Amós Oz, de amor e trevas


Amós Oz, foi o mais internacional dos escritores israelenses. Além de ser um dos nomes sempre lembrados para o Prêmio Nobel, recebeu incontáveis reconhecimentos ao longo de sua trajetória como escritor: o Príncipe de Astúrias, o Prêmio Israel e o Prêmio Goethe são alguns desses importantes galardões.

Tanto em sua prosa de ficção como em sua prosa ensaística, é um escritor fundamental para entender Israel e, mais atrás, as décadas posteriores à criação do Estado de Israel, as raízes de seus conflitos com os povos vizinhos e as tensões entre as diferentes comunidades hebraicas. Dos romances vale citar Conhecer uma mulher, A caixa preta, Fima, Não diga noite, Pantera no porão, O mesmo mar, Meu Michel, Judas, Uma certa paz e De amor e trevas; dos ensaios, Os judeus e as palavras, Mais de uma luz, Como curar um fanático e Rimas da vida e da morte.

“A identidade judaica não tem nada a ver com os genes nem com as raças. Tem a ver com os livros”, afirmou o escritor certa vez. “Meu leitor ideal é um leitor vagaroso, que lê em pequenos e lentos goles. O mundo não pode ser descoberto numa leitura rápida”, disse noutra ocasião.

“Quando eu tinha uns seis anos de idade, chegou o grande dia para mim: papai esvaziou um cantinho de uma de suas estantes e permitiu que eu transferisse meus livros para lá. Para ser mais preciso, ele me deu uns trinta centímetros, mais ou menos a quarta parte da prateleira mais baixa. Abracei meus livros, que até então viviam deitados sobre o tapete, ao lado da minha cama, e os carreguei à estante de papai e os arrumei em pé, as costas voltadas para o mundo exterior, e a frente, para a parede”. Escreveu o escritor na sua incursão autobiográfica. Uma recordação que oferece uma imagem sobre o caráter quase sagrado que Oz, sua família e cultura judaica em geral outorga aos livros.

Oz foi descendente de judeus asquenazes que haviam chegado da Europa pela Palestina nas primeiras décadas do século XX. Sua casa estava cheia de livros; seu pai, um bibliotecário que não conseguiu acesso à docência universitária, falava onze idiomas e lia em dezessete; sua mãe falava quatro ou cinco e lia em sete ou oito; e nas tertúlias de seu tio Yosef conheceu, entre outros, Shmuel Yosef Agnon, futuro Prêmio Nobel de Literatura.

De amor e trevas, assim Oz intitulou sua autobiografia publicada em 2002, talvez seu melhor livro, é a história de sua vida, mas também a do Estado de Israel e sua tão incrível como árdua aventura. E Amós Oz nasce em 1939 em Jerusalém durante o mandato britânico da Palestina e as primeiras palavras que recorda haver aprendido são “British, go home”. Seus pais haviam chegado ali seis anos antes de um périplo convulso (e isto é reiterativo para um judeu naquele tempo) desde sua fuga de Odessa em 1917 ao calor da revolução bolchevique e da Declaração Balfour. Yehuda Klausner e Fania Mussman eram dois das mais centenas de milhares de judeus europeus cultos e cosmopolitas expulsos de uma Europa hostil que paradoxalmente repudiava os demais europeus de sua cidadania e que alguns anos depois, já debaixo da bota de Hitler, não mediria esforços para exterminá-los.

A relação destes intelectuais judeus com “a esplêndida e mortífera Europa” era terrivelmente ambivalente, de amor mas também de ódio, como descrevem com humor e arrependimento, as páginas deste livro. O mundo “Era distante, sedutor, maravilhoso, mas, para nós, muito perigoso e hostil: não gostavam de judeus porque somos espertos, perspicazes e bem-sucedidos, mas também porque somos barulhentos e intrometidos. Não gostavam do que estávamos fazendo na Terra de Israel, porque cobiçavam até mesmo essa mísera nesga de terra, pântanos, pedras e deserto. Lá, no mundo, os muros estavam todos cobertos de frases hostis: ‘Judeu, vá para a Palestina’. Muito bem, viemos para a Palestina, e agora o mundo inteiro grita: ‘Judeu, saia da Palestina’.”

Era conhecido o comportamento madrugador de Amós Oz. Morador em Tel Aviv desde há vários anos, sua rotina diária começava às quatro da madrugada. “Tomo uma xícara de café, faço minha longa caminha matinal e sem seguida, antes das cinco em ponto da manhã, antes do amanhecer, me sento em minha mesa de trabalho. Permaneço aí três ou quatro horas e é como se meu dia estivesse acontecido já. Embora algumas vezes regresse ao meu escritório pela tarde para revisar o que escrevi pela manhã”, disse na mesma entrevista citada no início deste texto – para o El Cultural.

Antes de ir morar na moderna capital de Israel, Amós Oz viveu desde os 14 anos no kibutz de Hulda, onde conheceu sua mulher e onde teve seus filhos. Mais tarde se mudou para Arad, uma pequena cidade encravada no deserto de Néguev, onde passou três décadas. “O silêncio do deserto não é comparável a nenhum outro silêncio porque é absoluto”, declarou noutra ocasião. Inspirado por ele escreveu boa parte de sua extensa bibliografia.

Amós Oz nunca evitou de falar sobre a realidade de seu país; além dos ensaios publicados em livro sobre o dilema moral vivido por seu povo, dedicou centenas de artigos políticos e muitas vezes manifestou-se favorável de um entendimento entre judeus e palestinos. Seu maior feito nessa direção foi a criação do movimento Shalom Ajshav (Paz Agora) em 1978 – mas, desde os anos 1960 foi um dos primeiros intelectuais israelitas a levar adiante a mensagem aí defendida: a retirada de Israel dos territórios ocupados e a existência de dois estados, um palestino e outro israelita, convivendo em paz.

Apesar disso, Oz não se considerava um pacifista “no sentido sentimental da palavra”; “Nunca lutaria – prefiro a prisão – por mais territórios. Nunca lutaria por um dormitório a mais para a nação. Nunca lutaria por lugares sagrados ou visitas aos santos lugares. Nunca lutaria por supostos interesses nacionalistas. Mas lutaria e luto como um diabo pela vida e pela liberdade. Por nada mais”.


***

Amós Oz, combatente pela paz


Por Mario Vargas Llosa

Conheci Amós Oz em novembro de 1976 em minha primeira viagem a Israel. Fui visitá-lo no kibutz Hulda, onde estava desde os 14 anos. (Sua mãe havia se matado dois anos antes). Seu primeiro romance, de título intraduzível no espanhol (Quizás en outro lugar seria o mais aproximado), havia provocado uma grande controvérsia em seu país porque nele fazia uma minuciosa análise da vida nesses pequenos recintos idealistas – os kibutz – que perseguiam, como disse ironicamente anos mais tarde, “criar gentes boas e sãs, sem suspeitar sequer que os seres humanos não são nem bons nem sãos”.

Vivia modestissimamente numa casinha de madeira e tinha que se levantar ao alvorecer para trabalhar no campo. Mas estava muito contente porque os dirigentes de Hulda o permitiam dedicar as tardes para escrever. Era jovem, otimista, incansável e acredito que desde o primeiro momento nós soubemos que seríamos bons amigos. As sete ou oito vezes que estive em Israel nos encontramos sempre, para jantar ou almoçar juntos, e o mesmo fazíamos quando em conferências e congressos literários pelo mundo, sempre encontrávamos uma folguinha para tomarmos um café. Todas as vezes que disse em minha vida que em Israel era o único país onde me sentia sempre um homem de esquerda, era pelas coisas que aí fazia, dizia e escrevia Amós Oz.

Tudo o que escreveu – seus romances, ensaios e artigos – tinha a ver com os problemas reais e imediatos e essa preocupação pela vida política e social, inevitável para um escritor israelita, não estava presa, no seu caso, com a excelência literária, como se adverte nessa obra-prima que foi sua autobiografia, De amor e trevas e seu romance Meu Michel, traduzido no mundo inteiro. Ao mesmo tempo que um grande escritor, foi um lutador ferrenho pela paz e um dos fundadores do movimento Paz Agora, que nos anos oitenta chegou a ter milhões de seguidores em Israel. Lutou toda sua vida pela paz entre israelitas e palestinos porque conhecia os estragos terríveis que causam as guerras, já que havia participado em duas delas, a Guerra dos Seis Dias e Guerra de Yom Kipur.

Era um sionista convicto e confesso, porque acreditava que os israelitas tinham direito de ocupar uma terra a que estavam ligados historicamente e um país que haviam construído, mas seu sionismo não o impedia de ver as injustiças que cometiam os colonos nos territórios ocupados. Por isso, defendeu até o fim de seus dias a ideia de dois Estados – um israelita e outro palestino –, apesar de muitos de seus antigos amigos, depois da direitização tão atroz experimentada pelo Governo israelita e o canceroso crescimento dos assentamentos ilegais nos territórios ocupados, a encontravam já impossível e tendiam a sustentar a ideia de um só estado laico e compartilhado pelas duas comunidades. Para Amós Oz esta solução lhe parecia absolutamente irreal e inoperante (“isso só na Suíça”, insistia), algo que o levou a distanciar-se politicamente de outro grande escritor israelita, A. B. Yehoshua, de quem havia sido grande amigo.

A última vez que o vi foi há um par de anos, num almoço em Jerusalém. Estava irreconhecível, apagado e silencioso, ele que parecia a alegria de viver encarnada e derramava energia por todos os poros. Era o câncer, sem dúvida, que começava a fazer estragos em seu organismo. Eu atribuí ao tom sombrio que tinha àquela conversa, da qual participavam Yehuda Shaul, fundador do coletivo Breaking the Silence, em que os próprios soldados denunciam os abusos cometidos pelo Exército de Israel; Gideon Levy, um jornalista há muito conhecido; o romancista David Grossman – que sem dúvida o sucederá como consciência moral de seu país – e Juan Cruz, do El país.

É verdade que não deve ser fácil ser um escritor laico e progressista num país como Israel, onde, em cada eleição, sempre voltam ao Governo as mesmas figuras e as mesmas políticas extremistas, graças a pequenos partidos de fanáticos religiosos – aos que Amós Oz dedicou precisamente um de seus últimos ensaios – cujos votos garantem a maioria ao Governo imperante. Em Israel, a democracia existe e funciona de maneira impecável para os israelitas (para os palestinos, desde sempre, não). Há liberdade de imprensa, não existe a censura, os juízes são independentes e a vida política é diversa, livre e muito ativa. Mas, se um visitante fica na Cisjordânia a coisa é diferente. As cidades e povoados palestinos estão praticamente cercados por assentamentos ilegais, submetidos ao controle policial e militar estritamente rígido, cortados em quadriculados, separados por uma extensa muralha que impedem o acesso direto das famílias às suas escolas e campos de trabalho. Etc etera. Desde que a ameaça de terrorismo é uma realidade e exige que se tomem precauções para evitá-los. Mas a impressão que se tem é que Israel já os excluiu de seus programas as negociações de paz e que a tese de Sharon – a paz, nós a imporemos – passou a ser, pura e simplesmente, a política de todos os governos israelitas. Para mim, esta possibilidade me parece todavia mais irreal e disparatada que a do Estado único. Porque ela só se sustentaria convertendo o diminuto Israel numa anacrônica África do Sul dos tempos do apartheid, cercado por inimigos por suas quatro costas.

Quando alguém acompanha a obra de um escritor como Amós Oz à medida que vai sendo escrita, se adverte a importância que a literatura se alimente do que são as preocupações e angústias – e também exaltações e alegrias, certamente – da gente comum, aquela que lê os livros e se reconhece neles, e, ao mesmo tempo, eles lhe permitem tomar distância com esse mundo e encarná-lo a partir de uma perspectiva de maior alcance, mais profunda. Isso é o que tem sido sempre a grande literatura: uma maneira de melhor compreender tudo aquilo que constitui a vida, enriquecer a perspectiva dos acontecimentos mais íntimos e pessoais, e, também, certamente, das coletividades, e a maneira mais efetiva de substituir os estereótipos, prejuízos e lugares comuns por ideias. Isso é o que Sartre dizia que devia ser a literatura em seu extraordinário ensaio Situations II, antes de contradizer-se de tudo aquilo quando recomendou aos escritores africanos que renunciarem a escrever para fazer primeiro a revolução socialista e criar alguns dos países onde fosse possível a literatura. (Se tivessem seguido esse conselho, os países africanos nunca teriam literatura).

Na homenagem prestada por Gideon Levy (que foi tão crítico de suas posturas políticas) fala-se de seu “encanto, de sua incrível modéstia, de sua magia”. É verdade. A vaidade pode ser muito grandiosa entre quem nos dedicamos a escrever. Uma das exceções era Amós Oz. Raras vezes falava de seus livros e, quando não tinha mais remédio, o fazia pelo ângulo da menor valia e como ar meio cansado por ter de fazê-lo. Alguma vez o ouvi dizer que não entendia que sua obra fosse tão conhecida em tantas partes e por tantos leitores diferentes. A todos nós vai fazer muita falta. E, sobretudo, a Israel: poucos israelitas fizeram tanto por seu país como Amós Oz.

Ligações a esta post:

* A primeira parte deste texto é tradução de nota publicada no El cultural e as citações de Amós Oz referentes a De amor e trevas, da tradução de Milton Lando (Companhia das Letras, 2005). O texto de Mario Vargas Llosa é uma tradução de “Combatiente por la paz”, publicado no jornal El País.


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