Da ternura
Por Guilherme
Mazzafera
Jean-Michel Basquiat |
Perdura a
ternura? Ou esvai-se, oblíqua, no meneio
do relâmpago?
Há pessoas
que a perdem pelo caminho, sobrando, quem sabe, esmigalhado resíduo, como no
rufião de Drummond. Seria ela, ternura, disposição anímica?
Terno: aquele
que inspira afetos ou que porta, no corpo, uma tristeza esgarça, desvanecida?
Terno: vestimenta
rígida, compulsória em casamentos e velórios, nos quais se vela a disposição
pública de sentimentos. Rigor mortis aeternus.
Em verdade vos
digo, sem ternos não haveria carpideiras. Suit up, diz obsessivamente um personagem de
How I met your mother. Suit, verbo, traz em si o fole da adequação – juntas de
bois em uníssono? –, mas, em outro, o clamor por justiça. É querela, contenda
com o eternizado desencanto do mundo.
Ternura –
Tenrura: simples inversão de sons, mas que enrola a língua, dizendo em volteios
do que é fresco, viçoso, mas também delicado. A ternura, quando emerge, é tenra.
Mas há algo de ter-ror em ten-ro, na maciez da carne jovem, estilada pelo garfo
sedento.
Terno é,
ainda, tríade que harmoniza vozes com distâncias e pontos de fuga distintos.
Armemos o
desenho do acorde:
Tônica (G)
“Se todo
animal inspira ternura, o que houve, então, com os homens ?”, pergunta um
Guimarães Rosa devassador de zoológicos europeus, indagador da alteridade
animal, do Burrinho Pedrês ao onceiro-onça sobrinho do Iauaretê. Mas há, ainda,
um outro Rosa, menos transfigurado, em textos-ensaio nos quais a dúvida sobre a
demarcação de fronteiras do outro é convertida em matéria expressiva. No seu
truncado colóquio com o vaqueiro Mariano, o desejo de dar voz ao outro, sob a
constante suspeição do silenciamento, torna-se entrave constitutivo: “A
verdadeira parte, por quanto tenhas, das tuas passagens, por nenhum modo
poderás transmitir-me. O que a laranjeira não ensina ao limoeiro e que um boi
não consegue dizer a outro boi.” A ternura nasce do interdito? Nasce, talvez,
gesto composto, do reconhecimento do que, no outro, é intratável: “Também as estórias
não se desprendem apenas do narrador, sim o performam; narrar é resistir”.
Terça (B)
Manuel
Bandeira, poeta da ternura, evoca-a como imagem possível do que escapa ao
homem, não tanto “da vida que podia ter sido e que não foi”, mas como empatia
subterrânea, elevada à voz, “pelos poemas que não consegui realizar”. O sumo de
que sua obra é símbolo fala daquele grande coração, transverberado pelo amor
das pequenas coisas preci(o)sas: a estatuazinha de gesso, vincada pela vida; o
porquinho da índia, namorada primeira. Mas fala, também, de grandes e
irredutíveis coisas: o imenso boi morto, pervagado pelos arrulhos do rio; o
cacto feraz, dissolvendo, em queda altiva, a precariedade do mundo organizado.
Quinta justa
(D)
Há, ainda, a
profunda ternura de Dom Quixote que é, no limite, amor precípuo pelo próprio
gesto ficcional, capaz de enxergar no outro o que ele poderia ter sido em seu
âmago, e não aquilo que o mundo amesquinhara. Na segunda parte do romance, o
potencial criador da ficção, o próprio engenhoso cavaleiro, é revertido em gozo
sádico do outro, leitor da primeira parte e que agora estende a lona para
escarnecer do próprio ficcionista do ideal. Ao desencantar-se e, daí, morrer, há
em Dom Quixote uma permuta, da ternura por sua prima má, a cordura, em sua
acomodação à prudência e à sensatez. A ternura é, ainda, disparate, esconjuros
de nigromantes.
A ternura,
plasmada em narrativa, é, hoje, resistência. Cabe enternecer a palavra,
multiplicando-a, mas desabonando sua rigidez de dicionário. Mesmo no mais
desencantado dos escritores há amor pela vida: seus laivos. [Acrescentemos uma décima
primeira, levemente dissonante, C] O próprio Brás Cubas, defunto autor, expedia
capítulos para este mundo. Ameaça o leitor com piparotes, repreende-lhe a
frivolidade e acusa-o de defeito supremo do livro. Mas nunca o esquece.
Toquemos o
acorde: G B D C
Ternura é
sutura: enlace esmaecido entre o eu e o outro que, provocado pelo que é vivo,
ricocheteia sangue, aquarelando a cicatriz.
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