Com armas sonolentas, de Carola Saavedra
Por Fernanda Fatureto
Carola Saavedra, escritora brasileira nascida no Chile,
afirmou em um artigo seu para a revista Claudia de setembro do ano passado que
é urgente tomar posse do próprio corpo, da nossa alma e da nossa história:
“Quem somos? É urgente começar a contar a própria história”, afirma. É
justamente o que a escritora busca em seu mais recente livro – Com armas
sonolentas, publicado pela Companhia das Letras em 2018.
O título remete ao verso “com armas sonolentas” do poema
“Primeiro sueño” de Sor Juana Inés de la Cruz, poeta mística nascida no México
do século 17. No livro de Carola Saavedra há esse diálogo com o insondável e o
onírico numa trama que narra a vida de três mulheres ligadas pela maternidade.
Dividido em duas partes, conhecemos as histórias independentes de Anna Marianni,
Maike e a Avó.
Anna – uma atriz sem fama em busca de reconhecimento que mora no
Rio de Janeiro e tem a chance de conhecer um prestigiado cineasta alemão, com
quem se casa e muda para a Alemanha. Porém, o que parecia uma oportunidade para
romper com seu passado dá errado. O marido não lhe emprega em seus filmes e a
mantém em casa numa rotina insuportável onde nem a língua é acessível. A
narrativa começa com esse desejo de movimento, de romper fronteiras geográficas
e linguísticas. “Anna se olhava no espelho e não se reconhecia, a Alemanha, o
clima, ou o que quer que fosse que havia por lá, a transformara em outra
pessoa. (…) Alguém fora de seu idioma e de seu código social, reduzido a
momices e estertores, uma caricatura de si mesma, ou pior, uma versão piorada,
desprovida de humor, na qual seus maiores medos vinham à tona.”
Em meio ao casamento arruinado, Anna engravida. A gravidez –
desejada pela maioria das mulheres – não é bem-vinda para a atriz que se vê
forçada a assumir uma responsabilidade da qual não compactua. Ela desejava uma
carreira estável, algo cada dia mais impossível na Alemanha: “ela, Anna
Marianni, não existia, desaparecera ao cruzar o Atlântico”. No desespero, leva a filha no carrinho até o parque e a abandona. Com este gesto cruel, a
narrativa começa a interrogar em que medida a construção social da imagem
idealizada de mãe interfere na vida de uma mulher.
A partir da perspectiva desse abandono, conhecemos a vida de
Maike. A jovem é alemã e vive com os pais em Berlim. A história de Maike inicia
com a afirmação: “Tudo começou no dia em que eu decidi estudar português”.
Certo dia, na faculdade, Maike se depara com um catálogo de cursos e instintivamente
escolhe o Português. “No fundo eu suspeitava que, dentro de mim, o que havia
estava muito mais próximo da pocilga do que daquela casa de revista. Uma
espécie de caos. Uma tristeza que eu não entendia de onde vinha, mas que
permeava tudo o que eu pensava, as mínimas atitudes, e mesmo nos momentos em
que eu estava alegre a tristeza continuava lá, agarrando-se à alegria, a morte
que a todo instante surgia nas entrelinhas da vida. Um sentimento que, na
presença da minha mãe, se transformava em raiva, ódio. Eu a culpava de alguma
coisa, mas não sabia do quê”, afirma Maike. O contato com outro idioma era a
oportunidade para ir em direção ao desconhecido.
Em Com armas sonolentas o desconhecido ganha dimensões
consideráveis já que as personagens estão em trânsito, experimentando outras
línguas, outra pátria. O sentido de identidade permanece fluido. E é justamente
a busca de identidade um dos temas do livro de Saavedra. Maike decide morar
alguns meses no Brasil para aperfeiçoar o português. Ela estava indo em direção
à sua própria história que lhe era oculta. E nesse movimento de partir, a vida
destas três personagens se cruzam: “meu espírito repousa em algum outro lugar,
alheio a tudo (...)”.
Sabemos da Avó – terceira personagem central do livro –
apenas que ela nasceu no interior de Minas Gerais e teve uma filha que se mudou
para o Rio de Janeiro para trabalhar como doméstica. A Avó é uma espécie de
guia espiritual que interliga Anna e Maike por meio de uma narrativa
fragmentária e onírica. A filha da Avó manteve relações secretas com o filho de
seus patrões. Dessa relação proibida, nasceu Anna: daí sabemos que Anna nunca
soube realmente quem era seu pai, pois ele jamais assumiu a paternidade.
Em um dos momentos marcantes da narrativa, Anna encena para uma
grande plateia: “Quando eu nasci, olhei para a minha mãe e não reconheci o seu
rosto. Quando eu nasci, olhei para o rosto da minha mãe e não me reconheci em
seu rosto. Éramos tão estrangeiras uma à outra. Depois as palavras minha mãe,
minha mãe, mas há sempre algo que escapa, que escorre pelos cantos da boca”.
A sensação de não pertencimento irá acompanhar essas
personagens até o desfecho do livro. São três mulheres em busca de suas
histórias inconclusas. Histórias que embaralham o sentido tradicional de
maternidade e de origem. Com armas sonolentas, de Carola Saavedra, mostra que
habitamos uma pátria interna com seus signos e meandros mesmo antes de
pertencermos a um contingente. Essa hereditariedade carregamos como uma pátria
particular.
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