O prazer dos devaneios estruturados. A criança no tempo, de Ian McEwan
Por Guilherme
Mazzafera
O mais novo
romance de Ian McEwan, Machines like me, a ser publicado no aniversário de
Shakespeare em 2019, promete uma interessante incursão pela realidade
alternativa de uma Londres nos 1980 em que a Inglaterra perdeu a Guerra das
Malvinas e Alan Turing está vivo, obtendo importantes avanços em inteligência
artificial. Dentre estes, há a possibilidade, factível aos pecuniariamente
bem-nutridos, de adquirir humanos sintéticos reformuláveis ao gosto do cliente.
Adam, um desses novos produtos, é comprado por Charlie, que o personaliza junto
com Miranda, sua paixão. Um dos mais gastos recursos estruturais da forma
romance, o triângulo amoroso parece dar as caras, agora acrescido da dimensão
inquietante do ménage com um ser potencialmente inorgânico. Confesso que depois
do desconcertante Enclausurado – ou Hamlet revisited narrado por um feto (sim,
você não leu errado) –, a proposta não me soa demasiado ousada.
A questão
que parece mover o enredo de Machines (ao menos em seu nível publicitário de
pré-venda), além de questionamentos genéricos sobre “o que é ser humano?”, é o
tênue limite da desmedida, em que somos capazes de “inventar coisas além do
nosso controle”. De modo mais específico
– e aqui é pura especulação –, a invenção por mãos humanas de um provável robô
humanoide que, de algum modo, adquire consciência a ponto de se envolver
amorosamente, parece sinalizar que nossas mais assentadas verdades são, sempre,
ficções. E aqui tocamos no nervo que Yuval Noah Harari, em Homo Deus: uma breve
história do futuro (2016), estila como o ponto fraco de toda ficção científica:
o acoplamento entre inteligência e consciência, enquanto nossa experiência
atual, calcada na poderosa disseminação de algoritmos – que, em um futuro não tão distante, diz ele,
serão capazes de nos conhecer melhor do que nós mesmos – parece dar notícia
exatamente do contrário. Mas tocamos também em uma ferida que a ficção de
McEwan reabre com frequência: as consequências profundas e dissolventes de um
ato impensado e – posto que única alternativa – a incapacidade fundamental da ficção
em lidar com seus desdobramentos.
Reparação
(2001), o grande romance de McEwan, plasma com rigor e beleza essa perpétua
angústia do homo fictus. A possibilidade de ordenar os eventos, destecer os
fios e aplanar as ranhuras em busca de um sentido transmissível que o ofício
literário permite (ou impõe?) não se exerce sem o jugo coercitivo do
irreparável. A protagonista, Briony Tallis, procura, pela escrita de um romance
(que é o romance que lemos), expiar a dor que não amaina, ocasionada por um ato
infantil (mas consciente), sucessão de equívocos vertidos em interpretação
cabal, de efeitos destrutivos para sua família. Perto do fim, já escritora de
sucesso que decide publicar seu último romance (o que lemos), a narradora
reconhece que, uma vez estabelecidos no campo do verossímil, a manipulação dos
eventos que sua voz autorizada permite não refreia a impotência constitutiva à
própria forma: “como
pode uma romancista realizar uma reparação se, com seu poder absoluto de
decidir como a história termina, ela é também Deus? Não há ninguém, nenhuma
entidade ou ser mais elevado, a que ela possa apelar, ou com que possa
reconciliar-se, ou que possa perdoá-la. Não há nada fora dela. Na sua
imaginação ela determina os limites e as condições. Não há reparação possível
para Deus nem para os romancistas, nem mesmo para os romancistas ateus.”
Esse breve
excurso pela obra de McEwan não tem outro intuito que o de tentar pensar um
romance seu de 1987, The Child in Time, aportado há poucos meses nas livrarias
que nos restam. Lançado pela Companhia das Letras com tradução do experiente
Jorio Dauster, A criança no tempo, embora menor, é romance mais dispersivo e
menos bem resolvido do que Reparação, com algumas amarrações frouxas, mas que
não deixa de trazer a marca vívida de um romancista perturbado pela
dissolvência do tempo.
O evento
disparador do romance é o misterioso desparecimento de Kate, a filha de três
anos do escritor-por-acidente de livros infantis Stephen Lewis, em uma
cotidiana ida ao supermercado. No entanto, engana-se o leitor que procura um Busca
implacável dos anos 1980. O sumiço de Kate, curiosamente, é antes baixo contínuo
do que fato ostensivo na construção novelística, cujo núcleo é o contínuo
pervagar arbitrário do tempo e suas múltiplas refrações na vida privada e
pública de seu protagonista. Logo no início do romance, a procura obsessiva de
Stephen por localizar a filha é descrita como ímpeto vicário de encontrar, em
outras crianças, uma “substância” de empréstimo capaz de assegurar a permanência
de Kate. Imanente a essa busca, a consciência do tempo como “relógio fibroso”,
cujo funcionamento precisa ser mantido a qualquer custo, pois “sem a fantasia
de sua continuada existência, ele estava perdido, o tempo pararia. Era o pai de
uma menina invisível.”
A
experiência do luto incerto traz em seu bojo um despertar para a “urgência do
tempo que se contraía”, manifesto, por exemplo, na percepção do deteriorar-se
do corpo de seus pais, Douglas e Claire, em embate com suas essências, bem como
no corte definitivo lacerado pelo nascimento de um filho, que faz com que o
então pai compreenda que os seus “tiveram uma existência completa e intrincada
antes do seu nascimento”. Outras cisões também se colocam para Stephen, como o
afastamento gradual da mãe de Katie, Julie, uma musicista que encarara a perda
de modo distinto, inserindo-a em um processo de amadurecimento e transformação
em que “certezas anteriores não eram jogadas fora, e sim reenquadradas”, o que
parece eliminar a possibilidade de paralisia temporal, emergindo antes como
“revolução científica”, que redefine o já sabido, do que como cisma religioso,
duplicador de dogmas. Não à toa, é Stephen quem permanece no apartamento do
casal, enquanto Julie se muda, evasão percebida pelo marido sob os auspícios do
kairós: “[Julie] Usara o desaparecimento de Kate para executar seu próprio
desaparecimento.”
O esvair-se
de Kate faz-se metáfora de um modo específico de percepção: a do intratável e
impenitente tempo que, “não necessariamente como ele é, mas como o pensamos –
proíbe de forma monomaníaca as segundas oportunidades”. A rigor, toda boa
ficção, arte essencialmente temporal que nos faculta uma insuspeitada liberdade
ao ritmar a leitura, é aposta vital contra o tempo, e, para Northrop Frye, ela
seria capaz até mesmo de esfarelá-lo, já que a ficção se gesta em um mundo
“onde nada existe fora da imaginação humana”. Essa imaginação, por sua vez,
comporta (e deforma), inclusive, o mito da infância como instância especial, como
se dá no caso de Charles Darke. Amigo próximo de Stephen, responsável pela
publicação de seu livro e um importante ex-figurão da política, Charles ostraciza-se
em uma propriedade rural onde, sobre uma árvore, erige um mirante a que
frequenta amiúde, sempre de calças curtas. Há certa ambiência trágica em
Charles e sua puerínsula, o desejo do menino impossível pela “segurança da
infância, a impotência, a obediência, e também a liberdade que vem junto,
liberdade em matéria de dinheiro, decisões, planos, exigências”, como resume
Thelma, sua companheira. Mas, tal como o menino impossível de Jorge de Lima,
que vela “aí do lado / enquanto todas as crianças mansas / dormem”, no alto de
sua árvore dileta, desce sobre Charles “uma noite encantada // da lâmpada que
expira / lentamente / na parede da sala...”
Os nove
capítulos do romance são epigrafados por excertos (fictícios) de um Manual
autorizado de puericultura, publicado pelo Departamento Real de Imprensa. Tal
livro, como descobrirá o leitor, foi encomendado a Charles pelo
primeiro-ministro inglês, descrito com fortes ecos Thatcherianos e que conduz o
projeto movido por interesses que extravasam o campo profissional. O mais
importante dos excertos talvez seja o que se segue, desvelando o caráter
socialmente construído da infância, recuperável unicamente enquanto ilusão
custosa:
“Cumpre
lembrar que a infância não é uma ocorrência natural. Houve épocas em que as
crianças eram tratadas como pequenos adultos. A infância é uma invenção, uma
criação social, que a sociedade tornou possível à medida que cresceu em
sofisticação e adquiriu maiores recursos. Acima de tudo, a infância é um
privilégio. Não se deve permitir que, ao ficar mais velha, a criança esqueça
que seus pais, como corporificação da sociedade, são aqueles que lhe concedem tal
privilégio, e o fazem às suas custas.”
Creio que
com sutis ajustes, a substituição de “infância” por “tempo” no excerto acima permite
rearticular as questões centrais do romance em nova chave. Há algo de
antinatural em conformar-se a uma espécie de ritmo universal, cuja presença é
inegável, a despeito da arbitrariedade dos instrumentos de medida. A
consciência do tempo como privilégio construído socialmente, assegurado pela
evolução tecnológica que permitiu a certo contingente da humanidade desenvolver
atividades independentes do clima diário e dos equilíbrios sazonais, assoma-se
diante de Stephen pela solvência de Kate nas horas do “relógio fibroso”.
Se o chavão
do tempo irrecuperável é cabalmente diagnosticado pelo narrador como tal, o
vislumbre do tempo como matéria imoldável e subjetiva ganha, todavia, uma
ênfase um pouco excessiva, a ponto de se tornar assunto de uma conversa de
Stephen com Thelma, estudiosa de física que, de modo quase protocolar, discute
o então atual estado da arte das pesquisas acadêmicas. Para sequer ser nomeado
como entidade, diz ela, é preciso separar o tempo da matéria e do espaço:
“temos de distorcê-lo para poder enxergá-lo”. Todo ato cognoscitivo traz em si
a irrupção do sujeito e, mesmo no âmbito científico, os objetos sob escrutínio
são por meio deste constituídos. Algo ainda mais flagrante se dá no caso da
teoria da relatividade, em que “o tempo depende da velocidade do observador”. É
justamente isso, a percepção individual, relativa, de um tempo perfeito, que
Stephen experimenta quase como um alumbramento no acidente com uma carreta em
que se vê envolvido: “A experiência toda não durara mais de cinco segundos.
Julie teria gostado do que aconteceu com o tempo, como a duração se conformou à
intensidade do evento.” (grifo meu).
Se há um
defeito no livro, ele talvez resida em seu excesso de autoconsciência, fazendo
com que determinadas questões, que ganhariam mais força pela semeadura oblíqua
no tecido narrativo, emerjam altivas e já minuciosamente analisadas. A frase em
destaque acima, que em A criança no tempo tem ares um pouco protocolares de exempla,
parece-me, entretanto, um dos veios centrais da ficção de McEwan, levado à
realização plena em Reparação. Se a dimensão desmanteladora de um único gesto
que põe em marcha forças irrefreáveis é partilhada pelas duas obras, há uma
diferença importante. O desaparecimento de Kate é, em si, mais contingência que
consequência – do mesmo tipo que teria assegurado, talvez, o sucesso de Stephen
como escritor –, enquanto os modos de encará-lo se fazem destilar como
escolhas. Em Reparação, por outro lado, a escolha reside no próprio ato
interpretativo de Briony, equivocação que demanda a edificação cuidadosa de um
riquíssimo arcabouço ficcional no qual, a partir da composição de outra
personagem-escritora – mas escritora pour cause –, a busca por conformar
intensidade e duração só se pode dar como romance final, frustro e irredimível
(mas não para nós).
Entre as
formas possíveis de enfrentar o luto elaboradas por Stephen, oscilando entre
desbragada indolência e ativo comprometimento nas aulas de tênis e caligrafia
árabe, há uma cena tocante, ainda que excessivamente racionalizada, em que ele
decide ir à loja de brinquedos comprar um presente de aniversário para Kate,
dois anos após o seu desvanecer. Consciente de estar promovendo uma “paródia do
luto”, perigosa em sua iminência de pôr tudo a perder, além de índice
inequívoco de fraqueza, as razões do gesto aos poucos afloram: a solidão
instila, em pequenas doses, o apego às superstições, veredas do “pensamento
mágico”. A compra do brinquedo, levada a cabo “num espírito de extravagância
amorosa”, seria antes uma “oferenda ao destino”, um “desafio” que propõe uma
permuta: o presente pela menina. Tendo
esgotado as opções materiais de procura e esperança, resta-lhe, unicamente,
“trabalhar no nível do simbólico e do numinoso”. Neste sentido, a escolha do
presente se mostra crucial: um walkie-talkie, aparelho que apaga as pequenas
distâncias espaciais, congraçadas em unidade temporal. A busca por essa
unidade, que é, também, anelo pela abolição do tempo, intensifica-se ao final
do romance, seja no modo de lidar com o legado dos pais, seja na reaproximação
à Julie. Nestes dois casos, decanta-se uma visada mais orgânica da experiência,
a partir de “pensamentos mais simples, elementares” que conduzem à percepção de
que o que resta é “essa intensificação, essa questão da vida que ama a si
mesma”, cujas repercussões imediatas preservo em benefício do leitor.
Graças à
dimensão relativa do tempo, que açula a emulsão dos planos do mercado editorial
com os alvedrios deste leitor (kairós?), deparei-me com o livro de McEwan
alguns meses após a leitura de O Pai da Menina Morta (Todavia, 2018), romance
de estreia de Tiago Ferro, em cujo cerne encontra-se a necessidade de “dar
forma à dor” a partir de uma perda irreparável e definitiva. Partindo de um
fato da realidade empírica, o romance jamais se deixa contaminar pela verve da autoficção,
buscando antes uma contínua desarticulação dos lugares-comuns do luto e da
perda. O que temos em mãos é um diário ruinoso: coletam-se laivos e lascas de
tempos, lugares, gêneros e instâncias desconformes, a que o diário acopla, mas
não necessariamente organiza. O narrador deste romance rejeita o não lugar que
o luto quer lhe impor (“O Pai da Menina Morta será sempre inadequado. Em todos
os lugares”); mais do que isso, rejeita a dinâmica coercitiva da escrita como
ordenação da vida. A forma do livro, em grande medida, toma para si a difícil
missão de, a cada passo, repor a tensão entre eliminar o mundo ou reordená-lo,
compondo um “desorganismo” que, como a Menina-Deus de seu excerto final, encara
o leitor de frente, “Piscando, envolvendo tudo, ganhando e perdendo forma sem
parar”.
A criança no
tempo é menos dramático que o romance de Ferro, a começar pela determinação do
ponto de vista em terceira pessoa (ainda que intimamente colado ao
protagonista) e pela tendência autoexplicativa. No entanto, há certa ambiência
liminar entre sonho e realidade que os aproximam. Em O Pai da Menina Morta, estas
duas categorias seriam usurpadas por uma espécie de verdade fílmica da vida, a
qual, como espectadores, “não podemos alterar”, pois “o roteiro já foi decorado
e a película está pronta”. No entanto, resta um espaço exíguo de atuação, pois
“na dobra do ator queremos acreditar que é possível interferir, agir, mudar as
coisas.” Em McEwan, por sua vez, temos uma espécie de dobra temporal, em que
Stephen vislumbra Douglas e Claire, seus pais, anos antes em um bar “úmido e
lúgubre” após um passeio de bicicleta. Claire, instada por Stephen, atesta a
realidade pregressa da visão do filho, descrevendo em detalhes a cena, ocorrida
pouco depois de revelar a Douglas que estava grávida. De dentro daquele mesmo
pub, Claire teria visto uma criança que a mirava diretamente, branca “como uma
aspirina”, convencendo-se, naquele instante, de estar vendo a seu filho ainda
não nascido.
Se
retomarmos a conversa de Thelma e Stephen em A criança no tempo, há, na
discussão da variegada gama de visões acadêmico-científicas sobre o fenômeno
temporal, uma observação instigante quanto ao arbítrio da ciência: “Niehls Bohr
provavelmente tinha razão o tempo todo quando disse que os cientistas não
deviam ter nada a ver com a realidade. O negócio deles é construir modelos que
expliquem suas observações.” Não será esse, também, o impulso que move a pena
do autor de ficção? Ou, quem sabe, utilizando certa terminologia empregada pelo
narrador do romance de McEwan, não seria a ficção uma entrega à urgência
comunicativa que se constrói pelo “prazer dos devaneios estruturados”? Seja no
romance como desorganismo de O Pai da Menina Morta ou na sondagem dos recessos
do tempo no livro de McEwan, a busca pela forma artística, em sua conquista
precária de uma móvil fixidez, é sempre dobra, um autoenvergar-se cujo fruto
não é a imitação servil da vida, e, sim, sua refração criadora.
Sugestões de
leitura:
FERRO,
Tiago. O Pai da Menina Morta. São Paulo: Todavia, 2018
FRYE,
Northrop. A imaginação educada. Tradução de Adriel Teixeira, Bruno Geraidine e
Cristiano Gomes. Campinas: Vide editorial, 2017
HARARI,
Yuval Noah. Homo Deus: Uma breve história do amanhã. Tradução de Paulo Geiger.
São Paulo: Companhia das Letras, 2016
LIMA, Jorge
de. O mundo do menino impossível. In: Antologia poética. Seleção e posfácio de
Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosacnaify, 2014.
MCEWAN, Ian.
Reparação. Tradução de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras,
2011.
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