“Diversidade ordenada”: A imagem descartada: para compreender a visão medieval de mundo, de C. S. Lewis
Por Guilherme Mazzafera
Gestada por um espírito móvil e eclético, a obra de Clive Staples
Lewis desafia categorizações rentes, espraiando-se de uma crítica literária de
vasta amplitude – mas de recorte preciso, como no impressionante Alegoria do
amor – à fluidez persuasiva do teólogo popular de obras seminais como Cartas de
um diabo a seu aprendiz e Os quatro amores. Minha aproximação à sua obra é
ainda recente, conhecendo de alguns anos apenas os sete volumes de Nárnia e o
já referido Cartas. Entre a leitura mais ou menos ritmada dos livros
teológicos, optei por imergir em seus escritos de crítica literária, começando
por um aparentemente mais didático e instigante para compreender não apenas a
própria concepção de Lewis, mas também a de alguns de seus amigos escritores
como J.R.R. Tolkien, Owen Barfield e Charles Williams, o núcleo básico dos
Inklings1, no que se refere ao interesse pela cultura do medievo. Trata-se
de A imagem descartada: para compreender a visão medieval de mundo (The Discarded
Image: An Introduction to Medieval and Renaissance Literature), publicado
originalmente em 1964, um ano após a morte de Lewis. A versão brasileira, levada a cabo pela É
Realizações e lançada em 2015, conta com tradução de Gabriele Greggersen, especialista
no autor que já verteu outras obras de Lewis para o português, e com uma breve
apresentação do crítico Rodrigo Gurgel. A edição é bastante bem cuidada,
apresentando apenas alguns poucos problemas de revisão.
Trata-se do último livro escrito por Lewis, o que lhe
imprime certo sentido de suma dos interesses que mobilizaram toda uma carreira
docente e criativa (não é difícil perceber a ambiência medieval das histórias
de Nárnia que se alarga, no todo da obra, em verdadeira cosmovisão). Sua
dimensão de “introduction” implica, por um lado, uma coesão organizativa
bastante clara, que a tradução fluente ajuda a manter; por outro, a despeito da
extrema variedade de exemplos, evidencia-se presença de certas generalizações,
fato quase inescapável a esta modalidade de obra. Há que se notar, no entanto,
a abundância de notas de rodapé, mais de 500 em pouco mais de 200 páginas. Sua
origem é diversa: do autor em sua maioria, sobretudo como referências
bibliográficas, mas também do editor, da revisão e da tradutora. Neste último
caso, como ela mesmo explicita em seu prefácio, a intenção é de contextualizar
o leitor brasileiro em meio à vastíssima pletora de nomes e obras evocadas por
Lewis, leitor profícuo das tradições medieval e renascentista da literatura
inglesa (embora mencione muitos outros nomes de origens distintas, poucas
referências recorrentes escapam a essa matriz, como o inalienável Dante) e
autor de English Literature in the Sixteenth Century (1954). Tal predominância
inglesa se faz sentir na quase onipresença de nomes como Geoffrey Chaucer, John
Gower, Shakespeare, Edmund Spenser e John Milton. Mas, como seria de esperar,
há muitos nomes pouco conhecidos do leitor brasileiro e, em grande medida, o
argumento do “modelo” buscado por Lewis se fortalece por sua refração nos mais
diversos autores, daí o interesse preciso por imagens específicas, passadas de
um autor a outro, seja de modo consciente por uma tradição compartilhada – em
que nossa visão moderna de autoria obviamente não impera – ou pelo olhar afiado
do crítico, compondo interessantes mosaicos afetivos.
Após breves palavras sobre “A situação medieval” (cap. 1) e
algumas “Ressalvas” (cap. 2), a organização interna do livro contempla dois
períodos, o clássico (cap. 3), do qual emergem Lucano, Claudiano, Estácio e
Apuleio, e o período seminal (cap. 4), cujos nomes centrais são Plotino, Calcídio,
Macróbio, PseuDioniso e Boécio. Após estes períodos, Lewis direciona o olhar
para o entendimento de “Os céus” (cap. 5), “Os longaevi” (cap. 6) e “A terra e
seus habitantes” (cap. 7), culminando em observações sobre “A influência do
modelo” (cap. 8). Qualquer tentativa de resumir o percurso proposto por Lewis
redundaria em farto reducionismo que não faz jus à obra, daí nossa opção por
assinalar algumas observações mais gerais que ganham muito com a leitura atenta
dos exemplos escolhidos pelo crítico.
Em seu prefácio, Lewis defende a ideia de que a obtenção de
um conhecimento básico sobre o período em questão, a despeito de suas
imprecisões, é um bom caminho para “aproximar-nos da literatura” medieval,
marcada, a seu ver, por um caráter “predominantemente livresco” e alicerçado em
um sentido profundo de autoridade, daí a referência constante de Lewis aos auctores
no sentido de que “Todo escritor, sempre que possível, baseava-se em autores
anteriores, (isto é,) seguia um auctour”, sobretudo os latinos. Lewis propõe
como aspecto distintivo do homem medieval seu anseio de organização exposto na
busca pela “construção de sistemas” capazes de abarcar certas totalidades, algo
plasmado vigorosamente em importantes obras de síntese total como A divina
comédia de Dante ou a Suma teológica de Tomás de Aquino. No entanto, Lewis
destaca como obra central uma outra, a qual se ligam estes exemplos, feita a
muitas mãos e movida tanto pelo caráter livresco como pelo “intenso amor pelo
sistema”: a “própria síntese medieval, toda a organização de sua teologia,
ciência e história de acordo com um singular, complexo e harmonioso modelo
mental do Universo”. Em outras palavras, o “Modelo”, espécie de “pano de fundo
das artes”, mas que não limita a pena dos grandes mestres, que o entendem como
“possivelmente substituível” – o que, se extrapolarmos um pouco, é um dos
pressupostos básicos da ação dissolvente da imaginação como meio de acessar
novos pontos de vista e, assim, reconhecer os limites de seu próprio viés.
Em uma dessas observações de passagem, Lewis nos ajuda a
entender o múltiplo apelo presente, mais do que em sua própria obra ficcional,
na obra do amigo Tolkien: referindo-se ao contexto específico dos inícios do
período seminal, que inclui a conversão cristã de Roma sob o cetro de
Constantino, Lewis identifica uma mescla profusa entre paganismo e
cristianismo, difícil de distinguir até nos dias de hoje, que favorece a
existência de um “terreno comum” a partir do qual “um escritor sincero era
capaz de produzir coisas que eram aceitáveis tanto para leitores pagãos quanto
para cristãos, desde que sua obra não fosse explicitamente teológica”. A
principal crítica de Tolkien aos escritos ficcionais de Lewis, Nárnia em
especial, era justamente o desmedido recurso ao alegórico, que não apenas
implicava o domínio intencional e restrito do autor sobre seu próprio texto (e,
por conseguinte, uma espécie de coerção do leitor), mas também certo aspecto de
vulgarização que Tolkien, leitor exigentíssimo e detalhista, percebia
negativamente também na apologética cristã do amigo.
Aliás, é possível perceber a presença velada de Tolkien em
ao menos dois momentos deste livro. Ainda no período clássico, Lewis tece alguns
comentários sobre a noção de natureza-natura, indicando que a segunda é uma
“metáfora consciente” inventada pelos filósofos pré-socráticos com o intuito de
abarcar uma grande variedade de fenômenos “sob um único nome”. Sem registro em
mitologias mais antigas, a deusa Natura só pode aparecer quando a percepção
viva e não abstratizante da natureza, representada, por exemplo, pelo enlace
fértil entre Céu e Terra que constitui “a mitopeia genuína”, deixa de existir.
A noção de “mitopeia” é central no pensamento de Tolkien, algo explicitado no
poema homônimo “Mythopoeia”, composto a partir da famosa conversa com Lewis e
Hugo Dyson na Eddison’s Walk de Oxford que levou à conversão cristã do primeiro,
cena belíssima recontada na incrível biografia de Humphrey Carpenter e também
no livro de Colin Duriez, que já resenhamos para o Letras. Em síntese
brevíssima, a criação de mitos é tarefa do homem enquanto subcriador (pois a
criação, inclusive do próprio homem, é prerrogativa de Deus) que, ao dar forma
às suas estórias, refrata em diversos tons o branco original: “man,
sub-creator, the refracted light / through whom is splitered from a single
White / to many hues, and endlessly combined / in living shapes that move from
mind to mind”.
O outro elemento distintivamente tolkieniano absorvido por
Lewis é o interesse pela figura fugidia das fadas, abordada no sexto capítulo,
que ganha muito se lido conjuntamente com o ensaio de Tolkien “Sobre estórias
de fadas”. Para Lewis, os Longaevi são “seres de vidas longevas” que não
desfrutam de um status oficial no grande Modelo. Sua importância, pondera o
crítico, reside justamente em seu “valor imaginativo”, ou seja, sua insubmissão
ao afã classificatório do pensamento medieval, disseminando “um quê selvagem e
de incerteza bem-vindo em um Universo que está correndo o perigo de ser um
pouco autoexplicativo e luminoso demais.” Contra a ideia popularizada do
tamanho diminuto das fadas – que aparecem aqui como escorregadio exemplo
principal dos Longaevi –, Lewis nos lembra mais de uma vez que a imaginação
medieval não trabalhava em escala, sendo improvável a presença de qualquer
verossimilhança nesse sentido em relatos anteriores ao Gulliver de Jonathan
Swift. Por fim, tendo desfeito conceituações obtusas, mas ainda mesmerizado,
joga a toalha: “Seja onde quer que as fadas tenham existido, elas continuam
incógnitas.”
A ideia desta imprecisão classificatória se relaciona com
outra, a dos espaços ignotos. O universo medieval, para Lewis, compreende um
tamanho desmesurado mas não infinito, sendo frequente na pena dos poetas a
percepção da Terra como diminuta e composta por uma “diversidade ordenada”. O
que não se acha, por outro lado, é qualquer “senso de desnorteamento e
desconcerto diante do totalmente discrepante”, de modo que quase tudo é
subsumido pelo modelo – com a comentada exceção dos Longaevi –, o que faz deste
mundo algo demasiado ordenado e imprime sobre nós, modernos, certa
claustrofobia ao avesso, ou seja, o enclausuramento dos vastos espaços, cujo
aspecto singular já se encontra, de certo modo, previsto pelo Modelo. Pode-se
sugerir aqui, como acicate crítico a ser melhor precisado em estudo próprio,
que o anseio mitopoético de Tolkien, genuinamente absorvido por Lewis, é o de
preencher quase obsessivamente esses espaços desconhecidos, dentro de uma
cosmovisão orgânica, mas não livre de tensões com o aspecto fortemente
autoral – e não auctoral – de sua obra.
Extrapolando um pouco a questão, é curioso perceber como ela
pode ser reposta hoje em um sentido bastante diverso. Durante séculos, a
cartografia foi mais uma arte do que uma ciência. Os mapas eram repletos de
adornos belíssimos que indiciavam, mais do que o gozo estético, um limite epistemológico.
Como observa Yuval Noah Harari em Sapiens, pensando no período anterior às
empresas de Colombo e Vespúcio, “Nenhuma cultura africana ou asiática sabia da
América, e nenhum cultura americana sabia da África ou da Ásia. Mas áreas
desconhecidas eram simplesmente deixadas de fora, ou preenchidas com maravilhas
e monstros imaginários. Esses mapas não tinham espaços vazios. Davam a
impressão de uma familiaridade com o mundo inteiro.” A sucessão de expedições
marítimas trouxe em seu bojo uma alteração de mentalidade: a presença do vazio
nos mapas, uma pungente admissão de ignorância diante do desconhecido, como se
nota no mapa-múndi de Salviati, de 1525. Pensando em termos-limite, Harari opõe
a visão de Cristóvão Colombo – homem pré-moderno que, embora tenha descoberto
um novo continente, jamais aceitou o fato pois a simples ideia de tê-lo feito
lhe seria estapafúrdia, daí sua crença de que chegara, na verdade, a uma ilha
na costa leste da Ásia –, à visão de Américo Vespúcio, cujo primeiro nome se
verá imortalizado no vocativo do novo continente graças ao importante mapa de
Martin Waldeseemüller – o primeiro a representar a América como continente
separado –, e cujas anotações de viagem deixam claro a certeza de ter chegado a
uma nova terra não cartografada nem prevista por todo o complexo cultural
vigente. É essa disposição em aceitar o novo e dedicar um olhar atento ao
presente, que demanda a expansão do conhecimento e não apenas proficiência na
tradição, que o faz, para Harari, o “primeiro homem moderno”.
O interesse pela expansão do conhecimento chegou a tal ponto
que, hoje, a abrangência e efetividade de dispositivos de localização e
navegação (gps, waze, google maps...) torna praticamente impossível a
existência de tais espaços ignotos, já cartografados e integrados ao “modelo”
atual. Com um celular funcionando, é basicamente impossível se perder na cidade
ou fora dela. Por outro lado, não se pode falar de um grande Modelo capaz de
acomodar o desconhecido, pois a experiência presente diz muito mais de
intolerância e violência contra qualquer expressão honesta de diferença do que de
sua incorporação efetiva. Trata-se, pelo contrário, da reposição coercitiva de
um modelo falido, insustentável e violento, que aponta o caráter construído de
todas as narrativas que o contestam para esconder o seu próprio. Se o modelo
medieval aceitava o diferente não em sua plena forma, mas como expressão
distinta de uma mesma unidade indevassável dotada de sentido profundo – daí seu
caráter demasiado autoexplicativo e claustrofóbico, que resultou, muitas vezes,
em violência – o modelo vigente não se estrutura pela unidade, mas pela
planificação, paradoxo habilmente diagnosticado por Erich Auerbach ao refletir
sobre o conceito de “literatura mundial”, cuja realização ultimada, a
existência de uma literatura sem fronteiras, seria também sua morte.
O recuo à “visão medieval de mundo” presente em Lewis e
Tolkien (com diferenças que merecem estudos à parte) diz muito de preferências
pessoais estético-filosófico-teológicas, mas também de um princípio ético
intimamente ligado à imaginação. Como nos lembra W.H. Auden em sua percuciente
resenha de “O retorno do rei”, o bem em Tolkien, em especial em O senhor dos
anéis, vence o mal pela imaginação, sendo capaz de vislumbrar-se outro, daí o
valor ético do optar, cisão entre alternativas que expõe fraturas, crenças e
alvedrios. Mestres que são, Lewis e Tolkien não recorrem à imaginação como
gesto regressivo, redutivo ou mesmo escapista, mas sim como modo de expandir os
pequenos espaços vazios que ainda existem e para desaplanar (recorrendo aqui ao
belíssimo quadrinho-tese de Nick Sousanis) os mapas amortizados pela precisão
tecnológica. “There are no maps to lead us where we are going, to this new world
of our own making”. A fala de George H. W. Bush, proferida na entrada da última
década do século passado, bem poderia ser o mote de qualquer romancista. Mas,
em verdade, toda boa estória precisa de um mapa. Ainda que, em sua “diversidade
ordenada”, estilado pelas palavras.
Notas:
1 O leitor interessado em saber um pouco mais sobre este
grupo bem como sobre a relação de amizade entre Tolkien e Lewis pode recorrer
“J.R.R. Tolkien e C.S. Lewis: O dom da amizade”, de Colin Duriez, e a “J.R.R. Tolkien: uma biografia”, de
Humphrey Carpenter, publicados pela HarperCollins Brasil em 2018 e que já
resenhamos por aqui e aqui.
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