Walt Whitman. Vida e aventuras de Jack Engle
Por Rafael Narbona
Poeta de uma
nação ou poeta dos que estavam à margem? Foi dito que Walt Whitman (Nova York, 1819 –
Nova Jersey, 1892) era um “vagabundo semidivino” (Borges), “um magnífico
preguiçoso”, um jornalista marcado pelo fracasso, um copista negligente, um
professor sem vocação, um bêbado de bom coração, um libertino. Nada disso o impediu
de se tornar um poeta da democracia estadunidense, a voz profunda da América livre
e inconformista. Folhas de relva (Leaves
of Grass) é a Ilíada do Novo Mundo, a
Divina comédia do jovem e insolente continente,
o Dom Quixote de um país que ainda
sonha com a última fronteira. Para Whitman, a democracia é a religião do povo estadunidense.
Não se trata de uma fé pagã, mas de um misticismo libertador que combate o fanatismo
e a tirania. Deus, a Natureza e o Homem compõem um todo indissociável que merece
ser cantado e celebrado.
Sacerdote do
otimismo, Whitman nunca experimentou as dúvidas de Hamlet ante a caveira de
Yorick. O célebre poema “Canção de mim mesmo” não é uma homenagem ao Ser, ao
Progresso e à Condição Humana: “Sou o poeta da mulher tanto quanto do homem, /
E digo que é tão bom ser mulher quanto ser homem, / E digo que não há nada
maior que a mãe dos homens. // Canto uma nova canção de dilatação ou de
orgulho, / Já nos subestimamos e nos insultamos demais, / Proo que grandeza é só
desenvolvimento.” Amigo das feministas e dos abolicionistas, Whitman custeou a
primeira edição de Folhas de erva em
1855. Apenas Emerson elogiou a publicação. Whitman não desanimou, pois sabia
que sua voz não era simplesmente a de seu eu, apenas a de todos, incluindo os
humilhados e esquecidos. “Por mim passam muitas vozes mudas há tanto tempo, /
Vozes das intermináveis gerações de escravos, / Vozes das prostitutas e pessoas
deformadas, / Vozes dos doentes e desesperados e dos ladrões e anões, / Vozes
dos ciclos de preparação e acreção, / E dos fios que conectam as estrelas – e do
útero e do sêmen paterno, / E dos direitos dos que são oprimidos pelos outros,
/ Dos deformados e insignificantes e tontos e imbecis e desprezados, / Do fog
no ar e besouros rolando bolas de bosta.”
Até há pouco,
só se atribuía um romance a Whitman, Franklin
Evans, or the inebriate (Franklin Evans, ou o bêbado, em tradução livre).
Durante três dias febris acompanhados por abundantes taças de vinho do Porto, o
poeta compôs uma obra que mais tarde consideraria “uma autêntica porcaria”.
Paradoxalmente, vendeu vinte mil exemplares, uma cifra que excede largamente as
vendas das sucessivas edições de Folhas
de relva. Saber que Whitman não se equivocava ao julgar seu romance, corrobora
que o sucesso nunca é um bom critério para determinar o valor de uma obra. A
descoberta de um romance publicado em folhetim em 1852 no The Sunday Dispach (leia mais no quadro abaixo) amplia nosso conhecimento
sobre seu autor. Seria absurdo afirmar que se trata de uma joia literária, mas constituiria
uma grave negligência negar sua importância como documento lírico, introspectivo
e esclarecedor. Desde a primeira página, se aprecia a vontade de imitar Dickens,
narrando as aventuras e desventuras de um jovem aprendiz de advogado que ignora
acontecimentos essenciais de seu passado.
Jack Engle
sofre uma orfandade precoce, convertendo-se num rapaz desamparado que vagabundeia
pelos subúrbios. O encontro com um respeitável e compassivo leiteiro o salva de
umas ruas onde só prosperam a violência, o abuso e a exploração. Durante um
tempo trabalhará para Covert, um autêntico vilão que exerce a advocacia para enriquecer,
empregando toda sorte de artimanhas para extorquir suas vítimas. Engle descobrirá
que a corrupção não é uma epidemia das baixas classes, mas um vício que circula
por todas as camadas sociais. Seu desengano não desembocará num ceticismo trágico,
mas num vitalismo invencível. Os vícios dos seres humanos não podem ofuscar os
afetos mais nobres, como o amor e amizade.
Vale a pena
a leitura de Life and Adventures of Jack Engle (Vida e aventuras de Jack
Engle, em tradução livre)? Sem dúvida, mas não por sua trama – algo rudimentar e precipitada –,
mas pela vibrante humanidade de Walt Whitman, que resplandece em cada página.
Seu retrato da infância refuta os tópicos: “Ah, as crianças pensam mais do que
muitos imaginam!”. As crianças são criaturas imaginativas e muito sensíveis, que
sobrevivem às piores desgraças porque nelas palpita “o espírito da aventura”. A
velhice não desfruta desse privilégio. Wigglesworth, o contador do escritório
de Covert, entrega-se ao álcool para esquecer os bons tempos de sua juventude. Sua
paixão pela bebida foi a causa de infortúnio e o bálsamo de sua velhice, pois embriaga
sua consciência e atordoa seu juízo. Sua conversão ao Metodismo só agrava seu
sofrimento, pois a sobriedade imposta pela religião propicia uma triste lucidez.
O alcoolismo,
que cobrou um dramático dízimo com a família Whitman, é um tema recorrente na
obra do poeta. A Vida não se cansa de nos convocar, mas a Morte também nos reclama
e nem sempre conseguimos escapar ao seu chamado. O gênio de Whitman brilha especialmente
em sua visão de Nova York, então um labirinto de becos sombrios, com algumas mansões
vitorianas e uma infinidade de vivendas simples. As canções que se escutam em
suas esquinas, às vezes toscas e grotescas melodias, aliviam momentaneamente o
desalento inerente à pobreza. “Que estranho encanto há na voz humana, que
supera todos os instrumentos na ocasião de causar certos efeitos”. Nova York
pode despertar a melancolia, mas não o tédio: “Gostava de viver na gloriosa Nova
York, onde, se há alguém parado, que não sabe com que se entreter deve ser por culpa
sua”.
Os últimos capítulos
de Jack Engle são particularmente memoráveis.
Num, se descreve o cemitério de Nova York. Depois de ler os epitáfios de alguns
túmulos, Engle comenta entusiasmado: “Chegou a ocasião de uma nação de homens
livres que superaram tudo o que conheciam enquanto felicidade, bom governo e
autêntica grandeza”. Noutro, um assassino convicto lamenta a dor dos homens que
vivem sob as inclemências da sorte: “Oxalá o demônio no jardim do Éden houvesse
revelado ao jovem o caminho para a felicidade”. O temperamento dionisíaco de
Whitman se manifesta com um feliz desenlace que repara todas as injustiças. Seu inesperado romance reafirma a imagem de um poeta que concebeu a América como um “Terra
livre”, onde a ambição e a coragem podem superar qualquer obstáculo.
Poeta nacional
ou poeta dos da margem? Quando em finais de 1855 Whitman foi ao hotel Astor
para visitar Emerson, não o deixaram entrar por seu aspecto boêmio, mais próprio
de um mendigo que de um cavalheiro. Não é uma anedota banal, mas a prova de que
Whitman foi o poeta de uma nação dos da margem. Os pobres, os derrotados descansam
sobre sua alma de infinito e sua “arpa lavrada de um carvalho antigo” (Ruben
Darío). Jack Engle encarna o espírito de uma civilização que manchou sua alma com
os piores pecados, mas que se redimiu com a glória de seus poetas, o caráter temerário
de seus sonhos e incurável amor à liberdade.
Folhas inéditas de Walt Whitman
Embora Vida e aventuras de Jack Engle,
o inédito de Walt Whitman encontrada em 21 de fevereiro de 2017 (cf. falamos numa edição de então, do nosso Boletim Letras 360º), tenha
sido publicada um dia de forma anônima, o escritor estadunidense havia deixado
anotações sobre a existência da obra em seus cadernos. Foi assim que Zachary Turpin, aluno do doutorado
na Universidade de Huouston, encontrou o livro: leu nos cadernos do poeta
referências a três personagens – Smytthe, Jack Engle e Wigglesworth – que pareciam
participar em várias tramas apenas esboçadas.
Turpin cruzou
dados e encontrou mesmo um anúncio de 13 de fevereiro de 1852 no jornal The New York Daily Times. Nele se
advertia da iminente publicação em folhetim no The Sunday Dispatch. O livro se intitulava
Life and adventures of Jack Engle e foi
publicado de forma anônima. O feito do The
Sunday Dispatch, um dos mais de cem periódicos que proliferavam então por
todos os estados do país, não estava digitalizado, o que fez com que este livro
permanecesse inédito até então. Turpin precisou consultar fisicamente a existência
da obra na Biblioteca do Congresso.
Vida e aventuras de Jack Engle se perdeu
em 1852 entre os materiais descartados pelo poeta. Depois disso ele nunca mais
voltou a anotar nada sobre o livro e tudo leva a crer que o esqueceu – ou talvez
– quis esquecê-lo. É importante a data, pois três anos depois Whitman publicou
a primeira versão de Folhas de relva,
sua obra-prima, fundacional da poesia nos Estados Unidos, um livro que nunca
deixou de reescrever, corrigir, aumentar e recortar.
Para Zachary
Turpin, os cadernos de notas do autor de “Canção de mim mesmo” revelam que
Whitman já estava imerso em Folhas de
relva quando escreveu a história de Jack Engle. Trata-se, segundo ele, de
uma narrtiva que, entre outras coisas, é “bizarra, engraçada, criativa e sinuosa”.
Também não se descarta a hipótese que Whitman escrevesse este romance – como sua
outra obra narrativa publicada décadas antes, Franklin Evans – por encomenda. Turpin já conhecia de antes as piruetas
literárias que o autor fazia para tentar sobreviver e sabia ainda que o escritor
havia colaborado para The Sunday Dispatch.
Vidas e aventuras de Jack Engle está escrita
em primeira pessoa. É a clássica história picaresca, de “mistério urbano”, em
que um malvado advogado acaba sendo derrotado por um jovem mais nobre e inteligente
que ele. Para Turpin, na época quando escreveu este romance, Whitman “está
experimentando, ensaiando diferentes gêneros e modos de escrita, buscando um suficientemente
amplo e expansivo para expressar o que Emerson chamaria ‘a infinitude do homem particular’”.
Nota:
* A primeira
parte deste texto é uma tradução de “Walt Whitman. Vida y aventuras de Jack Engle”,
publicado em El cultural. As
traduções de excertos de Folhas de relva são
de Rodrigo Garcia Lopes da edição brasileira publicada pela Iluminuras (2006). O
quadro seguinte apresenta partes da nota informativa “Hojas inéditas de Walt Whitman”,
de Alberto Gordo e foi publicada no mesmo suplemento do texto de Narbona.
Comentários