Kafka nas palavras de Kafka
Por Jossep Massot
“Já vês, sou
um homem ridículo; se gostas de mim um pouco, será por compaixão; minha
contribuição é o medo”, escreve um jovem Kafka a Hedwig Weiler, seu amor de
verão de 1907. E, todavia, o aprendiz de escritor que acreditava que “estamos
perdidos como crianças na floresta” e que era bom alguém subisse à Lua para que
seus movimentos, palavras e desejos não fossem totalmente cômicos e absurdos,
quando dizia, “não se escutam as risadas da Lua nos observatórios”, havia
ganhado já aos 19 anos, perante seu amigo Oskar Pollak, a valiosa aposta de que
ia mudar a literatura do século XX: “É bom”, escreveu, “quando nossa
consciência tenha grandes sofrimentos, pois assim se torna mais sensível a cada
estímulo. A meu ver, só deveríamos ler os livros que nos ferem e nos afligem.
Se o livro que estamos lendo não nos desperta como um soco no crânio, por que
perder tempo lendo-o? Para que ele nos torne felizes, como você diz? Oh Deus!
Nós seriamos felizes do mesmo modo se eles livros não existissem. Nós mesmos
poderíamos escrever os livros que nos fazem felizes num piscar de olhos.
Precisamos de livros que nos atinjam com a mais dolorosa desventura, que nos
marquem profundamente – como a morte de alguém amávamos mais do que a nós
mesmos – que nos façam sentir que fomos banidos para o nada, para longe de
qualquer presença humana – como um suicídio. Um livro deve ser um machado para
o mar congelado que há dentro de nós. Assim eu acredito”.
Os excertos
são palavras que estão no primeiro tomo da edição crítica da correspondência
completa de Kafka (Praga, 1883 – Kierling, 1924), reunida e anotada por
Hans-Gerd Koch, traduzida [para o espanhol] por Adan Kovacsis e que Jordi
Llovet e Ignacio Echevarría publicam pela Galaxia Gutenberg. O volume, de 1.257
páginas, cobre os anos de 1990 a 1914, e como conclusão da obra completa do
autor tcheco um segundo tomo incluirá o período do estopim da Primeira Guerra
Mundial e o da publicação, em 1915, de Die Verwandlungd, traduzida aqui
[no Brasil] como A metamorfose. Os editores espanhóis pretendem publicar a
correspondência completa sem cortes, mas a editora alemã resiste em fechar o
volume dos últimos anos. Fischer Verlag, depois de quinze anos de busca
infrutífera, ainda mantém a esperança de encontrar em arquivo recôndito algum
dos grandes tesouros de Kafka que estejam à espera por vir à luz: as cartas
perdidas enviadas ao último amor do escritor, Dora Diamant, que foram
confiscadas pela Gestapo.
Frank Kafka.
Cartas 1900-1914 contém 778 missivas, das quais 573 já eram
conhecidas do público leitor de língua espanhola (e em trabalhos anteriores à
edição crítica alemã), e 145 são inéditas. Entre as já publicadas do período
referido figuram às escritas para a primeira namorada do escritor, Felice
Bauer, para Grete Bloch (amiga de Felice) e para os editores Max Brod, Ernst
Rowolth e Kurt Wolff. Os cuidados dos editores levaram a incluir os detalhes
conhecidos de 60 cartas perdidas, postais, telegramas, dedicatórias, cartões de
apresentação ou as comunicações de caráter oficial, comercial ou profissional
(como as solicitações ou os ofícios dirigidos a instituições tais como o
Diretório de Polícia ou mesmo à companhia de seguros para a qual trabalhava
pedindo permissões, progressões ou aumento de salário). O livro se completa com
um amplo aparato de anotações críticas, uma exaustiva cronologia, as cartas
recebidas que continuam preservadas e um balanço sobre quem é quem de todos os
remetentes ou pessoas citadas.
O volume
acrescenta importantes novidades ao leitor, que não se limitam ao terreno filológico.
A organização das cartas cronologicamente e por remetentes permite seguir o
dia-a-dia de Kafka à maneira de uma biografia epistolar, sem interferências de
intérpretes, e a assistir a evolução de sua escrita, desde a relação
ambivalente com Goethe (o cânone literário) à sua necessidade e amor pelos
demônios da literatura a partir de sua atormentada relação com Felice Bauer,
quem o introduz a partir de uma conexão com a vida, a uma escrita fluida e
marcada pela perspectiva do outro, algo que está na gênese de obras como O
processo ou O veredito.
Também é
possível encontrar textos literários, como a primeira narrativa que chegou até
nós (“A complexa história do magro tímido e do insincero de coração”) e vários
apólogos e contos breves, como o do homem que não sabia rir nem dançar e que
levava sempre uma misteriosa caixa fechada e sobre a qual não dizia nada sobre
até que, depois da sua morte, se descobriu seu conteúdo (“Dois dentes de
leite”) ou do louco e o sábio que não era sábio: “Não se pode tomar sol na
sombra. Não acredito que eu seja responsável por tua felicidade. No máximo,
como segue: um sábio cuja sabedoria se escondia e se encontrou com um louco com
quem conversou um pouquinho sobre assuntos aparentemente distantes. Uma vez
concluída a conversa, quando o louco estava disposto a voltar para casa – vivia
num pomar –, o outro agarra-o pelo pescoço, o beija e exclama: ‘Obrigado,
obrigado, obrigado!’ Por que? Tão grande era a loucura do louco que para o
sábio se fez evidente sua própria sabedoria”.
As leituras
(autores alemães, mas também Flaubert e biografias nas quais busca como os
grandes escritores encontraram seu lugar no mundo); os anseios
literários, seu desejo de abandonar Praga, aprender espanhol e mudar-se para a
Espanha, América do Sul ou Berlim; suas viagens e excursões; o isolamento com
seus pais; a asfixia que sente por seu trabalho na empresa de seguros ou na
fábrica de amianto que funda com seu cunhado ou a eterna dúvida que o paralisa:
“Outras pessoas”, escreve a Hedwig, “só se decidem em contadas ocasiões e
desfrutam logo de sua decisão no longo intervalo até à dúvida seguinte. Eu, ao
contrário, me decido sem parar, tantas vezes como um boxeador, com a diferença
de que não boxeio, claro”.
Numa carta
diz a Pollak como a mesa do escritório burguês da casa de seus pais onde
escreve se comporta como um animal censor: “Estava sentado em minha charmosa
mesa. Não a conheces. Como ias conhecê-la. Pois é uma mesa de convicções
profundamente burguesas cuja tarefa é educar. Tem duas terríveis pontas de
madeira ali onde o escritor coloca os joelhos. E agora, presta atenção. Quando
alguém se senta com tranquilidade e cuidado e escreve algo profundamente
burguês, é confortável. Mas quando se agita ou o corpo mexe-se um pouco, as
pontas cravam indefectivelmente nos joelhos, e, como doem. Eu poderia te
ensinar sobre os machucados”.
É possível
seguir a vida de Kafka quase minuto a minuto. Comenta sobre filmes com as
garçonetes, trabalha em atividades de campo durante as férias, vai ao teatro,
escreve prolixas e detalhadas argumentações aos seus chefes para justificar
suas petições de aumento de salário, queixa-se de seus problemas de estômago e
de sua dieta, mas, sobretudo, lê e escreve, faz autoanálises violentas. Diz que
leu poucos livros de Freud – “É tão grande como vazio” – e muitos de seus
seguidores; confessa que cai ante as opacidades, que carece de talento
organizativo, que não é desses homens que levam às coisas adiante a qualquer
preço ou que “não estou já neste mundo, mas dando voltas e voltas no vestíbulo
do inferno”, pois, “a consciência de culpa não mostra para mim uma ajuda, uma
solução; não, apenas tenho consciência de culpa porque é a forma mais bonita de
arrependimento”.
Kafka visita
prostitutas, algumas muito velhas ou flerta com as jovens. “Uma”, diz a Max
Brod, “se chama Agathe; a outra, Hedwig. Agathe é muito feia e Hedwig também.
H. é baixinha e gorda, suas bochechas são coloridas sem limites nem
interrupção, seus grandes dentes incisivos superiores não permitem que sua boca
se feche nem que a mandíbula inferior seja pequena; é muito míope, e não só
para provocar o bonito gesto com que coloca o pincenês sobre o nariz; esta
noite sonhei com suas pernas grosas e curtas; por tais acidentes reconheço a
beleza de uma mulher e me apaixono”. Ainda assim, lhe escreve: “Que pouco serve
o encontro epistolar; é como se duas pessoas separadas por um lago andassem
pelas margens. Pelas muitas margens das letras a caneta escorrega e isto está
acabado, faz frio e eu vou para minha cama vazia”.
Na
apresentação, Jordi Llovet dedica especial atenção às relações sentimentais de
Kafka (quem escreveu “O sexo, castigo da circunstância de estar juntos”), em
especial com Felice Bauer. Os dois se conheceram em Praga, na casa dos pais de
seu amigo Max Brod, em 13 de agosto de 1912. Não tornaram a se ver até sete
meses depois. A partir de 20 de setembro, Kafka lhe envia uma chuva de cartas,
mais para si mesmo que para seduzi-la, segundo Llovet, quem reconstrói a vida
sexual de Kafka, envolta com o dito censor de seu pai e seu reflexo nas obras
que escreveu na época e que teria uma chave esclarecedora no fundamental conto
“Diante da lei” (de 1919). Kafka se submete à tortura de não poder viver nem
com ela nem sem ela e lhe pede em casamento como se o pedido fosse “um ato
criminoso”. “Eu”, escreve em 1931 ao pai de Felice, “ceguei sua filha com minha
escrita”. E lhe transmite um autorretrato desconsolador: “Seja como for, tenha
você em conta o seguinte, que é o essencial: todo meu ser se concentra na literatura
e até aos 30 anos mantive esse rumo rigorosamente, sem me apartar; se alguma
vez o abandoná-lo, deixarei de viver. Disso vem tudo quanto sou e quanto não
sou. Sou taciturno, antissocial, mal-humorado, egoísta, hipocondríaco e
realmente um pouco doente. Como pode viver sua filha como um homem assim, que
deixou toda distração a fim de conservar as energias justas para se dedicar
exclusivamente à literatura?”
Nota: Musil
quis publicar A metamorfose
Em 1914,
Franz Kafka quer deixar seu trabalho, emancipar-se de seus pais, casar-se com
Felice e mudar-se para Berlim. No dia 6 de fevereiro de 1914 escreve ao seu
amigo, o editor Max Brod: “Não deverias ter repassado meu endereço Musil. Que
quer? Que pode querer ele de mim ou quem seja? E o que pode conseguir de mim?”
Robert Musil havia recebido a missão de renovar Die Neue Rundschau, a
revista da principal editora alemã, S. Fischer, e queria captar autores como
Rainer Maria Rilke ou Heinrich Mann. Kafka enviou-lhe as 77 páginas de A
metamorfose, apesar de já ter comprometido a publicação com a revista
rival, Die Weissen Blätter, mas os editores de Fischer acharam o texto
muito longo e pediram a Kafka que fizesse novos cortes. O escritor,
enraivecido, responde em julho de 1914: “Estimado senhor doutor: neste assunto
não me é feita justiça, e a você próprio, sem dúvida, tampouco. O conto foi
revisado, permaneceu suficiente tempo na redação para poder se estudado em
todos os sentidos, também em sua extensão e no fim foi aceito sem condições, ou
melhor dizendo, apenas com a condição, aceitada por mim sem mais, de que
haveria de esperar bastante tempo até a publicação. E agora que se passaram
meses desde o aceite, me é exigido que recorte uma terceira parte. Isso é atuar
de maneira indigna”. Musil publicaria no número de outubro uma resenha de Contemplação
/ O foguista que Kafka considerou o comentário mais valioso sobre sua
obra. A metamorfose foi publicada em 1915 na Die Weissen Blätter,
com numerosos erros.
Ligações a
esta post:
* Este texto
é uma tradução de "Kafka en palabras de Kafka" publicado no
jornal El País.
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