Se tens tempo suficiente
Patricio
Pron
'Study for don’t cross the bridge before you get to the river' (2008), obra de Francis Alÿ |
Jean-Jacques
Rousseau caminhava para pensar; Friedrich Nietzsche o fazia pelas montanhas e
para poder escrever; Martin Heidegger passeava pela Floresta Negra para
experimentar o “ser” de uma forma mais autêntica que a vida em sociedade lhe
permitia (e também para coletar cogumelos); Immanuel Kant atravessava
Königsberg (a atual Kaliningrado) sempre às cinco da tarde, sozinho, respirando
profundamente pelo nariz (considerava que fazê-lo pela boca ao ar livre poderia
prejudicar a saúde), sempre pelas mesma ruas e vestindo exatamente o mesmo que
no dia anterior. Robert Louis Stevenson, Walt Whitman, William Wordsworth, Ezra
Pound, Jack Kerouac, Patrick Leigh Fermor, Bruce Chatwin, Régis Debray, Gary
Snyder, Patti Smith e Sophie Calle foram ou são grandes caminhantes (e
escreveram sobre isso) e alguns dos textos fundamentais de várias culturas (a Epopeia
de Gilgamesh, o Mahabharata, o Pentateuco) narram largos trajetos a pé. “Todos
os lugares são acessíveis a pé se você tiver tempo” [“Everywhere is walking
distance if you’ve got the time”], escreveu Stephen Wright.
Alguns defendem que não conquistamos a
natureza humana colocando-nos de pé senão ao dar o (conseguinte) primeiro
passo; no entanto (e a despeito dos filósofos peripatéticos, dos legionários
romanos e suas estradas e das peregrinações medievais), foi um pouco depois que
se produziram as primeiras reflexões sobre o ato de caminhar e a condição de
quem o leva a cabo: sobre ambas as coisas escreveu Walter Benjamin, que
revisitou a obra de Charles Baudelaire para dar conta da forma específica de
habitar a cidade inaugurada pelo flâneur parisiense, cujos contornos foram traçados,
além de Baudelaire (em O pintor da vida moderna, Autêntica, 2010),
por Honoré de Balzac, Anaïs Bazin (que o denominou “o verdadeiro soberano de
Paris”), Victor Fournel e Louis Huart (em Fisiología del flâneur, Gallo
Nero, 2018). O flâneur é parte da multidão, mas dela se distancia; desfruta do
espetáculo da cidade e é seu crítico; observa o que acontece ao seu redor, mas
também revira seu olhar sobre si mesmo; aceita e ao mesmo tempo se rebela ante
o fato de sua subjetividade ser constituída por uma vida urbana com a qual tem
uma relação complexa.
Ninguém escreveu melhor sobre o flâneur do que Robert
Walser, cujo El paseo (Siruela, 2014) é um dos textos fundamentais desta
tradição; assim como Benjamin, Walser foi um caminhante regular e excessivo,
como recordam Jürg Amann em sua Biografía literaria (Siruela, 2010) e
W. G. Sebald em O caminhante solitário (Editorial Teorema, 2009).
Sebald foi, além disso, um dos mais sólidos continuadores da literatura do flâneur
em livros como o deslumbrante Os anéis de saturno (Companhia das Letras, 2010),
cujo lugar no cânone desta literatura está assegurado junto com A canção de
amor de J. Alfred Prufrock, de T. S. Eliot (em Poemas, Companhia das
Letras, 2018); o belo ensaio de Henry David Thoreau Caminhando (José
Olympio, 2006); Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf (Autêntica, 2013), a
documentação das derivas situacionistas e alguns livros do argentino Sergio
Chejfec como Mis dos mundos (Candaya, 2008). Walser, aliás, (por
certo) morreu no dia de Natal de 1956 nos arredores do hospital psiquiátrico de
Herisau (Suíça), onde havia passado os últimos 23 anos de sua vida, durante uma
de suas caminhadas, sobre a neve.
A literatura
tem uma relação complexa com as práticas sociais, oferecendo a elas, muitas
vezes, certa resistência; a popularização do automóvel a partir da segunda
metade do século XX, a projeção de cidades sem espaço para a vida urbana e,
mais recentemente, a incorporação dos sistemas de navegação aos telefones (que
na prática tornam o perder-se na cidade impossível), para não mencionar a
dificuldade de caminhar nas principais cidades europeias devido à escassez de
áreas para pedestres e ao excesso de pessoas e de veículos, instrumentalizaram
a prática do passeio e, ao mesmo tempo, suscitaram a emergência de uma literatura
que a reivindica. Enquanto ensaios como Livre, de Cheryl Strayed
(Objetiva, 2014); Una temporada en Tinker Creek, de Annie Dillard
(Errata Naturae, 2017), e Las viejas sendas, de Robert Macfarlane (Pre-Textos,
2017), abordam a experiência de caminhar na natureza, livros como On Foot: A
History of Walking, de Joseph Amato (2004); The Lost Art of Walking:
The History, Science, and Literature of Pedestrianism, de Geoff Nicholson
(2009); A arte de caminhar: o escritor como caminhante, de Merlin Coverley
(2015; orig. 2012), e On Looking: A Walker’s Guide to the Art of
Observation, de Alexandra Horowitz (2014), revisitam a prática de caminhar
nas cidades e apostam em sua recuperação. Também o fazem Elogio del
caminar, de David Le Breton (Siruela, 2011); El dilema de Proust o El
paseo de los sabios, de Javier Mina (Berenice, 2014); Caminhar, uma
filosofía, de Frédéric Gros (É realizações, 2011); Caminantes, de
Edgardo Scott (Godot, 2017); o volume coletivo La Errabunda (Primer
tratado ibérico de deambulología heterodoxa) (Lindo & Espinosa, 2018),
e A história do caminhar, de Rebecca Solnit (Martins Fontes, 2016). Trata-se
de visões singularmente distintas das propostas por obras extraordinárias da
ficção recente cujos personagens caminham: A estrada, de Cormac
McCarthy (Alfaguara, 2007), e Algo, ahí fuera, de Bruno Arpaia (Alianza,
2017), cujo protagonista atravessa uma Europa desertificada pela mudança
climática em sua busca por asilo nos países escandinavos.
No entanto,
se algo está mudando nossa perspectiva sobre a relação entre caminhar e habitar
o mundo são os livros que nos últimos tempos, e a partir de ensaios clássicos
como The Invisible Flâneuse. Women and the Literature of Modernity, de
Janet Wolff (1985); Walking the Victorian Streets. Women, Representation,
and the City, de Deborah Nord (1995), The Sphinx in the City: Urban
Life, the Control of Disorder and Women (1992) e The Invisible
Flâneur (1995), ambos de Elizabeth Wilson, revisitam a figura da mulher flâneur (ou Flâneuse, como
a nomeia Lauren Elkin; Malpaso, 2017) a fim de contribuir para uma historia dos
vínculos entre o sujeito e a cidade que (por fim) não foi escrita só pelos homens.
Que nenhum dos ensaios mencionados acima tenha sido traduzido para o espanhol
deixa claro o muito que falta por fazer neste sentido: alguém deveria, uma vez
mais, dar este primeiro passo.
* Tradução
livre de Guilherme Mazzafera feita a partir do original “Si tienes tiempo
suficiente”, de Patricio Pron, publicado no jornal El Pais em 10 de agosto de
2018. Sempre que disponíveis, as edições mencionadas foram substituídas por
publicações em português.
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