História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar, de Luís Sepúlveda
Por Pedro Belo Clara
Evocamos
hoje, se tal exercício sequer comportar qualquer utilidade prática, um dos
maiores e mais bem sucedidos escritores sul-americanos da actualidade. A
comprová-lo estarão os inúmeros prémios que ao longo dos anos lhe têm adornado
o currículo, dos quais o Prémio Eduardo Lourenço, em 2016, é somente o exemplo
mais recente; além, e é aqui que o foco maioritário deverá incidir, de uma
considerável difusão da sua obra a nível mundial, com especial destaque para os
países latinos europeus, onde Sepúlveda desfruta por norma de um enorme
carinho.
A obra que
trazemos hoje à lembrança, ainda que para alguns leitores possa ser uma
completa novidade, foi editada em 1996 e, desde então, tem gozado de um
estatuto idêntico ao de O Velho que Lia Romances de Amor, de 1989, por muitos
ainda hoje considerado um dos melhores livros deste autor nascido no Chile, no
ano de 1949. Na verdade, nos primeiros anos do século XXI, em Portugal, esta
adorável história de uma improvável amizade já havia superado as cem mil
unidades em vendas – o que num mercado como o português, onde a população pouco
ultrapassa os dez milhões de habitantes, é uma conquista de se louvar.
Comecemos a
nossa introdução à obra escolhida por uma pergunta que colocamos com o mais
jovial dos espíritos: poderá um grande, gordo e negro gato ver numa gaivota um
verdadeiro amigo em vez de uma farta refeição? Bem, esta é somente uma das
várias questões e contradições que a obra explora e apresenta. Na verdade, este
notável livro cativa agradavelmente pela fluidez do discurso, pela poesia com
que a própria história se impregna e, assim, espalha, pela belíssima mensagem
que transmite e pela magia que nos dá a saborear a cada momento de leitura – ao
feliz estilo da mais competente fábula.
Tudo se
inicia no porto de Hamburgo, no norte da Alemanha, cidade onde o próprio autor
viveu, quando Zorbas, o gato (e não: “o grego” – atenção aos equívocos), encontra
uma pobre gaivota que ostentava em si todos os sinais de ter sido vítima de uma
nefasta maré negra. Desse breve contacto, que desde logo mudaria a sua pacata
vida de felino ocioso e despreocupado, duas promessas são firmadas: cuidar do
ovo que lhe será confiado, acompanhando o posterior crescimento da cria, e
introduzir a gaivota por nascer na ardilosa arte de voar. Assim se lança o mote
da narrativa.
Diga-se a
bem de uma melhor compreensão que é igualmente na comédia de certas situações, como
na hora do eclodir do ovo e o consequente rebuliço que tal estranho fenómeno, a
olhos felinos, produzirá, que reside um outro atractivo deste pequeno grande trabalho.
Os paralelismos
com a realidade humana são também frequentes. Pois, assim como em nossas
próprias existências nunca estamos realmente sós, por mais que nisso cismemos, o
intrépido gato Zorbas (admitamos: é preciso coragem para um gato aceitar o
cuidado de uma gaivota bebé) conta com o bem-vindo auxílio dos seus fiéis
companheiros, outros gatos do porto, embora igualmente inexperientes em tal
hercúlea tarefa, capaz de arrepanhar os bigodes ao mais afoito exemplar – o que
até se compreende de bom grado, sem qualquer prejuízo para a benévola imagem de
felinos tão valorosos e bem intencionados.
Em todo o
caso, a seu tempo a difícil incumbência obterá a superação desejada. Mas, assim
como o fim de um caminho apenas representa o início de um outro, uma nova
tarefa, mais complexa ainda, iniciar-se-á para o pobre e gordo Zorbas: o voo da
simpática gaivota, que desde logo, de forma tão carinhosa e – diga-se – justa, passa
a referir-se a Zorbas por “Mamã”.
A premissa
é-nos dada: "só voa quem se atreve a fazê-lo". Sobrará, então, a pergunta: será
a missão superada? Encontrará Zorbas e os seus companheiros felpudos, com a
ajuda de um garoto sagaz, um meio de cumprir a totalidade da promessa?
Deixaremos que os nossos estimados leitores descubram por si mesmos, como aliás
lhes é devido.
Não será
propriamente inédito na literatura uma história que envolva gatos e gaivotas,
ou pelo menos aves no geral. Basta lembrar o famoso conto de Jorge Amado, O
Gato Malhado e a Andorinha Sinhá, de 1976. No entanto, tal facto não retira o
devido interesse e espaço no panorama global que a esta obra é merecido, pois
vale-se muitíssimo bem das suas valência principais, o que apenas consolida a
sua posição como uma obra autêntica e singular.
Falando em
valências, parece apropriado terminar com um gesto de justiça, a nosso ver: o
sublinhar do carácter pedagogo que de um certo modo a obra apresenta e, como
agente sincero e caridoso, lega após cada curva da narrativa. Pois este livro de
leitura leve e divertida relembra-nos, quase a todo o instante, o
importantíssimo papel que certos indivíduos, não necessariamente do nosso conhecimento,
poderão desempenhar nas vidas de cada um de nós, marcando-as de uma forma indelevelmente
positiva – seja gato, ave ou Homem. Pois quem poderia afirmar que seria um gato
a conceder a uma gaivota as necessárias instruções – e, mais importante ainda,
a confiança – para esboçar o seu primeiro voo? Eis, como raiz, a espontaneidade
da vida em acção e a magia dos estranhos mas poéticos encontros!
Sobeja a
conclusão, quase em jeito de moral: certas presenças alheias a uma realidade
pessoal descobrem nesse mesmo indivíduo capacidades que nem o próprio julgava
nele existir, potenciando-as, levando-as ao sol da sua completa afirmação. Não
será precisamente essa, afinal, uma das virtudes mais dignas das amizades
sinceras e do amor fraternal que daí advém, mesmo que contem apenas meros dias
ou semanas de vida? Assim como na nossa humana existência o é, igual será na
vida de um gordo gato e de uma jovem e corajosa gaivota, Ditosa de sua graça.
Terminamos
com aquela que nos parece ser a melhor prova daquilo que nos anteriores
parágrafos tentámos explanar do modo mais claro, sumário e instrutivo possível:
a imagem mais forte de toda a história, aquela que a encerra e que mais própria
se nos apresenta para este instante. Que ela diga, pois, o que as palavras não
saberão contar e que se espelhará, em derradeiro momento, num orgulho fortemente
emotivo no olhar de Zorbas, o nobre, quando testemunhar os errantes voos que felizes
cruzarão os céus cinzentos de Hamburgo.
"Zorbas
permaneceu ali a contemplá-la, até que não soube se foram as gotas de chuvas ou
as lágrimas que lhe embaciaram os olhos amarelos de gato grande, preto e gordo,
de gato bom, de gato nobre, de gato de porto."
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