Gulosa por livros
Por Victoria Livingstone
Harriet de Onís e Guimarães Rosa, 1966. Foto: Alfred A. Knopf |
Em dezembro
de 1948, o New York Times publicou um artigo sobre a tradutora
Harriet de Onís intitulado “Sra. De Onís põe o saber latino-americano em livro,
mas o sabor latino invade sua cozinha” [“Mrs. De Onís puts Latins’ Lore in
Book, but Their Cuisine Goes Into Her Kitchen”]. O artigo começa por uma
breve menção a The Golden Land: An Anthology of Latin American Folklore in
Literature, editado por de Onís e publicado pela Alfred A. Knopf apenas dois
meses antes, mas, em seguida, reduz suas conquistas tradutórias a trabalho
doméstico. O jornalista descreve o que a tradutora cozinhava para seu marido
Federico de Onís, renomado estudioso de literatura hispânica, e cita Carl
Ackerman, então decano da faculdade de jornalismo da Universidade Columbia, que
disse que uma “aula de torta de maçã” ministrada por Onís na Venezuela “faria
mais para consolidar as relações entre a América do Norte e a do Sul do que
todas as suas preleções literárias”. Apesar disso, Harriet de Onís foi uma das
mais influentes tradutoras de literatura latino-americana de meados do século
XX. Além de traduzir por volta de 40 livros do espanhol e do português para o
inglês, Harriet editou duas antologias, orientou outros tradutores, escreveu
resenhas, deu palestras e atuou como consultora editorial para a Alfred. A.
Knopf.
Nascida
Harriet Wishnieff, cresceu em Sheldon, Illinois, e mudou-se para Nova York para
estudar línguas estrangeiras no Barnard College (faculdade privada de artes
liberais para mulheres, filiada à Universidade Columbia), graduando-se em 1916.
Depois de trabalhar um tempo como secretária da dançarina Isadora Duncan,
decidiu continuar os estudos em nível de pós-graduação, especializando-se em
espanhol, na Universidade Columbia. Dirigiu então o departamento de espanhol da
Doubleday, Page & Co. e editou uma antologia chamada Today’s Best
Stories From All The World (1922), volume associado a seu trabalho
editorial na revista World Fiction. Em Columbia, Harriet conheceu
Federico de Onís, professor espanhol que havia fundado na universidade o Instituto
de las Espanãs, depois renomeado Hispanic Institute. Casaram-se em
1924. Por meio de Federico e do Hispanic Institute, a tradutora entrou em
contato com a maior parte dos principais autores latino-americanos do período.
Tais contatos certamente impulsionaram sua carreira, mas ela era uma figura
influente por conta própria.
O primeiro
livro traduzido por de Onís foi uma edição abreviada de El águila y la
serpiente (1928), o livro de memórias semificcional de Martín Luis Guzmán
(1887-1976) sobre a Revolução Mexicana, cujo título em inglês foi The
Eagle and the Serpent. A tradução foi publicada pela Alfred A. Knopf em 1930,
período de crescente interesse norte-americano pela América Latina. Antes do
início do século XX, muito pouco da prosa latino-americana estava disponível em
tradução para o inglês. Como a primeira tradutora prolífica de espanhol e
português para essa língua, de Onís ajudou a estabelecer o cânone da literatura
latino-americana traduzida nos EUA. Para certo volume de suas traduções,
incluindo The Eagle and the Serpent, ela também atuou como editora e
abreviou textos para conformá-los às especificações da Knopf. Além disso,
promovia alguns autores tão bem que um deles, o colombiano Germán Arciniegas
(1900-1999), pediu a ela que o representasse como uma espécie não oficial de
agente literária – ela acabou por declinar, mantendo embora uma relação de
proximidade com o autor. De Onís traduziu obras de Alejo Carpentier, Ernesto
Sabato, Ricardo Güiraldes, Jorge Amado, Alfonso Reyes, Fernando Ortiz, João
Guimarães Rosa, Gilberto Freyre e outros autores latino-americanos. A maioria
de suas traduções foi publicada pela Alfred A. Knopf.
De Onís
manteve correspondência regular com Alfred e Blanche Knopf – casal proprietário
da editora Alfred A. Knopf –, com editores como Herbert Weinstock e com muitos
dos escritores cujas obras traduziu. Tais cartas, arquivadas na coleção Alfred
A. Knopf do Harry Ransom Center, permitem desvelar os caminhos pelos quais suas
escolhas tradutórias dialogavam com sua biografia, os contextos políticos e as
forças do mercado editorial. Sua antologia Golden Land, por exemplo, foi
publicada durante o período em que ainda perdurava a Política de Boa Vizinhança
(Good Neighbor Policy) dos EUA em suas relações com os vizinhos
latino-americanos, de modo que o livro foi veiculado pela editora e avaliado
pela crítica conforme tal visada ideológica. Mais tarde, ela recomendou a
publicação de livros que examinavam temas referentes ao macarthismo e à
Revolução Cubana. Ela também pareceu prever o Boom latino-americano,
o fenômeno editorial que viu escritores como Gabriel García Márquez elevados à
proeminência internacional. Em 1956, escreve a Blanche Knopf: “Como Charles
Poore me disse uma vez, sempre que enfrentamos problemas internacionais
começamos a amar a América Latina de novo, e acho que tal momento chegou, tendo
em vista as ações russas naquelas áreas. Provavelmente haverá uma grande
escalada de interesse norte-americano na região, ao menos de interesse
oficial.”
A
correspondência na coleção Knopf também revela que a influência da tradutora
extravasava seu ofício. Em uma época em que a Knopf contava com poucos editores
capazes de ler em espanhol e menos ainda em português, a editora fiava-se
profundamente em de Onís para avaliar textos hispânicos e brasileiros. Seus
pareceres sobre os livros que recebia determinavam se a editora publicaria ou
não uma tradução em língua inglesa de tais obras. Assumidamente “gulosa por
livros”, de Onís lia, para a Knopf e por prazer, em ritmo vertiginoso. Em julho
de 1967, já tarde em sua carreira e apenas dois anos antes de sua morte, ela
disse a Bill Koshland, editor da Knopf: “Li por volta de oito livros nas
últimas três semanas.” No momento em que escreveu essa carta, ela estava
lidando com a morte do marido, administrando a propriedade herdada, cuidando da
mãe doente e traduzindo a obra Dona Flor e seus dois maridos (1966)
[título em inglês: Dona Flor and her Two Husbands: A Moral and Amorous
Tale] de Jorge Amado.
A despeito
do assíduo fluxo de livros aguardando suas avaliações, de Onís pedia
constantemente à Knopf que pagasse em livros por seu trabalho de leitora. Ao
invés de dinheiro, ela solicitava outros títulos publicados pela casa,
incluindo obras de Alexis de Tocqueville, H. L. Mencken, Albert Camus e André
Gide. No entanto, ainda que tivesse requisitado alguma compensação financeira
pelas leituras, seus honorários teriam sido baixos. Um acordo com a Knopf de
1964 mostra que a editora lhe pagava $500 anuais para ler, avaliar e escrever
pareceres sobre livros em espanhol, português e italiano. O pagamento pelas
traduções também era baixo. Pela tradução de Contrapunteo cubano del
tabaco y el azúcar (1940) [título em inglês: Cuban Counterpoint:
Tobacco and Sugar], de Fernando Ortiz (1881-1969), publicado pela Knopf em
1947, ela recebeu um total de $725 por aproximadamente 105 mil palavras,
menos de um centavo por palavra. De Onís podia permitir-se uma dedicação
integral a uma carreira de baixo rendimento. Em casa, contava com ajuda
doméstica e nunca teve de se preocupar com o aluguel. Mas o privilégio
usufruído não diminui o fato de ter sido uma tradutora diligente e devotada. Em
1962, ela escreveu a Alfred Knopf dizendo que nunca teve necessidade do
dinheiro obtido como tradutora, mas que estava “intensamente interessada em
colaborar para que o trabalho dos escritores latino-americanos angariasse a
atenção do público dos Estados Unidos”.
De Onís
tinha um instinto apurado para discernir quais obras mereciam tradução. Além de
avaliar os livros enviados pela Knopf, ela atirava outros autores à editora,
nem sempre com sucesso. Em 1952, enviou a seus editores um volume de contos de
Jorge Luis Borges, acompanhado por uma carta em que se referia ao livro como
“soberbo”. Continuava ela: “estou certa de que não há escritor mais bem-acabado,
ou que domine melhor seu ofício na América Latina do que Borges”. O editor
Herbert Weinstock respondeu: “Não há dúvidas de que os contos de Borges são
excepcionais. Há dúvidas, todavia, de que um livro deles em tradução possa ser
vendido ao público americano. Eu não posso insistir em tal livro com Alfred e
Blanche por conta das más vendas regulares da ficção latino-americana por
aqui.” Em muitos casos, entretanto, os editores da Knopf seguiam seus
conselhos. Em 1960, solicitaram seu parecer sobre Gabriela, Cravo e
Canela, de Jorge Amado (traduzido posteriormente como Gabriela, Clove
and Cinnamon). Após avaliar o livro, de Onís disse à editora que era preciso
“arrematá-lo antes que outra pessoa o faça… É completamente brasileiro e, ao
mesmo tempo, universal.” A Knopf seguiu seu conselho e assegurou os direitos de
tradução rapidamente. Em 1962, Alfred Knopf escreve a de Onís: “eu ronrono de
orgulho cada vez que vejo Gabriela subir um degrau na lista de
best-sellers. Você estava certa sobre este livro romper a barreira do som.”
Por sua
insistência, Knopf também publicou traduções da obra de João Guimarães Rosa.
Embora entendesse os desafios de traduzir a obra de um autor frequentemente
comparado a James Joyce por sua sintaxe difícil e pelo uso de um vocabulário
inventado, regional e arcaico, de Onís convenceu Knopf a publicar uma tradução
em língua inglesa da obra-prima do autor, Grande Sertão: Veredas, que
de Onís cotraduziu (com James L. Taylor), em 1963, como The Devil to Pay
in the Backlands. De Onís e Knopf não esperavam que o livro tivesse ampla
circulação e, de fato, ele se mostrou um fracasso comercial nos EUA. Apesar das
dificuldades apresentadas pela obra de Guimarães Rosa, de Onís sentiu que era
importante introduzir seus livros aos leitores de língua inglesa. Em 1966, ela
traduziu o volume de contos do autor, Sagarana, título neologístico que
permaneceu inalterado na tradução.
Por sua
versão de Sagarana, de Onís recebeu o prêmio PEN de tradução em 1967. No
discurso de aceite, enfatizou a importância do traduzir: “Não é minha intenção
cobrir a nós, tradutores, com as tintas do altruísmo cujo objetivo ou incentivo
é meramente o de compartilhar com outros ou de trazer a seu conhecimento obras
que de outra forma lhes permaneceriam ignotas. Não conheço nada que enriqueça
tanto o espírito e a consciência de uma cultura como a familiaridade com
outras.” As lições sobre torta de maçã podem ter contribuído para o
entendimento mútuo, mas as contribuições literárias de Harriet de Onís foram
bem mais significativas e sua influência se estendeu muito além da cozinha.
Nota
* O texto de Victoria Livingstone foi cedido para publicação no Letras in.verso e re.verso. Sua publicação original foi como “A Glutton for Books”, na edição de outono de 2018 da Ransom Center Magazine; leia aqui em PDF ou aqui no sítio da revista. Há uma versão em língua espanhola, “Harriet de Onís y la traducción de la literatura latinoamerica” aqui. Esta tradução de Guilherme Mazzafera agora apresentada também foi editada inicialmente na Ransom Center Magazine e está disponível aqui.
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