Os melhores de 2018: poesia
Anatomia do ócio, de R. Leontino Filho
Em matéria
de poesia, o tempo é a melhor medida. Mesmo para aqueles criadores revelados poetas
como é o caso de Leontino Filho. Só porque as distâncias são muitas ou os olhos
da crítica míopes demais para ver, mas a nenhum leitor atento parecerá exagero
qualificar este livro entre os melhores da poesia brasileira
contemporânea. Como este título sugere, o leitor encontra o poeta enredado
naquele universo que o melhor lhe serve à criação; o ócio é revelado aqui não
enquanto matéria, mas enquanto lugar de estar e de reaproximação do ouvido com
as vozes mais irreconhecíveis na turbulência comum de nossos dias. A poesia, visível
da tessitura das palavras é a quietação, o vagar do poeta, e o poema, a tessitura,
sua anatomia, aparelho construído pelas mãos de quem desafia o tempo, essa
entidade incapaz de perdoar a existência de qualquer coisa.
Um jogo bastante perigoso, de Adília Lopes
Foi com este livro que a poeta portuguesa começou sua já considerável obra; era 1985 e foi ela quem custeou a edição. A afirmação é perigosa porque alude um tom de conclusão para uma obra ainda em construção, porque pode ser motivada por um olhar apressado, não lapidado pelo tempo, e, claro, não corresponde à leitura da de todos os livros publicados por Adília desde este primeiro; mas, este livro reúne de maneira muito bem pensada, os temas e as maneiras de percepção do mundo do eu-lírico de Adília. O jogo aqui é o próprio fazer poético, que parece ser uma das suas obsessões, transformadas esta, alguma vez, em maneiras de brincar com o seu leitor. O recurso da citação, os manejos intertextuais, a brevidade, a composição de um bestiário, a reparação num mundo de sedimentos, da acumulação, poesia catalogar, são alguns dos elementos que determinam o fazer literário de Adília e visíveis neste título de estreia.
Só para
maiores de cem anos, de Nicanor Parra
Este foi o
título escolhido pelos tradutores Joana Barossi e Cide Piquet para a primeira
apresentação de um livro com a poesia do poeta chileno no Brasil. Os dois
selecionaram da extensíssima obra de Parra, 75 poemas que sublinham de maneira
muito coerente e acertada sua multiplicidade criativa com a palavra: sobretudo,
a irreverência e o verso cortante, a seco, sem quaisquer subjetivismos ou
piedade, de um poeta cuja visão do mundo foi a um só tempo entre o riso e a
morbidez, talvez a tentativa mais acertada de suportar existir num mundo caolho
e caduco. Num dos poemas escolhidos, “Sete trabalhos voluntários e um ato
sedicioso”, encontramos a profecia de fé do cético Nicanor e sua compreensão
sobre a poesia no mundo: um sujeito de utilidade duvidosa que fabrica objetos
de qualidade impossível de se medir pelas escalas objetivas. Parra está, assim,
bem apresentado por aqui.
Vesuvio, de Zulmira Ribeiro Tavares
A obra
poética desta poeta paulista é uma maneira de dizer o fundo falso da
subjetividade enquanto determinação da poesia e do poema. Pode parecer
repetição de vanguarda, mas não o é. Ao voltar-se para o mundo e suas
aparências, seja a refletida pelas coisas, pelas formas e pela linguagem que os
determinam sua poesia que nos dizer avesso delas. Essa maneira particular,
entretanto, reveste-se do racional e da objetividade – um exercício possível apenas
a partir da subjetividade, como sempre nos disseram. Eis o motivo da poesia de
Zulmira Ribeiro Tavares e do qual este título é uma excelente amostra. Leia mais aqui.
O antipássaro, de Donizete Galvão
Este é o
título de um poema do livro Teia, de
Orides Fontela e aqui nomeia este livro póstumo de Donizete Galvão; escolha do
próprio poeta como lembram Paulo Ferraz e Tarso de Melo os organizadores da
edição. Se há relações entre o poema e a obra caberá ao leitor estabelecê-las a
partir de suas averiguações. O fato é que a catalogação desses poemas e o seu
título têm muito de fechamento de uma obra. Notará o leitor que o antipássaro
se confirma como uma condição do próprio poeta e da qual o autor de O homem inacabado nunca deixou de ter
para si como movimento fundamental da lida com a palavra e da sua relação com o
mundo. O livro nascido do não-livro, por isso, por perseguir esse rastro mais
ou menos determinável no trabalho poético de Donizete, é uma unidade bem-acabada:
na qualidade estética dos poemas, construídos com o rigor particular de um
homem incapaz de trair a verve do ser-poeta. E é preciso sublinhar o trabalho
primoroso da Martelo Casa Editorial para com a edição que traduz em objeto a matéria
e o sentido principal desta obra.
Mares do leste, de Tomas Tranströmer
Outra falha
que começa a ser corrigida entre nós. Tomas Tranströmer recebeu o Prêmio Nobel de
Literatura em 2011, mesmo assim as livrarias brasileiras não dispunham sequer
de uma antologia das que suprem de alguma maneira o vazio. Junto com a
publicação deste que é o primeiro livro de Tomas por aqui, veio ainda uma promessa: teremos
sua obra completa publicada no Brasil. Remanescente das convulsões produzidas
pelo modernismo e pelas vanguardas europeias, sua obra lida com duas dimensões assaz
caras para a poesia – nem sempre reparadas nas rupturas introduzidas na feitura
poética desde então: uma mirada que aproxima com certo olhar filosófico, aquele
primitivo de inteligência sobre o mundo e sobre as coisas, e a transcendência. A poesia de Tranströmer – e a antologia Mares do leste – é boa prova reaviva
a o círculo perfeito da poisesis: um
gesto do poeta e do poema sobre o leitor, ao incitá-lo à uma transformação de visão
pela criação de um mundo ainda não revelado de um todo.
Nenhum mistério, de Paulo Henriques
Britto
Bem sabemos
que as vias de todo poeta nunca são retilíneas, o que significa dizer que tais
indícios e outros que se acumulam em Nenhum
mistério não é o que parece à primeira leitura. É que às vezes negar –
em português – nem sempre quer dizer o que racionalmente se espera da atitude.
No caso deste livro se apresenta como uma alternativa de tornar o dessentido em
matéria de poesia, um claro exercício de pura transfiguração esperado de todo
gesto poético. É claro que o poeta não deve se ajustar à ordem comum das
coisas, mas deve perceber que sua emancipação não pode suplantar a atitude que
melhor o define (e por consequência também nós os leitores): interrogar-se.
Interrogar não é nenhum mistério. Leia mais aqui.
O coração pronto para o roubo, de Manuel
António Pina
A obra do
poeta português é vasta. E, curiosamente, como a de Nicanor Parra, era
integralmente desconhecida no Brasil até a aparição desta antologia. Quer
dizer, talvez ainda mais curioso, porque sobre o chileno ainda é possível empregar
a desculpa da língua e sobre o português nem isso. Não bastasse, Manuel António
Pina foi o ganhador do Prêmio Camões, o mais importante galardão em língua
portuguesa. A seleção preparada por Leonardo Gandolfi é mais modesta que
apresentada em Só para maiores de cem
anos. São mais de oito dezenas de poemas que mostram ao leitor um panorama
sobre o fazer poético do poeta do Porto; seu cariz reflexivo, irônico,
desencantado e nostálgico, por exemplo, estão aí refletidos e é uma ótima
escolha para mergulhar num universo tão diverso e rico.
Xeque-mate, de Maria Azenha
A poesia,
como toda arte é objeto de dimensão variada: bálsamo de nossas dores, granada
de nossas revoltas. Assim poderia definir este livro publicado no Brasil pela
Editora Urutau. O movimento extremo de jogo de xadrez em que o tabuleiro não
difere em nada de nossa vida e as jogadas dos dilemas que dizem dela. Com ele a
poeta compõe uma obra que situa no limiar. A voz que dá vida a estes poemas tem
o fôlego de um grito contra o pior de nós: é a voz não-alheada a esse tempo de
limites, de vícios, de desumanização desbragada. Uma voz, aliás, que destoa de
uma Maria Azenha mais surrealista e apartada do mundo como é a de De amor ardem os bosques, mas renova um
dos valores difíceis de localizar nas poéticas contemporâneas quase sempre mais
fechadas sobre e alheias de uma condição ética da qual a literatura, como
objeto de intervenção nas ideologias de domínio, não pode jamais se apartar. Quer
dizer, amplia-se aqui o tom encontrado em A
casa de ler no escuro.
Árvore de Diana / Os trabalhos e as noites, de Alejandra Pizarnik
A Relicário
Edições corrige uma grave lacuna entre nós; que este nome não era ausente entre
a pequena comunidade dos leitores de poesia no Brasil – é uma verdade. Mas, a
poesia de Pizarnik, a poeta adorada por Julio Cortázar, só era presente em
traduções diversas online e em revistas. A editora captou bem os sentidos dessa
ausência e os desejos acumulados dos leitores e nos colocou logo diante de dois
títulos fundamentais da não-breve obra da poeta argentina. Estes livros foram
referendados pelo próprio Octavio Paz, um gesto quase raro de exibição de seus
interesses de leitura por autores (sobretudo autoras) seus contemporâneos. A
objetividade do verso, o flerte com o imaginário mítico e com as cotidianidades,
a transmutação lírica das mesmidades, a integração entre as fronteiras da lírica
e da prosa – isto é, a melhor visita ao universo poético de Alejandra Pizarnik,
estão aqui. E as traduções de Davis Diniz se completam aqui pelas leituras
atentas de Ana Martins Marques e Marília Garcia, além do texto inédito entre
nós do próprio Paz para um prólogo à edição de 1962 de Árvore de Diana. As edições bilíngues são ainda duas pérolas do nosso mercado editorial em
2018.
Ponto sombra, de Inês Dias
O título que
nomeia esta antologia é de um poema que a poeta portuguesa deu à luz pela
primeira vez na publicação De capo,
que saiu em seu país em 2014. Numa leitura sobre a poesia de Inês Dias para o
jornal Público, Hugo Pinto Santos,
diz-nos que o extraordinário na obra da poeta “é que um mecanismo tão
revisitado quanto o do espelhamento do eu nos objectos com que o sujeito
contacta alcance expressão tão nobre”. Para o crítico, “o que sucede porque
Inês Dias se posiciona para lá da mitologia romântica, invertendo os sinais de
uma operação de identificação e conhecimento do mundo”. Isto é, “enquanto um
romântico conceberia um eu absoluto, irredutível (interpretação sui generis de Fichte), apesar das
tempestades da psique, e partiria de si para se impor, diríamos, ao mundo (na
senda de um Herder), esta poética concebe um movimento distinto. Parece partir
para o mundo e para os outros para se (re)conhecer neles”, emenda. A edição
brasileira dessa poesia é da Corsário Satã; foi organizada por Manuel de Freitas.
Muito do que se pode entrever do lirismo de Inês Dias, é que este constitui uma
dicção muito própria, reinventando a maneira como o poeta se relaciona com
mundo e renova-se enquanto renova-o. Há nos seus versos a vivacidade e o delicado
frescor sem se deslizar para o piegas ou sentimento merencório.
carvão :: capim, de Guilherme Gontijo
Flores
O nome
talvez dispense apresentações porque tem sido visto de maneira muito recorrente
entre as principais figuras da tradução no Brasil. E como poeta, Guilherme
Gontijo Flores tem ainda uma extensa lista que incluiu livros quase ano a ano
desde 2013 com a publicação de brasa
enganosa. Este livro reanima algumas das questões fundamentais recorrentes
na obra do poeta, sobretudo sua natureza inventiva e a relação (decorrente
dessa convivência com a tradução) com a poesia clássica, imprimindo, assim,
novas e necessárias forças à poesia brasileira. O verso de Guilherme é de uma
sofisticação rara entre os contemporâneos e feito com a matéria feita para durar
ao se reportar, principalmente neste livro aos lugares de limiar de nossa
existência, estes que em qualquer tempo será movido da mesma maneira e pela
mesma constante das inquietações: o que a vida e o que a morte. Há outro tom
que agora pulsa – sua aproximação com o verso integrado às convulsões que nos
guiam individual e coletivamente em tempos sombrios ao se filiar à potência
daqueles cuja vida sinonimam luta e resistência.
Obra poética, de Sophia de Mello Breyner
Andresen
Desde há uma
década os portugueses tinham uma edição que reunia integralmente a obra da
poeta, cujo trabalho de revisão fora iniciado por ela própria em meados da década
de 1980. No Brasil, os leitores precisaram sempre se contentar com duas antologias
publicadas – uma, em meados dos anos 1990 e outra já agora em 2018. Preparada
por Carlos Mendes Sousa e Maria Andresen Sousa Tavares, esta importante edição
portuguesa ganhou versão no Brasil pela Tinta-da-China e agora podemos ter a
poesia de Sophia integralmente e dela construir nossas próprias antologias, sem
atravessadores. O gesto completa sua singularidade quando sabemos que 2019 é o ano
que mais se falará sobre a obra de uma das principais poetas de língua
portuguesa de sempre – é que agora se passa o seu primeiro centenário. Aqui no blog, um texto sobre a poesia de Sophia a partir da antologia organizada por Eucanaã
Ferraz.
Desde o medo já é tarde, de Casé Lontra
Marques
Na lista de
Melhores do Ano de 2017, registrei com surpresa e enorme satisfação o contato com
a poesia deste jovem poeta; e agora, pela editora 7Letras, Casé Lontra Marques
apresenta outra pérola. Este título é o do primeiro verso do primeiro poema e
perfaz um gesto criativo interessante, que a transformação do livro de poesia
num objeto contínuo. Isto é, compreendendo o nome aquilo que designa, o princípio
e o fim de um objeto, e aqui o que designa integra a abertura da própria obra,
o que o poeta constrói – propositadamente ou não – é um movimento em ∞ Renova-se
o cariz objetivo e cortante do verso, bem como uma visão lírica singular sobre
o mundo, suas pulsões e como isso atravessa e se conforma em objetos verbais. Com
este livro renova-se algumas das expectativas sobre uma poesia que ainda muito
nos dirá, no melhor sentido do por vir.
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Comentários
Eu gosto muito de poesia e adoro a escritora Sophia de Mello Breyner Andresen, Fernando Pessoa entre outros!Ivanete Nayer.