O imoralista, de André Gide


Por Pedro Fernandes



“Das mil formas de vida, cada um de nós só pode conhecer uma. Desejar a felicidade dos outros é loucura; não saberíamos que fazer dela. A felicidade não se compra feita, quer-se sob medida”. Estas sentenças são de Ménalque, uma figura que frequentaria o mesmo clube de Lord Henry Wotton, amigo de Michel, a personagem principal do romance de André Gide que também faria par na mesma estante de O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde. O que Ménalque oferece é mais do que assanhar os desejos intocados, guardados nos lugares mais adormecidos da consciência do amigo, quem a esta altura, depois de atravessar uma complexa enfermidade, vive imerso na vontade de negar totalmente o modo de vida que até então lhe determinara e abrir-se a outras expressões de viver, como se infectado repentinamente por uma doença do Carpe Diem; as sentenças de Ménalque funcionam como chaves de acesso aos sentidos principais desse romance de André Gide. Ou, de maneira ainda mais eficiente, formam uma síntese de O imoralista.

No leito de morte do pai, Michel, o único da família ainda sem as determinações que garantam o fio de continuidade da estirpe, promete casamento a Marceline; a promessa não é uma escolha em liberdade ou nascida de uma vontade interior, é puramente um agrado e uma garantia ao pai. O que é a vida de casado e o que amar uma mulher são as primeiras aflições de Michel até se descobrir tomado pela enfermidade e pelos cuidados da companheira. A partir das atitudes dela, o jovem estará suscetível a uma mistura de gratidão e piedade, sentimentos que logo serão tomados por ele como amor. A resposta, portanto, para as inquietações de recém-casado é, pois, devolver os gestos da mulher com esses sentimentos.

Ao mesmo tempo quando erroneamente descobre o que para Michel é a forma mais verdadeira de amor, porque afinal, as conveniências ficam assim preservadas, ele descobre acertadamente aquilo que antes do amor lhe falta: a liberdade para ser. A personagem chegará mesmo a acreditar que a repetição do destino paterno é a mais autêntica forma de felicidade, porque é o que lhe garante (não necessariamente, descobrirá) se deixar levar por algumas saídas para o mundo. Sim, essa figura engendrada por Gide em nada difere dos muitos burgueses (no ser e no sentir) que habitam nosso tempo: sua existência é embrulhada num mundo à parte do mundo que o impossibilita compreender que existir está para além da repetição dos lugares e dos rituais determinados pelo establishment simbólico da unidade sobre a diversidade.



Em contato com o mundo, Michel assiste ao nascimento de uma necessidade por viver que se confunde com um seu alheamento. Entre a possibilidade de escolha e de exercício de sua liberdade, qual o amigo Ménalque, a personagem debate-se no limite das contradições; quer ser capaz de experienciar o mundo em todas as suas multiplicidades e permanecer à mesma ordem a qual sempre pertenceu. Enquanto Ménalque gaba-se de ser um homem em errância, um hedonista de puro sangue, Michel escolhe preservar o casamento e a ordem da vidinha burguesa, utilizando-se de toda a condição por ela oferecida para estabelecer, não espontaneamente, mais de forma induzida e determinada, suas liberdades. É singular, nesse sentido que não resista ao convite do amigo para uma noite juntos, enquanto os sentidos estão para o que se passa em casa, a iminência do desmantelamento de toda ordem se se confirma o fim trágico para Marceline. Ou ainda que, enquanto se permite ao desnudamento para a vida, para a negação dos ritos no universo intelectual, decida-se por aceitar a cadeira de um curso no Collège de France. 

O protagonista deste romance de André Gide é o homem cercado pela impossibilidade de obedecer aos seus próprios instintos para a determinação da sua liberdade e, também, de sua existência. Michel é aquele que entrega tudo às mãos do destino – tem uma sina miserável de acreditar que ele não o decepciona – enquanto no mais fundo do seu íntimo anseia para que ele [o destino] se decida por aquilo que não é capaz de se decidir, nem sozinho, nem influenciado como o Dorian Gray de Oscar Wilde. Não se trata de uma passividade ante as coisas nem de um individualismo que arraste Michel apenas para as zonas de seu interesse; insaciável, quer é estar nas mil formas de existência. Fora das determinações pessoais, é o homem encalacrado entre um mundo antigo, marcado pela formação enciclopédica, o burguês intelectual, e pela libertação de todos os dogmatismos, capaz de compreender que vida está à luz do sol não à sombra dos gabinetes e das bibliotecas, no presente, não no passado, fora de toda determinação moral e cultural.    

Impasse entre intelecto e corpo, a incapacidade para a escolha se reveste ainda de outra impossível saída, ou talvez se utiliza dela como estratégia para justificar sua impassibilidade: para Michel sua condição de liberdade só se assoma se primeiro o outro estiver feliz; se repararmos, todas as suas principais escolhas aparecem determinadas por esta lei: do casamento com Marceline à pequena decisão de ir ou não ter com Ménalque, para citar as duas já aqui apresentadas. Assim, o que se verifica, por isso o quanto é vão deixar ao destino as escolhas que só nós podemos fazer, é a contínua impassibilidade entre o eu e outro, enquanto se adia milímetro a milímetro a faculdade de existir e de ser livre. É notável a própria voz da personagem – quem narra a sua história – quando, são, e Marceline enferma, sente-se impelido a retribuir, assim acredita, o amor recebido dela quando estava doente: “Procurei então, mais uma vez, fechar o meu amor na mão. Mas para que havia eu de querer uma felicidade tranquila? A que Marceline me dava, a que ela representava para mim, era como um repouso para quem não se sente cansado. Mas, como eu a sentia exausta e necessitada do meu amor, fingia que o amor de que a cercava era uma necessidade minha. Sentia intoleravelmente seu sofrimento; e era para curá-la que eu a amava”.

Toda a narrativa de O imoralista acompanha a errância do casal Michel-Marceline e todas as tentativas dele para comprar-lhe a felicidade – ou à sua própria. Enovela-se com a fantasia de mundo habitado todo ele por uma atmosfera que beira ora ao sentimento de angústia, enfado pela repetição de tudo e seu contínuo esvaziamento de sentido, ora por uma sensualidade libertina. Por vezes, é só luxúria o que este errante observa; obcecado pelos corpos dos homens rudes, de mancebos, encanta-se pela beleza da força, a determinação de viverem, a rudeza dos gestos, padece-se pelo sofrimento do trabalho pesado, respira seus suores – esta seria toda a liberdade e toda a felicidade de Michel. É seu exercício de descobrir o que chama ser autêntico. Tudo neste romance repousa entre uma contenção e uma distensão e isso se nota não apenas na variabilidade de formas e de atmosferas captadas pelo olho e os sentidos dessa personagem, como pela ascensão de corpo, da inércia ao viço. Gide descreve através dessa figura o reencontro – ou a tentativa – do homem com o mundo, na sua variabilidade.

Entre deixar de ser “um homem de ideias feitas” para se levar pela correnteza da existência e dela inaugurar, possivelmente, o homem por se fazer, o que este romance nos descreve é a luta do homem por ser. Ou, a luta de toda existência pela compreensão do que é existir. O imoralista não trabalha para limar os paradoxos que atuam no interior da pulsão dos corpos à vida. André Gide parece seguir outra lição colocada na boca de uma de suas personagens – esta dita pelo próprio Michel: “As mais belas obras dos homens são obstinadamente dolorosas”. Este é um romance situado entre a dor (nos sentidos diversos) e a ansiedade por libertar-se ou não se limitar a ela; pretende refundar um comum elemento que em parte participa da estética das coisas. E se o protagonista não alcança essa possibilidade, ou pelo menos não se percebe enquanto tal, o romance se mostra, em definitivo como execução desse interesse. Faz da dor (condição impossível de fugirmos) um objeto pelo qual é possível observamos algumas das determinações da existência.

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