As últimas testemunhas, de Svetlana Aleksiévitch


Por Pedro Fernandes



O principal da obra de Svetlana Aleksiévitch é trabalho de reconstrução pelo lado de dentro dos grandes horrores da história recente da humanidade. Se considerarmos essa afirmação, logo entenderemos a necessidade de universalização de sua obra com a recepção do Prêmio Nobel de Literatura em 2015. É possível que sua literatura, como a de outros notáveis que receberam o maior galardão da cultura, logo caia no limbo. Mas, o gesto, impregnado do ideal realista, escola ou espírito que nunca morre, com o qual inaugurou outras formas de dizer é uma pequena linha dissidente, quase sempre crua, mas necessária de conhecê-la. São as testemunhas mais frágeis aos olhos da história oficial, aquelas que abaladas pela força do sentimento, são relegadas ao silêncio porque ao que dizem são suscetíveis à invenção, à inverdade, à ruptura com o registrado pelo documento.

Não é do interesse da escritora russa a substituição da história; do que foi convencionado objetivamente por um tecido frágil de subjetividades. Seu interesse é unicamente o do afrouxamento das ortodoxias da verdade e o necessário alargamento das fronteiras que determinam a compreensão da nossa história. Esta, por sua vez, não pode ser entendida apenas enquanto acontecimento fatual, clinicamente organizado a partir da noção causa e feito, ação e reação; a história, sobretudo a dos horrores, é produto da incapacidade humana de exercer o principal dos seus adjetivos. Diante disso, não há nada que justifique, que signifique os rumos da barbárie na modernidade; os horrores da nossa história recente são produções conscientes, ainda que os seus resultados, pela imprevisibilidade que guarda toda ação, não sejam, de um todo esperados.

Depois de investigar a participação das mulheres no combate às tropas nazistas de Adolf Hitler em A guerra não tem rosto de mulher, certamente um dos livros mais marcantes de Svetlana Aleksiévitch, a escritora volta ao mesmo cenário para ouvir as vozes das crianças na Segunda Guerra Mundial. Os dois livros compõem, assim, uma extensão de uma história contada exclusivamente pelo mesmo ponto de vista: o homem em combate. Mas, extensão não significa um apêndice do acontecimento conhecido; significa a correção, o estreitamento das extensas lacunas deixadas pelo olho e pela memória dominante e, consequentemente, uma revisão bastante acurada sobre os imaginários e sobre determinados apagamentos.

Contemporaneamente é possível que pensemos sobre o drama das crianças em zonas de conflito, porque as organizações humanitárias ou mesmo o complexo aparato tecnológico de registro da história não deixam escapar o que noutra situação escaparia propositalmente à vista dominante. Mas, quando estudamos a história dos grandes conflitos ou mesmo quando lemos os relatos dos que foram ao front, está sempre ausente a presença da mulher e da criança. É como se estas figuras tivessem sido recolhidas para zonas de proteção e o conflito não passasse de confabulação de homens em escritórios e luta em campos de batalha. O que é valioso no trabalho de Svetlana Aleksiévitch é de passarmos a saber o que fizeram, o que foi feito, por esses protagonistas que estiveram no olho do furacão e não incólumes à fúria dos homens.



Os sobreviventes em As últimas testemunhas são confrontados a olhar para o passado para responder – pelo teor do conteúdo registrado no livro – a duas perguntas: onde você estava quando os alemães invadiram a Rússia e como foi seu périplo durante os anos de conflito. As duas questões não são nada fáceis de responder, sobretudo, porque coloca os sujeitos provocados em contato com uma dimensão subterrânea e ao mesmo tempo latente que são as cicatrizes mais profundas de um horror cujas sequelas são inapagáveis. Tanto é verdade que em grande parte dos depoimentos, os que relembram repassam corporalmente as mesmas dores – o que no leitor se revela pela impossibilidade de deixar a emoção onde ela se esconde. O contato com essas memórias descarta, portanto, o verniz da objetividade que aplaina as situações de horror como exercícios de heroísmo ou cruzada do bem sobre o mal. Tudo está exposto: a natureza animal que nos habita e quanto nossa racionalidade é capaz de nos conduzir para o lugar dos instintos mais cruéis, aqueles nascidos do ódio e desempenhados na ganância de, a todo custo, humilhar e matar.

Agora, a exposição do horror pelo ponto de vista da criança ou tendo a criança como personagem principal – e isso extensa parte da literatura tem provado – se situa no limite entre melodramático e o piegas. Mesmo em As últimas testemunhas, que estamos diante do que, a grosso modo, poderíamos chamar de compilação dos depoimentos. Neste caso, poderíamos acusar a organizadora destas falas como a interessada em provocar propositalmente seu leitor à catarse uma vez que do contato com uma memória infante ferrada pela dor não se espera outra história que não a de tristezas e outra reação que a diferente da lágrima; afinal, só os carrascos se regozijam com a crueldade que praticam e com a dor alheia.

Assim, se administrar a emoção não é tarefa das mais fáceis para os escritores que escolhem o infante como persona para exposição do horror, também não é tão simples a composição de um livro que estabelece as bases de sua narrativa pela correlação de histórias contadas por mulheres e homens que experienciaram toda diversidade de desatino em tempos de exceção da humanidade. Aqui, o caso é de maestro. Conseguir estabelecer um ritmo que não desande a sinfonia num tom piegas ou de melodrama. Isso quer dizer que Svetlana Aleksiévitch estabelece um conjunto de critérios para sua composição e para os sentidos que busca alcançar com ela. Nesse caso, a pergunta que dirige as que escutam por entre a narrativa dos depoentes, parecer ser: Numa guerra, o que se é feito das crianças? A partir desta indagação se oferecem as múltiplas respostas que comprovam uma tese: Numa guerra, as crianças são existências abortadas, futuros em crise. Que há várias possibilidades de morrer e uma delas é transformação do sonho em acaso.

Mas, não é apenas o horror que se verifica ao longo de As últimas testemunhas. Este é um livro que se ampara em coexistências. Por sob os ódios gratuitos e a ânsia de destruição de uma grande parte, tece-se um silencioso laço de solidariedade humana capaz de garantir a sobrevivência de uns poucos – isto responde pelo que alguns, de fora, preferem chamar de sorte. Estas mulheres e homens rememoram não para colocar em relevo suas dores, nem apenas para reconstruir um passado que não foi contado da maneira devida às outras gerações; rememoram para sublinhar os nomes; quando não, as situações de sobrevivência são animadas pela presença de um outro incógnito que, de alguma maneira, mesmo que só pela companhia, significou o suficiente para não perecerem. O que chamamos de coexistência é, então, essa capacidade que temos, ora em mesma proporção, ora em proporção diversa, de exercemos os dois limites que nos definem: o bem e o mal.

Os depoimentos das personagens civis em contextos de supressão da humanidade revelam pelo lado de dentro da história que o único heroísmo do qual a história deveria se orgulhar: é a da nossa resistência. Não fosse isso e possivelmente não restaria nada mais de nossa civilização. As últimas testemunhas relembram algo essencial que de tempos em tempos nossa memória tende a tangenciar, que a história dos homens é a do embate entre forças de poder e em nome delas, os que perecem são os que pouco ou nada têm a ver com tais embates. Há entre os homens à frente dos poderes uma cegueira alimentada por seus ódios e por suas convicções que os impede de ver esses que sucumbem, os futuros que se apagam e os retrocessos que se impõem quando se deseja a imposição de suas ideologias. A obra de Svetlana Aleksiévitch é um apelo à memória em nome da humanidade; é a constatação de que a única lição a se tirar das imposições é que o horror delas decorrentes não é lição.

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