J. D. Salinger, o escritor ausente



Por Marta Ailouti

J. D. Salinger, 1952. Foto: Lotti Jacobi

Contra os desejos do próprio J. D. Salinger (Nova York, 1919 – New Hampshire, 2010), seu nome continua gerando ruído até hoje. Zelosamente obcecado por sua vida privada, a forte recusa à exposição pública marcou a vida deste escritor que, apesar de propiciar muitas querelas e erguer muros, pôde viver isolado seus últimos quarenta anos num sítio de Cornish. “Se eu fosse um pianista, ou ator, ou coisa que o valha, e todos aqueles bobalhões me achassem fabuloso, ia ter raiva de viver. Não ia querer nem que me aplaudissem. As pessoas sempre batem palmas pelas coisas erradas. Se eu fosse pianista, ia tocar dentro de um armário” – escreveu em O apanhador no campo de centeio, quase como uma profecia.

J. D. Salinger gostava, dizia ele, de escrever. E nada mais. Nascido em 1 de janeiro de 1919 numa família bem-colocada socialmente que se dedicava à importação de carnes e queijos europeus, publicou seu primeiro conto, “The Young Folks”, em 1940 na revista literária Story. Conseguiu este feito graças, em parte, à ajuda do editor Whit Burnett, a quem tinha conhecido no curso de escrita criativa da Universidade de Columbia e cuja figura exerceu uma influência essencial nas primeiras fases de sua escrita.

Naqueles anos, Salinger, que ainda lutava para publicar seus textos nas revistas literárias do momento, conheceu a que seria, para muitos, o grande amor de sua vida, Oona O’Neill, filha do dramaturgo Eugene O’Neill. Mas, o estopim da Segunda Guerra Mundial mudou tudo e, depois do bombardeio de Pearl Harbor, o escritor se alistou no exército; no front participou do desembarque na Normandia.

“Salinger era um privilegiado: tinha 25 anos e era um garoto rico da avenida Park que pensava que a guerra seria uma aventura fascinante, romântica. Imaginou-se como protagonista de um romance de Jack London e desejava que o serviço militar explodisse a bolha em que foi criado”, escreveu Shane Salerno na biografia do escritor estadunidense que publicou em parceria com David Shields e que tem por título Salinger (Intrínseca Editora). “Ele ficava pensando se lhe faltava a dor necessária para se tornar um escritor. Queria que a guerra o tornasse mais duro, mais profundo como pessoa e escritor”, acrescenta. Aquele ano mudou sua vida para sempre. Enquanto estava no front, Oona, que havia iniciado um romance com Charles Chaplin, casou-se com o mítico ator em 1943.

J. D. Salinger. Os anos no front.


Regressou à sua vida em Nova York, profundamente marcado pelas sequelas da guerra e casado com uma médica alemã, Sylvia Louise Welter, de quem pouco depois se divorciaria. Foi logo no seu retorno que publica O apanhador no campo de centeio, em 1951 – um relato iniciático sobre a perda da inocência e a passagem para a vida adulta e que se tornou uma obra célebre quase de imediato.

Levou dez anos para escrever seu principal livro, segundo conta David Shields. O próprio escritor confessou a Burnett que seis dos capítulos do romance acompanharam-no durante o período no front porque “precisava ter aquelas páginas consigo, não apenas como um amuleto para ajudá-lo a sobreviver, mas também como uma razão para sobreviver”.

Salinger não apenas sobreviveu como sua obra, tão logo publicada se tornou um clássico e é considerada atualmente uma das obras-primas da chamada literatura de iniciação. Sua narrativa sobre um adolescente que narra suas aventuras em Nova York num fim de semana antes do Natal revelaram-no “um prosador excepcional – como assinala Rafael Narbona (ver quadro abaixo) – com grandes dotes para a narração e a criação de personagens, capaz de combinar a introspecção com um humor e o absurdo”.

Tinha 32 anos e acabava de se converter numa lenda graças a esse livro, na década dos anos 80, esteve inexplicavelmente ligado a vários episódios violentos. John Hinckley, quem em 1981 tentou matar Ronald Reagan, estava obcecado por esta obra e se diz que Mark David Chapman, no dia que matou John Lennon, estava com um exemplar do livro. Depois dos tiros, sentou-se tranquilamente e ficou a lê-lo até quando chegou a polícia. “Esta é minha declaração”, teria escrito a partir de O apanhador no campo de centeio.

Mas, depois do sucesso da obra, as sequelas da guerra e sua elevada celebridade proporcionaram a Jerry, como era conhecido em seu círculo íntimo, a fugir do ruído midiático e de qualquer distração. Nada de fotografias, admiradores ou jornalistas. Tampouco lhe interessava a autopromoção de sua obra. Logo quis que as editoras retirassem sua imagem da capa dos livros e toda aquela informação adicional sobre sua biografia.

Foi em 1965 quando desapareceu por completo. Como Emily Dickinson, Harper Lee, Cormac McCarthy ou Thomas Pynchon, sobre quem se chegou a afirmar que, na verdade, era o próprio Salinger que publicava com um pseudônimo. Jerome David se refugiou em seu particular armário do tamanho de um sítio em Comish. “Gosto de escrever. Amo escrever, mas escrevo apenas para mim mesmo e para meu prazer”, declarou numa entrevista ao New York Times, uma das poucas que concedeu em 1974.

Todas essas decisões, entretanto, longe de apartá-lo da vida pública modelaram o mito de um escritor enigmático, cuja imagem foi durante anos buscada e perseguida por gente próxima e estranhos. Abraçado ao budismo, sua vida privada tampouco atravessava seu melhor momento quando em 1967, separou-se de sua segunda companheira, Claire Douglas, com quem estava casado desde 1955 e com quem teve seus únicos dois filhos, Margaret e Matt Salinger, este mais conhecido devido seu trabalho como ator de cinema e presente em filmes como Capitão América (1990).



No lado criativo, embora segundo o próprio escritor nunca tenha deixado de escrever, é certo que a partir de 1965 não voltou a publicar mais nada e sua produção literária se limitou, além do romance que o sagrou grande escritor, a vários títulos de contos como Franny e Zooey, Nove estórias, Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira e Seymor: uma apresentação e Uma agulha no palheiro.

Salinger que morreu aos 91 anos, num 27 de janeiro de 2010, passou os últimos anos de sua vida fugindo da atenção midiática que havia voltado com publicação de vários livros de memórias escritos por sua amante Joyce Maynard – a conheceu com 18 anos quando ele tinha já 52 – e sua própria filha Margaret que o descreveu como um homem egoísta, mulherengo e machista.

Depois da sua morte, o autor se converteu em figura principal de várias biografias como a de Kenneth Slavenski, J. D. Salinger. Uma vida (LeYa), que em 2018 Danny Strong levou ao cinema como O rebelde no campo de centeio e cuja narrativa se centra em seus anos de aprendizagem criativa e sua passagem pela Segunda Guerra Mundial. Contudo, extremamente sensível para uns, obsessivo e excêntrico para outros, a obscuridade em torno de sua enigmática figura continua provocando o mesmo ou maior interesse hoje, cem anos depois de seu nascimento.

A segunda morte de J. D. Salinger

A morte de J. D. Salinger pareceu irreal porque sua vida havia deixado de servir à opinião pública desde 1965, ao internar-se num silêncio deliberado e fechado. Sem a ressonância trágica de Ambrose Bierce, que desapareceu no fragor da Revolução Mexicana, Salinger adquiriu a estatura do mito ao repudiar a popularidade que havia adquirido com O apanhador no campo de centeio (1951), onde Holden Caulfield encarnava a rebeldia da jovem burguesia estadunidense, resistia aceitar a educação dos pais conformados e autocomplacentes. O romance não pretendia inculcar novos valores nem promover uma mudança social. Era só a certificação de um fracasso que anunciava um futuro de ceticismo, desencanto e desencontros de gerações. Não por acaso que pouco depois, Nicholas Ray dirige Rebelde sem causa (1955), onde confirmava que a guerra de 1945 havia constituído efetivamente a derrota do fascismo, mas também havia liberado um profundo mal-estar. Os jovens não se deixavam educar porque o mundo havia perdido a fé nos dogmas e nas ideologias.

O apanhador no campo de centeio revelava que Salinger era um prosador excepcional, com grandes dotes para a narração e a criação de personagens, capaz de combinar a introspecção com o humor e o absurdo. Em 1953, apareceram Nove contos, onde se apreciava as influências de F. Scott Fitzgerald, mas com o lastre de uma metafísica alimentada pelas religiões orientais e certa ênfase retórica. Essas limitações se repetiam em Fanny e Zooey (1961) e em Carpinteiros, levantem bem alto a cumeeira (1963), contos ou novelas breves protagonizados pela família Glass, uma coleção de seres improváveis que reproduziam a mesquinhez de uma América ébria de prejuízos. Hapworth 16 seria o último título da saga.

Depois, o silêncio ou, mais exatamente, o barulho. Convertido em personagem de ficção, sua filha Margaret publicou algumas memórias que o acusavam de um incurável desejo por meninas e uma perversidade que levava a se comportar como um tirano ou um depravado sexual. Não sabemos se realmente era assim (um ogro atormentado por sua experiência na Segunda Guerra Mundial), mas é inevitável que a notícia de sua morte tenha produzido certa incredulidade. Talvez não se trate de um notável exagero, como aconteceu com Mark Twain ou da atitude ardil de um mágico que conseguiu realizar o truque perfeito, extraviando-se para sempre numa cartola de duplo fundo.

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* O texto “J. D. Salinger, o escritor ausente” é a tradução de “J. D. Salinger, el escritor ausente” publicado em El cultural; do mesmo periódico é o texto de Rafael Narbona, uma tradução de “La segunda muerte de J. Salinger”. Este segundo texto data de um dia depois da morte do escritor estadunidense.

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