Fargo e a negação do tribalismo e do determinismo
Por Rafael Kafka
Terminei de
ver Fargo há várias semanas, mais de mês provavelmente, e sempre pensava em
escrever sobre essa série. Mas me faltava uma certa coragem em iniciar o texto,
pois são tantos pontos a serem analisados dentro do enredo montado com
profundas referências à obra dos irmãos Coen cinema que não sabia ao certo por
onde começar. Foram os alunos de uma turma de nono ano os quais me deram a
inspiração.
Um aluno me
questionou acerca do caso médium que tem sofrido acusações sérias de dezenas de
mulheres relatando variados tipos e graus de abusos sexuais. Minha resposta,
que gerou um debate de quase quarenta minutos, buscou focar no modo como essa
notícia poderia ser utilizada por pessoas de outras religiões com o fito de
causar uma demonização da figura do líder espiritual.
Há na espécie
humana um profundo sentimento de tribalismo do qual é bastante difícil nos
livrarmos. Tal sentimento é ligado diretamente ao nosso desejo de ter
estabilidade, segurança e proteção, remetendo aos instintos de sobrevivência
existentes em nós. Mas, como dito por Aristóteles, somos animais políticos e
esse elemento político e social também pode ser influenciado pelo nosso
tribalismo. Os comportamentos políticos com influência tribal se tornam mais
evidentes em tempos de eleição, quando a divisão “nós e os outros” domina todos
os nossos minutos. Todavia, eles não dominam apenas nossa existência em tempos
eleitoreiros.
O exemplo do
médium elucida bem isso quando e se for usado com objetivo de demonização da
religião alheia. Em todas as religiões e grupos políticos temos crimes,
incluindo os de clara natureza sexual. Ainda assim, agimos como se tais atos
não pudessem ser cometidos por algum dos nossos pares. Preferimos tratar a
violência como um produto de um espírito monstruoso ou demoníaco e identificamos,
por meio da reificação de discursos prontos, esse espírito ao polo tomado por
nós como negativo. Há um perigo claro nesse tipo de conduta, pois ela ao mesmo
tempo gera e omite violência. Gera ao fazer com que nós, os bons e justos,
busquemos eliminar de maneira física e simbólica o outro; omite quando a
violência por nós demonizada ocorre em nosso meio e tratamos o ser que a causou
como um demônio dentro de nosso paraíso particular.
Muitas
vezes, se preciso for, os casos de violência são omitidos ou acobertados para
garantir a segurança do grupo. Quando líderes e figuras influentes causam
violência, nosso gesto é instintivo e depois racional no sentido de proteger
aquele ser. Saindo do âmbito das figuras influentes, todo homem mais cedo ou
mais tarde será veementemente defendido contra uma mulher a qual o acusa de
algum tipo de assédio ou violência. Provavelmente, ouvirá alguma testemunha
dizendo que ele nunca cometeria tal gesto por conta de sua índole. Mesmo em
casos de adultério, caso claro de violência contra a auto estima de um ser
amado, a defesa mais toscamente ontologicamente é usada com alguém dizendo que
“homens são desse jeito e nada se pode fazer”.
Já me
deparei, ainda no âmbito do machismo, com grupos políticos feministas
encobrindo casos de violência contra a mulher por conta de interesses
partidários “maiores”. Indo para o campo da moral mais ampla, vejo gente
dizendo que tal partido roubou mais para tolerar os crimes cometidos de quem
até dia desses era contra a corrupção. O
espírito tribal faz com que geremos malabarismos discursivos os mais
variados para justificar atos de pares importantes para nós, pois o tribalismo,
reforçado em tempos de referenciais tão voláteis, a estabilidade. Vemo-nos no
outro e se o outro comete esse crime e continua sendo nós, então nós estamos
cometendo tal ato monstruoso. Por isso, é necessário encobrir tal ato com
alguma justificativa plausível ou remover este ser de nosso meio.
Fargo é um
seriado provocante por quebrar toda a lógica tribal, o tempo todo. Nos trinta
episódios de suas três temporadas, vemos uma série de grupos se enfrentando
entre si, com a presença de seres isolados em meios aos embates com a polícia,
cada um com seus interesses envolvidos em jogo. A série é inspirada no filme
homônimo dos irmãos Coen cuja cena final tem a protagonista se questiona acerca
da origem do mal, o que leva as pessoas a causarem tantos aos perversos nesse
mundo ao invés de simplesmente viverem suas vidas. Apesar do ar cômico do
filme, há nele elementos que se mostrarão na série como o caos gerado por atos
que desencadearão uma série de fatos absurdos, todos ligados entre si por uma
estranha cadeia de causa e efeito.
Mas mais do
que afirmar certo determinismo causal, tais cadeias de fatos mostram a
fragilidade da cadeia de acontecimentos que permeiam a vida humana. Também
evidenciam como a bondade e a maldade podem ser uma questão de escolha e de
ponto de vista. Tanto no filme quanto na série vemos homens pacatos, afundados
em problemas pessoais, afundando-se no crime. Na série isso chega a ser mais
absurdo, pois no longa metragem ainda temos a desculpa de um crime forjado – um
sequestro para obtenção de dinheiro – que resulta em assassinatos de pessoas as
quais estavam no lugar errado na hora errado. No primeiro episódio da primeira
temporada temos Lester Nygaard, um corretor de seguros que sofre bullying da
própria esposa, sentado em um hospital com Lorne Malvo, talvez a representação
mais perfeita de um psicopata no audiovisual já vista por mim. Lorne ouve o
relato de Lester e decide matar um sujeito que atormentava o corretor, o qual
por coincidência era membro de um poderoso grupo de criminosos. Em sua casa,
Lester em um ataque de revolta calma mata a própria esposa e a partir daí se
revela um psicopata em transformação que deixaria Walter White em seu processo
de transformação em Heinseberg com cara de bom moço.
A partir
daí, temos histórias narradas em paralelo, mas todas profundamente ligadas.
Lorne vagueia pela cidade ao mesmo tempo em que é perseguido por dois assassinos
contratados para matá-lo, Lester aos poucos se torna um homem mais forte em
suas decisões, tudo focado na morte causada por sua revolta e Molly Solverson,
policial grávida – tema recorrente do primeiro filme – tenta de todas as formas
desvendar os crimes desencadeados pelo encontro de Lester e Lorne.
Enquanto os
absurdos ocorrem com seus choques de atos, vemos em Lester um ponto
interessante de reflexão, pois o pacato cidadão de vida frustrada se torna aos
poucos um cruel assassino. A psicopatia na série parece mais um ato de escolha,
tanto que Lorne em momento algum tem seu passado revelado com algum trauma que
o tenha deixado com sede de sangue. Impossível não vê-lo como o assassino em
série protagonista de “Onde os fracos não tem vez,”, outro filme dos irmãos
Coen que também possui uma cena final com um personagem policial aturdido
diante do absurdo da existência e da maldade humana.
O
brilhantismo de Fargo se dá em diversos aspectos da série, tanto que é difícil
citar um ponto fraco dela. O roteiro é muito bem escrito e amarrado, criando
temporadas independentes entre si no tocante a elencos e histórias, mas com
profundas amarras. No final de tudo, as histórias que se passam em 1987 – o
filme –, em 2006, em 1979 e em 2010 (as
respectivas temporadas da série) acabam se conectando, inclusive com direito a
uma interessante cena a qual começa no filme e tem conclusão na primeira
temporada do seriado, quase vinte anos depois na cronologia. Vemos personagens
da primeira temporada aparecendo depois na segunda, mais jovens, o que nos
ajuda a entender melhor o seu processo de desenvolvimento idiossincrático, algo
bem explorado mas em volume maior e ritmo diferente por “Better Call Saul”, que
nos ensina mais de dois personagens centrais da genial Breaking Bad.
Há paixões
conflitantes em mim e as séries são uma delas. Ao mesmo tempo que vejo a
literatura, em sentido lato, e o cinema como traços de um certo eruditismo que
quero ter, vejo as séries como reflexos de uma cultura televisa tola que agora
migra para o streaming, mesmo racionalmente não vendo televisão em si como
sinal de tolice. Por outro lado, como se o conflito dessa frase não fosse
suficiente, vejo algumas séries com potencial estético e ético imenso. A já
citada Breaking Bad e sua frequência Better Call Saul, Mad Men, The
Handmaid’s Tale, The Sopranos e algumas outras mostram a possibilidade das
séries assumirem potenciais narratológicos e gráficos que muitas obras
literárias e fílmicas possuem. Fargo é um ponto interessante nesse sentido,
pois marca a intercessão do audiovisual feito para as telas grandes com o feito
para as telas de televisão e computador. Nesse sentido, mesmo aquelas
embalagens que ainda causam sentimentos de rejeição nas mentes mais puritanas
são capazes de provocar em nós profundas experiências de aprendizagem
artística.
Fargo é
brilhante por revelar, do seu jeito, a vida como ela é: cheia de caos e
absurdo, com nossa razão tentando ordenar tudo sem muito sucesso. A maldade
aqui se mostra em todo tempo, mas no fundo é um conceito criado pelos cidadãos
de bem, como bem ilustra Jean-Paul Sartre em Saint-Genet, para definirem-se
melhor a partir de uma definição do outro. A maldade está em todo canto, mas
não existe. O paralelo entre Lorne e Lester, logo em um dos quadros iniciais,
ilustra bem esse fato, complementado pelo modo atônito e perdido da polícia em
todo o seriado.
Nossa
existência ainda insiste em se prender na dicotomia bem/mal e não conseguimos,
pela falta de auto entendimento, pelo apego ao tribalismo, entender como atos
cruéis são cometidos a todo instante na história da humanidade. De repente, um
dia quando finalmente nos livrarmos de todo tribalismo não eliminaremos a
crueldade do mundo, mas teremos uma consciência mais livre de amarras que nos
ajudem a combater “o mal” mais cotidiano entendendo que nossos pares queridos
que a nossa maneira pregam o belo, justo e moral também podem, assumir posturas
“monstruosas” quando querem ou precisam. Fargo é uma narrativa bela por ser
perturbadora, por nos mostrar como a cadeia dos fatos e os conceitos emitidos
como verdades fundamentais são frágeis ao extremo.
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