Roma, de Alfonso Cuarón
Por Pedro Fernandes
Pode-se
dizer que Roma é um ponto fora da
linha nas produções de Alfonso Cuarón, se consideramos seus trabalhos até agora, embora se saiba que uma certa não-unidade tem se
constituído uma marca interessante na carreira do diretor e que há traços estilísticos
e temáticos aqui que o relaciona com outros de seus filmes. Ainda mais porque
esta narrativa está eivada da presença de outras peças cinematográficas, incluindo
títulos como E sua mãe também e Filhos da Esperança, do diretor mexicano.
Mas, não se poderá
acusar este ponto fora da reta como uma obra marginal. Pelo contrário. O filme
que se apresenta como um retrato autobiográfico de certo período da vida de Cuarón
deve figurar sempre, se não como o primeiro, entre os seus melhores trabalhos. As
razões para esta conclusão são diversas. Para esta ocasião, basta citar: a
desenvoltura da narrativa; a belíssima fotografia; e maneira como a narrativa
abriga questões que transitam entre o plano individual e coletivo, sem se distanciar
do primeiro, o principal, podemos assim dizer, da narração.
O que a
câmera capta é a crônica de uma vida cujo cenário é o de uma família abastada da
Cidade do México entre os anos 1970 e 1971. A abertura desse olho que primeiro capta
a minúscula cena espelhada numa poça d’água de um avião que cruza os céus da cidade
e depois volteia pela casa – sempre considerando o ponto de vista não da
família e sim dos que dela cuidam – é o suficiente para nos colocar diante de
uma forma inovadora de ver. É a crônica de uma família, mas que não é vista
pelo olhar oficial ou imparcial. Cuarón
não se descuida num só instante em dizer que a história contada não respeita o
ponto de vista comum, mas aquele que quase sempre é condenado a silenciar ou a
ser mero objeto entre os elementos de composição cenográfica.
À medida que
a narrativa avança, que precisa detalhar melhor o drama que aí irrompe
lentamente e que os referentes devem variar a fim de contorná-lo melhor para o
espectador, este ponto de vista não deixará de ser o da margem. Mesmo quando
este é agora não a empregada doméstica e sim a família. Primeiro, a criança. E
não é qualquer criança, mas aquela mais apegada à fantasia e por isso colocada
pelos demais irmãos à parte e que encontrará companhia melhor ao lado da empregada.
E, depois a mulher. É significativa a ocasião quando a patroa, incapaz de
salvar o casamento ou de manter a aparência da ordem para os filhos, chega à conclusão
de que “nós mulheres, estamos sozinhas no mundo”.
A partir de
então erige-se uma narrativa que transforma a ausência masculina num elemento
fundamental para a compreensão de extensa parte dos dramas aí recorrentes. Entretanto,
não faz do homem a figura central. Esta é só uma presença silenciosa. O
universo de Roma é predominante
feminino e se por um lado reafirma a conclusão tabular de uma das personagens
por outro atribui a elas, em gesto quase de gratidão e reconhecimento, o papel
de forças verdadeiras que mantêm o mundo em órbita. Em parte, esta é uma das
razões porque a narração adquire desenvoltura. A mobilidade do olhar, capaz de
registrar situações variadas num só plano, o trato singelo das relações, certa
leveza mesmo nos pontos mais críticos do drama, elementos que reforçam o que
temos chamado de desenvoltura da narrativa, só são alcançados porque a mão que
rege a narração adquire a maneira graciosa e a destreza do feminino.
Há uma série
de dramas levantados ao longo da narrativa fílmica que também são eminentemente
entrevistos pelo olhar da mulher e o melhor sem reforçar estereótipos como o da
fragilidade ou da incapacidade de atuação frente às exigências brutais de
abandono e total solidão num mundo não feito para elas porque regido por eles:
o divórcio é apenas um deles. Aqui, este drama individual serve à trama para
uma situação coletiva: o drama da separação entre povo e governo. Cuarón recupera
o impasse entre estudantes e a presidência da república que abalaria o final da
década de 1960 e início da década seguinte ao colocar em cena um dos pontos
altos do conflito, o massacre de 10 de junho de 1971. Isto é, a família (ou a casa)
adquire aqui a componente de uma metonímia sobre o próprio México desse período
e este por sua vez num retrato de toda América Latina. E entre esse conjunto de formas em relação (casa-cidade-continente) outro espaço ganha a propriedade de figura da narrativa e participa na elaboração desta metonímia da cidade-continente: o bairro onde a trama se desenrola e que dá nome ao filme.
Mais que homenagem, este
tratamento reafirma pelo menos duas questões: a impossibilidade de silenciar
sobre o drama da história, integralmente determinante nas vidas individuais
(basta compreender o trágico desfecho da gravidez de Cleo, a empregada) e como
tais dramas precisam se constituir em memória coletiva a fim de impedirmos
voltar a cumprir os mesmos passos do degredo. A estas pode-se ainda acrescentar
sobre o papel da arte nesse processo, considerando-se que mesmo quando ela se
volta para as questões mais íntimas do homem resulta impossível compreendê-las
distintas das situações comunitárias.
Pelo ponto
de vista adotado, que não chega a ser inusitado porque no fim o interesse do cineasta
é estar o mais próximo possível da realidade mostrada, Roma se afirma não como uma narrativa sobre a família e sim sobre a
vida de Cleo, ou de como a mulher, quanto mais à margem social mais está
submetida ao jugo do abandono e do esquecimento. É ainda a história sobre uma
variada classe que abdicou de suas próprias realizações em nome da ordem e do satatus quo de outro grupo; este segundo
incapaz, muitas vezes, de reconhecer o esforço, a dedicação e a força do trabalho
para o sustento de suas próprias realidades.
Testemunho
de uma vida que é também símbolo de muitas, o filme de Cuarón não deixa de compreender
a existência enquanto trânsito e a impossibilidade de estabelecimento
definitivo dessa ordem ou estabelecimento buscados pelos ricos na imposição das
rotinas de repetição que determinam o cotidiano dos seus empregados. Observe-se
isso na impossibilidade de manutenção da limpeza da garagem, por mais que as
empregadas se esforcem em lavar o local e zelar pelo cão da casa; ou, de maneira
simbólica – repetindo a imagem que abre e fecha a narrativa – o trânsito dos
aviões que deixam de ser uma mera repetição qualquer de um cotidiano e amplificam-se
em certo grau de esperança, por significarem a variedade de transições
desempenhadas pelo fluxo da vida.
A força de
obras assim construídas com tamanho zelo nos recobra outro sentido para ver
sobre nós e sobre o nosso cotidiano. Isto é, Roma cumpre um duplo impacto necessário a toda obra de arte: o
estético e a motivação para uma nova perspectiva sobre o mundo e as coisas.
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