William Faulkner e as tintas coloridas


Por Cristian Vázquez

William Faulkner em Farmington Club, 1960. Foto: George Berkley.

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Quando William Faulkner recebeu as provas de impressão de seu romance O som e a fúria, não gostou nada de descobrir algumas correções feitas por Ben Wasson, seu editor, que era também seu amigo. Os itálicos que utilizara para assinalar os saltos no tempo, para trás ou para frente, na primeira das quatro partes em que estão divididas o livro, estavam corrigidas pela inserção de espaços em branco nos pontos em que se davam essas rupturas. Essa mudança foi o que mais lhe desagradou.

Wasson alegou que o uso do itálico diferenciava apenas dois planos temporais, enquanto que na narrativa existia pelo menos quatro. Faulkner voltou a enviar o texto tal como havia escrito originalmente e o acompanhou de uma carta de tom um bocado aborrecido em que explicava que na verdade os planos temporais não eram quatro, mas muito mais. Só “o dia da ação tem 33”, enfatizava. E logo acrescentava que “estes são apenas alguns dos quais recordo”. Mas o principal motivo de sua recusa às modificações era outro.

“Um espaço indica uma mudança objetiva de tempo – apontou Faulkner na carta – enquanto que aqui a figura objetiva deve ser a de um todo contínuo, já que a mudança de pensamento é subjetiva; isto é, ocorre na mente de Ben e não aos olhos do leitor. Acredito que o itálico é necessário para explicar ao leitor a confusão de Benjy; essa contínua confusão do doente mental que vista de fora se apresenta com uma coerência dinâmica e lógica”.

O escritor continuava dizendo que, para alcançar isso mediante o uso de espaços em branco, faltaria escrever “uma introdução diante cada mudança”. E então explicava: “Gostaria que a impressão tivesse suficientemente avançada a ponto de utilizar tintas de cores diversas para cada uma delas; como discuti contigo e com Hal [Harrison Smith, um dos editores] naquele dia no bar”. Se o editor não aceitava a versão original, “terei que guardar a ideia – escreveu Faulkner – até que o mundo editorial esteja à sua altura”. Wasson, então, acatou a vontade do autor, e o romance foi publicado pouco depois. Era o ano de 1929.

O texto completo da carta – cujo tom parece homenagear o título do romance – aparece no prólogo de Michael Millgate a O som e a fúria incluído no primeiro volume das Obras completas de Faulkner.

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Na sexta-feira 6 de julho de 2012, dia em que se cumpriam cinquenta nos da morte de William Faulkner, a editora britânica The Folio Society colocou à venda uma luxuosa edição de O som e a fúria que cumpre o suposto sonho do autor: o texto da primeira parte está impresso em catorze cores diferentes. O trabalho esteve a cargo de Stephen Ross e Noel Polk, dois especialistas na obra de Faulkner.

Um dos responsáveis pela casa editorial disse à imprensa que “a reação inicial de Noel foi desconfiar da imposição de uma leitura ou de leituras que poderiam limitar a experiência original. Mas depois de pensar – acrescentou – os editores decidiram que seria divertido e que se abriria um novo debate sobre o livro entre os faulknerianos”. Apontou que se trata de uma edição “aventureira”,  mas também “zelosa dos desejos expressados pelo autor”.

Está claro que se Ross e Polk são especialistas em Faulkner sabiam o que faziam. Mas não posso evitar a suspeita de que aqueles comentários do autor acerca das cores diferentes não fossem mais que uma suposição, uma forma de dizer, uma fantasia surgida precisamente a partir de sua própria impossibilidade. Para estar seguros, os dois precisaram saber com exatidão como foi a conversa entre Faulkner, Wasson e Smith “naquele dia no bar” que o primeiro menciona em sua carta.

Se o recurso de que o texto estivesse escrito com cores diferentes fosse, de verdade, desejável, os autores e editores da atualidade poderiam realizá-lo. A impressão já está o suficiente avançada; como pedia Faulkner, o mundo editorial está à altura. Embora precisaria ver em que medida a policromia faria subir os custos. Cada um dos 1480 exemplares compostos por The Folio Society saiu à venda com o preço original de 75 libras, que nesse momento equivaleriam a 113 dólares. Hoje, esgotada a edição, um desses exemplares é vendido, até o momento de escrever este texto, a 1.600 dólares na Abebooks.

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O que aconteceria se pretendessem usar tintas de diferentes cores para indicar diferentes planos temporais em outros romances? Em Crônica de uma morte anunciada, por exemplo. Ou para marcar outra sorte de rupturas discursivas, não só temporais, em O jogo da amarelinha, para pensar noutro exemplo. Ou no Ulysses, de James Joyce, para falar de um exemplo maior ainda.

Há alguns anos circulou na web a imagem de um livro cheio de cores, sublinhados, datas e anotações e se disse que era um exemplar do Ulysses lido por David Foster Wallace. Logo se soube que a notícia era falsa: na foto sequer se mostra um exemplar do livro de Joyce, mas uma biografia de Robert Mitchum escrita por Lee Server. (Como na internet as mentiras se multiplicam rapidamente e derrubá-las custa uma vida, vez ou outra a foto volta a circular e com ela a história de é Joyce lido por Foster Wallace). O caso é que assim multicolorido, ou melhor ainda, poderia um Ulysses segundo o estilo da The Folio Society.

Mas essa seria, então uma leitura. É divertido – como pareceu a Ross e Polk – imaginar essas edições e mesmo fazê-las; sem dúvidas podem ser interessantes para reabrir os debates sobre determinado livro ou um autor. Mas o fato de que a versão deles inclua uma tipografia em catorze cores, quando no seu tempo Faulkner falou de pelo menos 33 planos temporais, já coloca em questão a ideia de que a edição respeita os desejos do autor. Ross e Polk, sim, quiseram seguir sua aventura multicolorida em determinadas partes de O som e a fúria e, ao advertir que a dificuldade aumentava, se deram por vencidos.

O caminho da literatura, me parece, vai precisamente em sentido oposto. Trata-se de trabalhar com as cores do mundo, com os infinitos matizes com que percebemos isso a que chamamos realidade e como o convertê-los em palavras. pode-se romper as regras e propor acertos e criar toda sorte de experimentos, sem dúvidas, mas creio que, no fundo, o mais importante será sempre as palavras: palavras que valem e se bastam, sem a necessidade de explicações cromáticas nem de nenhum outro artifício técnico.

Se William Faulkner ganhou o lugar que ocupa na história dos livros, é porque soube como modelar seus textos, suas palavras. Por isso, não posso evitar a desconfiança. Para mim, aquilo das tintas não foi mais que uma maneira de dizer; para mim, aquilo de que ia “guardar a ideia até que o mundo editorial estivesse à altura” não foi mais que uma pura bravata, a raiva para com seu amigo que havia modificado suas coisas. E, insisto, para estarmos seguros teríamos que estar com eles naquele dia na cantina.


* Este texto é uma tradução de "William Faulkner y las tintas de colores", publicado em Letras Libres.


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