Algumas aproximações à poesia de Rachel de Queiroz
Por Pedro Fernandes
Em 2010, o
Instituto Moreira Salles (IMS) publicou, de Rachel de Queiroz, Mandacaru, um livro de poemas escrito em 1928 e até então inédito. Este livro
sobreviveu graças ao interesse da amiga Alba Frota e revelou uma tentativa da
escritora em se integrar à comunidade dos poetas que então foram tomados,
direta ou indiretamente, pelos ventos do Movimento Modernista de 1922. Os
poemas apresentados por Elvia Bezerra, coordenadora de literatura do IMS, constituem
ainda a obra de uma jovem de 17 anos em busca de seu estilo e forma literária –
o que não tardaria acontecer, afinal, O
Quinze, romance que a consagrou, só levaria, a partir da data de escrita de
Mandacaru, dois anos para sua publicação.
Mas, se no livro
em questão pode-se vislumbrar, ainda que em textos deveras determinados pelos
elementos de um cardápio modernista – cite-se, para efeito, a descontinuidade
dos poemas, a linguagem entre o erudito e a conformação do registro popular, a
liberdade dos versos, as tentativas de indeterminação das fronteiras entre a
poesia e a prosa, com elevado vigor para esta última – não deu alguma notoriedade poética
para a romancista valiosa que viria ser, é preciso visitar outras produções do
gênero para compreender melhor de que maneira a poesia serviu à romancista.
Sabe-se que
à maneira paulista, que por sua vez copiava o de fora – ou deglutia para citar
a razão antropofágica que dominava o pensamento dos da Semana de 1922, ou
melhor, de um Oswald de Andrade tomado por certo veio nacionalista herdado dos
anos de Europa –, em quase todo estado do Brasil, os intelectuais se reuniam em
torno de publicações em revistas, que foram em grande parte apenas estopins,
algo de avant-gard que traziam consigo.
No Ceará, um desses lugares de
manifestação foi o suplemento literário Maracajá,
do jornal O povo.
Durante toda
a década de 1920, Rachel de Queiroz foi sempre uma assídua frequentadora das
páginas literárias do Maracajá. E embora
não encontre no verso seu lugar ao sol, nas várias tentativas e nos vários
modos de composição poética determina grande parte dos temas a que se dedicaria
na prosa. Em Mandacaru, por exemplo,
além do contínuo flerte com as pautas do movimento modernista, encontra-se uma poeta
interessada por constituir uma pintura de cores regionalistas, isto é, por um
desenho do seu lugar, o alto sertão nordestino. Essa posição é tão viva que é
perceptível desde título escolhido para enfeixar os dez poemas que aí reuniu.
E pela
unidade temática que os determinam – outra qualidade de uma obra tão precoce –
pareceu ser um esboço para o que algum se dia se publicasse como só será feito mais
de oitenta depois. Alguns registros, aliás, bastante tardios, sublinham o
interesse de Rachel de Queiroz em reunir sua produção poética em Mandacaru. Elvia Bezerra, no texto de
apresentação da edição fac-similar do livro, destaca dois depoimentos: o de Carlos
Villaça na introdução que escreveu para Rachel
de Queiroz: os oitenta (José Olympio, 1990); e o de Haroldo Bruno em Rachel de Queiroz: crítica, bibliografia,
depoimento, seleção de textos, iconografia (Livraria Editora Cátedra /
Instituto Nacional do Livro, 1977). Também as várias referências a Mandacaru (desde 1928) – elemento a
partir do qual os seus leitores estabeleceram a ideia de que Rachel pensou numa
edição para seus poemas – reafirmam isso. Numa edição de O Ceará de 5 de setembro de 1928, por exemplo, comenta-se que Rachel
leu “o seu formoso livro de estréa – ‘Mandacarú’, a sair brevemente”; Mandacaru, acrescenta, “é um poema em
versos trabalhados ao gôsto da esthetica modernista, cultuada, no Sul, por um
grupo de espíritos moços, plenos de calor e vibração”; Mandacaru “é um poema regional, em dez cantos, filiado a essa corrente
de arte, isto é, ao modernismo, na bôa acepção do termo”.
Além de Maracajá, sabe-se que Rachel de Queiroz também
apareceu noutros jornais do seu estado, como O Ceará, a revista semanal A
jandaia, esta da qual foi vice-diretora. Neles assinava sempre com algum
pseudônimo – tanto os poemas quanto as crônicas, outro gênero textual que
começou praticar antes do romance e mesmo os contos “cheios de tempestade, de
um romantismo terrível”, como confessaria mais tarde. Dupla tentativa de reclusão
– a primeira foi a mudança para Quixadá, esta não independente. A substituição
da vida na capital onde nasceu pela parcimônia do Sítio Pici se deveu por obra
do pai que esperava viver num lugar não tão atribulado como a cidade mas
gostava de oferecer aos filhos o acesso à escola. Sabe-se que Rachel desenhou a
nova morada com ajuda do pai.
O pseudônimo
mais recorrente entre as produções da adolescente escritora é o de Rita de Queluz.
Foi com este nome que estreou na imprensa: o texto, uma carta datada de 23 de
janeiro de 1927 enviada ao jornal O Ceará,
se dirigia à recém-eleita Rainha dos Estudantes, Susana de Alencar Guimarães,
editora da coluna literária Jazz-band
no mesmo jornal. Rachel foi logo contratada a escrever com regularidade para a
mesma coluna.
Se grande
parte da poesia de Rachel de Queiroz foi apresentada por Rita de Queluz, não foi
apenas este o seu pseudônimo. E não foi apenas os poemas de Mandacaru os que escreveu. Rachel também
se escondeu por trás de Maria Rosalinda, Inocência, Ignez, Zé de Guignol, Ajuricaba.
Parte da obra poética assinada por estas figuras, mais de três dezenas, foi
publicada em livro pela primeira vez, no mesmo ano de aparição da edição do
IMS. Organizada pela escritora Ana Miranda, Serenata
(Armazém de Cultura, 2010) é uma antologia que reúne textos até do ano quando
publicou O Quinze.
Este
trabalho é valiosíssimo, talvez até mais que a publicação do livro de 1928. A
recolha de poemas coloca leitores diversos ante um patrimônio de formação
literária de uma escritora das mais importantes da nossa literatura. Isso porque
são páginas antes acessíveis apenas a alguns leitores privilegiados, os colecionadores
dos suplementos e jornais em que os poemas foram publicados pela primeira e única
vez. Quer dizer, não é apenas a publicação o que faz deste livro uma pérola de
rica valia; é sobretudo o trabalho minucioso de pesquisar, catalogar, transcrever,
selecionar e organizar.
Se alguma
vez passou pelo desejo da escritora de Memorial
de Maria Moura tornar pública através de uma edição alguns desses poemas é
bem possível que o retorno a esse material – ou mesmo a impossibilidade de sua
recolha – tenha servido de elemento favorável a não continuar com a ideia.
Assim, é claro que a publicação dos poemas reunidos em Serenata recupera em parte um desejo perdido da sua autora. Em
parte porque é este um gesto que significa, de alguma maneira, uma afronta à sua
memória.
Rachel de
Queiroz desenvolveu uma compreensão deveras tradicional e fechada sobre a poesia
e o ofício do poeta; uma carapaça que fez com que reconhecesse que seu envolvimento com o gênero literário em questão fosse
apenas mero exercício de escritura. “Poesia para mim é quase uma religião, é um
gênero sagrado, inacessível e tenho poucos santos dentro dele”, diz na
entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira (IMS, 1997). Elvia
Bezerra, recorda o comentário da escritora, “bem-humorada”, depois de ouvir, na
década de 1990, numa conferência do professor e crítico literário Sânzio de Azevedo
que lera um poema dela: “O Sânzio acaba de me caluniar, me chamando de poeta”. Muito
antes, outros a caluniaram, então. O próprio Manuel Bandeira, quem Rachel colocava
na lista dos “santos da poesia”, incluiu “Rosas de Santa Luzia” na sua Antologia de poetas brasileiros bissextos contemporâneos (1964) a partir da
segunda edição.
“Rosas de
Santa Luzia” é um dos poemas de Serenata
que apresenta ainda dois conjuntos de quadras, dez sonetos intitulados como
“Bonecas e polichinelos” – numerados à maneira vanguardista –, uma vinheta e um
conjunto de quadras. Os poemas escritos aleatoriamente também guardam qualquer coisa
dos ares modernistas, mais pelos temas que pelo tom, mais pela integração do
eu-poético à condição de flâneur de
seu lugar que pelo esforço de inovação vocabular. É claro que mesmo o leitor
pouco iniciado à sua literatura não deixará de perceber que esses poemas são formas-para, exercícios de meditação
narrativa que constrói uma variedade de retratos – alguns com leveza e
irreverência – das paisagens da província. Quer dizer, a poesia de Rachel
flerta não apenas com o interesse pela prosa (seu lugar definitivo) mas com um certo
tipo de prosa, a da crônica. Na já referida entrevista para os Cadernos de Literatura Brasileira, ela
afirma que gostava de se declarar jornalista – ofício claramente citado como
sinônimo para cronista, afinal, o trato com o fato, qual do noticiador não
define bem sua presença no jornal: “Eu não sou uma romancista nata. Os meus
romances é que foram maneiras de eu exercitar meu ofício, o jornalismo”.
Não é apenas
o tom narrativo, descritivo, figurativo e imagético que aproxima o tom da
poesia de Rachel de Queiroz ao da crônica. Nem só leveza e a irreverência, como
citado, mas a liberdade com que se exercita tais características; esta é a
grande determinante da sua poesia e a que não deixará de perseguir em toda sua
obra literária. Sabe-se bem que a crônica é o gênero textual nascido, constituído
e mantido livre. Um exemplo é a sequência de sonetos “Bonecas e polichinelos”, cada
um dedicado a alguém de seu grupo íntimo ou de convivência (como revelam os
nomes escondidos por trás das iniciais que fazem o papel de subtítulos dos
poemas). Esses poemas são como que fotografias das personagens indicadas. No
soneto VII S. A. M., identificado como Susana Alencar Guimarães, lê-se:
Forma a
vanguarda do alto feminismo.
– Feminismo
mental, é bem verdade...
Crer no
talento não exclui chiquismo,
que a pena é
compatível com a vaidade...
Não faz muito,
surgiu no jornalismo;
e presenteia
a imprensa da cidade
com crônicas
de doce e são lirismo
e emotiva e
subtil suavidade,
Já possuía cetro,
coroa e manto;
e a inconstância
perene do sufrágio
o trono lhe
roubou; mas, entretanto
reina nos corações
pela amizade
que soube
despertar... Lá diz o adágio:
“Quem foi
rei sempre guarda a majestade”...
Susana, como dissemos, assinava a mesma coluna em que Rachel estreou em definitivo no jornal, a também citada
Jazz-band. É ela quem apresenta Rita de Queluz como “uma linda violeta espiritual do jardim”; Rita de Queluz, emendava a
nota, “é o pseudônimo de suave escritora patrícia que, com a sua prosa forte,
nos dá grande alegria de saber que no Ceará há cérebros femininos que, em pleno
esplendor das suas 16 primaveras, sabem pensar e sentir”. O floreado da
apresentação será contestado no primeiro texto do pseudônimo; a tal carta é caminhada
descalça sobre um arame farpado, ao passo que Rita de Queluz se faz súdita da majestade Susana, também se
mostra imperativa, quase aberta ao confronto, fazendo-se igual ou superior a
quem detinha exclusivamente o espaço da Jazz-band.
O soneto
sétimo, acima transcrito foi assinado por Zé do Guignol, também o autor dos
outros poemas deste conjunto. O fato deste poema não aparecer data gera no
leitor duas suspeitas: seria um elogio cordial à responsável pelo espaço que
viria dividir ou seria a continuação de uma troça que teve sua gênese na
resposta incisiva da tal carta de estreia em Jazz-band? Se considerarmos que o poema data do mesmo ano em que
outros dois, o IV e o V, isto é, 1928, o que é muito provável, afinal, na seção
em que dirigiu e publicou este conjunto de sonetos no jornal O Ceará se dedicou à composição desses
perfis de tipos da sociedade cearense, faz sentido que a segunda hipótese seja a mais verdadeira, o que
faz da jovem Rachel uma figura interessada em ironizar sobre a posição dos tais tipos, uma acidez que lembraria
os retratos de mesmo tom construídos por Gregório Matos.
Como em Mandacaru, não existe na poesia de Rachel
quaisquer contemplações do interior, apegos às feições imaginárias, contatos com
um tom de sorte filosófica. O eu-lírico é sempre um que perscruta a superfície
das coisas e do seu mundo, por vezes, integralmente confundido com o mundo da poeta.
O mais íntimo no seu tom é o do olhar contemplativo como em “O meu violão” e “Home”
– e é só. O mais é a pura relação com o entorno, muito simples, mas não
simplista. Alguns são versos de circunstância e louvação, datados de alguma
maneira, mas não presos apenas às rédeas de seu tempo porque constituem entradas
a situações da sua própria biografia.
Enfim, o leitor se entretém com um painel diverso,
muito aberto para a especulação sobre as relações e feito de tais laços aos
olhos de uma jovem impetuosa porque já se sente com asas suficientes para altos
voos. Pretensiosismos à parte – qual jovem não é ambicioso – é uma boa maneira
de ampliar uma compreensão sobre a jovem, os limites da sua criação, o que ficou
pelo caminho e que de alguma maneira serviu na constituição da sua obra que melhor
lhe diz. É sempre interessante ir a estes começos.
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