O desabrochar do primeiro homem
Por Rafael Kafka
A leitura de O estrangeiro sugere que Albert Camus era alguém de mente adstringente, seca. Fria. Ao menos, para o Rafael que o leu há mais de dez anos. Mesmo na época estando em profundo amor pelo existencialismo, fiquei com tal imagem em minha mente diante de um escritor que, de forma clara, mostrava como nossa sociedade é baseada em sentimentos de afeição construída e impostas socialmente. Pois mais do que o crime bárbaro cometido por Mersault, que hoje começa a ganhar conotações racistas – debate válido dentro da obra de Camus que discute a relação entre colonizador e colonizado de forma pungente –, o julgamento do protagonista do romance mais célebre do escritor franco-argelino tem como fatores intensificadores o fato de ele não chorar no enterro da própria mãe.
Essa falta
de sensibilidade coloca Mersault como um monstro e mesmo os leitores mais
críticos e desprendidos de tais convenções sociais acabam estranhando um pouco
sua postura. O que ajuda um pouco a tornar tudo mais suportável é a fala dele
nas últimas linhas dizendo que as vaias e apupos da multidão não o atingiam
mais, clara afirmação de que ele já era um estranho em sua própria realidade.
A peste ajuda a entender melhor o pensamento de Camus por ser um verdadeiro louvor à
dignidade humana. Por mais falha que seja em alguns pontos a metáfora da peste
com o nazi-fascismo, o convite à luta, à perseverança, é bem interessante como
força motriz do pequeno romance. Dominando bem a arte de produzir literatura e
teoria filosófica e política, Camus produz dois ensaios que nos ajudam a
entender melhor as imagens expostas nos dois romances citados: O mito de
Sísifo e O homem revoltado. Ambos mostram a revolta como uma forma de viver
a vida com autenticidade, sem se prender a fórmulas fechadas.
Talvez a
grande crítica ao pensamento revolucionário de esquerda colocada no segundo dos
dois ensaios acima postos é justamente baseada na crítica às fórmulas fechadas,
ao dogmatismo de pensar que gera a violência revolucionária cega aos olhos
camusianos. Mesmo que o contexto de aplicação de tais teorias seja complexo
quando pensamos na guerra pela independência da Argélia, nos tempos atuais,
quando sentimentos tribais se mostram cada vez mais fortes e rançosos para a
saúde humana, a crítica de Camus ao pensamento pré-moldado é muito interessante
e mais incisiva em diversos pontos do que a profunda análise ontológica feita
por Sartre em seus gigantescos ensaios.
Nesse
sentido, a leitura de outros textos fora O estrangeiro me ajudaram a entender
Camus não como homem frio e sim como homem que defendia um processo de
liberdade plena, cujo conceito ainda se achava em desenvolvimento quando teve
sua morte abrupta e tola. Assim como o maio de 68, anos depois, essa morte
marca um ponto de ruptura o qual aparentemente não leva a um ponto preciso, a
não ser o desejo de que a liberdade seja mantida, protegida, garantida.
Curiosamente, dentro da maleta carregada no momento de sua morte, Camus trazia
um micro universo ele também interrompido em pleno processo de construção.
O primeiro homem é um dos textos mais tocantes lidos por mim nessa vida de leitor ávido,
sedento. Ele se torna tocante por conta de uma prosa que resgata momentos
vividos de forma profundamente rica e lírica, encantando o leitor com as
aventuras do pequeno Camus em sua cidade natal. Ao mesmo tempo, para quem como
eu cresceu em situação de pobreza extrema, a existência desse infante se mostra
a cada tempo um imenso espelho a refletir sobre todas as injustiças e
desigualdades sociais possíveis de vermos em nossas sociedades, mesmo ali sendo
um ambiente árabe bem diferente, em aparência, do nosso cristão.
Isso
ajuda-nos a entender melhor certa ideia expressa por Camus no começo de seu
romance autobiográfico sobre como somente os ricos podem buscar o tempo
perdido. Tal busca é impedida aos pobres, pois suas condições de vida, em
geral, são profundamente parecidas, gerando assim uma grande memória coletiva
que rechaça processos mais profundos de rememoração. Desse modo, conflitos
familiares começam, terminam e se repetem sem que as causas de tais conflitos
sejam expostas claramente pelas partes envolvidas. A memória, assim como a
reflexão crítica, é impedida de ocorrer por conta da pobreza constante, uma pobreza
que exige do trabalhador uma atenção contínua aos seus afazeres, ao seu modo
de agir, para garantir diariamente o alimento mínimo que tem ao seu alcance. A
vida dos pobres se resume, então, a uma espécie de eterno presente melancólico,
perfeitamente encarnado na figura da mãe de Jacques Comery, um mal disfarçado
Albert Camus, a qual olha para tudo sem compreender plenamente nada do que se
passa ao redor.
Em minha
vida, por conta da idade avançada de minha mãe, essa figura se mescla à da avó,
senhora de amor autoritário que fazia Comery dormir ao seu lado todas as tardes
em clara tentativa de garantir a ele alguma disciplina em seu gosto pela
liberdade. Mas o que mais assemelha a minha genitora à avó de Jacques é o seu
gosto pelo trabalho como forma de garantir a sobrevivência da família, o que
por pouco não impede o jovem Comery de atingir níveis de formação maiores, com
a ida ao ginásio, bem como o faz trabalhar nas férias para a avó não ter de
lidar com improdutividade e gastos mais excessivos com uma criança em casa.
Não há
crueldade nesse gesto, apenas um desejo de se manter vivo o qual se espalha
pela fraternidade do pauperismo ao redor. Imagens como essa invadem minha
memória diariamente, pois vejo pais de alunos, em alguns momentos, reproduzirem
falas de minha mãe que há alguns anos preferia me ver trabalhando a terminar os
estudos, refletindo o fosso social e moral existente ainda em muitos espaços do
Brasil, onde os mais pobres acham que isso de ter cultura e mente formada é
coisa de rico: o pobre precisa apenas trabalhar, comer, sobreviver.
Por esse
motivo, houve passagens de O primeiro homem tão tocantes a mim que tive de
parar a leitura e refletir sobre meu passado, relembrando cenas como aquela,
tentando entender como a minha sensibilidade não morreu diante da pobreza e do
senso comum. As cenas com Pierre nas idas à biblioteca municipal me fizeram
pensar demais em conversas tidas com um antigo amigo do ensino médio, Tiago,
com quem discutia livros lidos praticamente ao mesmo tempo pegos da biblioteca
da escola; ao mesmo tempo, lembrei de muitas idas solitárias à biblioteca
pública de minha cidade para encontrar nos livros um consolo para a minha
solidão e desespero juvenis. Tudo isso revelando um mundo de beleza estética
profunda necessitada a cada dia de resistir contra a pobreza ao redor que
tentava me fazer abrir mão dos valores intelectuais e artísticos descobertos
por mim então para viver uma vida de pragmatismo puramente focada na
sobrevivência.
Jacques teve
o professor Bernard que o ajudou a seguir ao ginásio, intervindo inclusive com
sua avó para que tamanho talento não se perdesse no árduo trabalho em prol da
sobrevivência miserável. Eu tive algumas figuras como essa, mas nunca ninguém
tão presente e quando o meu Pierre pessoal, Tiago, se foi, senti muita falta por
muito tempo dessa companhia constante com quem havia troca de ideias e
camaradagem. Bernard é uma figura que em minha vida se mostra na forma de
vários pequenos apoiadores, os quais eu gostaria que fossem mais próximos, pois
em alguns momentos o isolamento pesou por demais e segue a pesar em tempos de
fascismo instituído e no qual camadas pensantes, como professores, reclama do
imposto de renda sem pensar em formas de conjunta eficazes, unindo rua,
política e arte em um grande ato de mudança de perspectiva social, ao passo que
ficam a afirmar que o tempo mata os sonhos revolucionários e mostram a jovens
como eu como é a realidade em toda a sua brutalidade.
Fico
pensando em como seria o final de O primeiro homem. O texto lido mostra
algumas pistas do que Camus faria, mas tudo é muito vago. Gostaria de ver mais
a vida desse escritor que contribuiu demais para a evolução da arte do romance
e do ensaio no século XX e, para um esquerdista como eu, serve de belo
instrumento de autocrítica. Lamento ver textos inacabados, em especial aqueles
mais reveladores do autor – poderia citar aqui também o bom O primeiro terço,
de Neal Cassady, outro que usou bem o método proustiano de escrever memórias,
mas por pouco tempo –, pois eles indicam um trajeto duplamente interrompido
pela morte, no plano concreto e no plano estético.
Fico
pensando em como evoluiria o pensamento de Camus, o qual mesmo inacabado – de
certa forma, isso soa um pleonasmo já que nosso pensamento nunca está acabado –
já foi capaz de dizer tanta coisa ao mundo sobre justiça social e necessidade
de ruptura existencial com as fórmulas pré-moldadas pelas convenções sociais. O
certo é que esse romance autobiográfico, cujo processo de escrita e
desenvolvimento temos algum acesso pelas notas deixadas pelo autor, diz muito
de um processo de descoberta de um homem que não conheceu seu pai, morto na
Primeira Guerra Mundial, e que nesse ato de descobrir tem uma expansão de olhar
a qual foge de seu controle e se volta para algo muito maior do que um desvelar
pessoal: o absurdo do mundo e da pobreza nele presente.
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