pela descrença
e pela degradação. Ele próprio percebe-se, na redoma narrativa que constrói pela
intimidade com o leitor, capaz de se submeter na condição dos marcados pela
desvalia. “Se tivesse uma criança, talvez a vendesse para poder comprar cigarros
americanos. É preciso sermos homens do próprio tempo. quando se é covarde, é
preciso ser covarde até o fundo”. A pele é
um romance sobre a dignidade humana, incapaz de resistir na adversidade – seja
quem for. E se sem ela tudo o mais entra em colapso, não sobra, diz-nos o narrador,
nem mesmo a capacidade de se perceber envolvido pela nuvem que o leva a repetir
os mesmos indícios da barbárie, que são esses que se revelam com o discurso de
estabelecimento da ordem e da moral. Assim,
sobre a intervenção estadunidense num conflito cuja responsabilidade não é dos
Estados Unidos, percebe que a irreprovável honradez do seu povo também não
resistiria às mesmas provações vividas pela Europa.
A
intervenção estadunidense é vista então como a mais lamentável forma de
rebaixamento do velho continente. Sempre foi depositada à Europa a imagem de
espelho para o mundo e no auge da Segunda Guerra Mundial a barbárie atestou
justamente o não-modelo. Os Estados Unidos, como os grandes vencedores do conflito
e pela opulência como se portam, dos instrumentos de guerra à maneira impecável
como se vestem os soldados, são como se um filho agora adulto e em melhores condições
que se volta para corrigir o senso perdido dos pais. O que ainda aviva algum
orgulho perdido é que os pais são os únicos possuidores, para bem e para mal,
da experiência. E isso se verifica na erudição com que o narrador reveste sua
narrativa, sublinhado certo fôlego enciclopédico que ressalta o valor da
tradição clássica – que os estadunidenses jamais poderão alcançar se não por
uma rigorosa formação que inclui os anais europeus. Isso também explica a implicância
de Curzio Malaparte para com a vanguarda, igualmente rebaixada como produto da
mesma gente marxista e gay.
Fundem-se,
assim, homem, pensamento e obra. E todas essas esferas estão abaladas pelos
horrores da guerra. Situado num tempo de aberturas e, logo, de contradições, A pele,
enquanto retrato de um tempo, não poderia se portar de outra maneira. No fim, a
contradição é o signo mais perene da própria humanidade, talvez sua condição
mais degradante e impossível de escapar dela.
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