A segunda vida de Lucia Berlin
Por Andrea Aguilar
Sua via
transcorreu entre o Alaska, Texas, Santiago do Chile, Novo México, Califórnia,
Nova York, Cidade do México e Colorado. Seu sobrenome era Berlin. De nome, Lucia. Falava bem
espanhol. Publicou 77 contos, recolhidos em meia dezena de livros. Dos últimos
venderam-se pouco menos de mil exemplares.
Lydia Davis,
a grande contista estadunidense, escreve que sempre teve fé que as mulheres escritoras,
mais cedo ou mais tarde, subirão o mais alto, como a espuma, e serão exatamente
tão reconhecidas como deveriam. Ela – apelidada durante antes como “escritoras
de escritores” – já deixou o passado e, agora, parece que enfim chegou a vez de
Lucia Berlin, embora tenha se passado mais de uma década de sua morte em 2004,
aos 68 anos.
Algumas
semanas depois de entrar na mesa de novidades das livrarias estadunidenses, em
meados de agosto de 2015 com a coletânea de contos Manual for cleaning women [Manual da faxineira, em tradução no
Brasil publicada em abril de 2017] o livro chegou à lista dos mais vendidos. O volume
foi saudado com entusiasmo (e certo remorso) pela crítica. Seus direitos foram vendidos
para vários países na mesma ocasião quando se especula sobre a publicação de
novo volume com a correspondência da escritora.
Assim é que
meio século depois de sua autora começar a publicar seus contos, por volta dos
anos sessenta na revista The Noble Savage
do escritor Saul Bellow, é que se descobre Lucia Berlin como a grande contista
estadunidense, uma espécie de Raymond Carver feminina, cujo bem desenhado e
inesperado humor consegue desfazer o drama e tornar digerível as mais cruas das
situações. Em seus contos há enfermeiras, professoras, mulheres da limpeza que
oferecem interessantes conselhos (“Pegue tudo que sua patroa te dê e agradeça. Pode
deixar no ônibus entre os bancos”) e também há muitas garrafas de uísque,
bêbadas, viciadas, viagens ao México, uma avó que pede que seus netos se
afastem como se fossem cachorros sem dono. As histórias se passam em centros de
desintoxicação, hospitais, casas de família. A voz de Berlin, irônica e terna,
se escuta ao fundo: “Não me importa contar coisas terríveis às pessoas se posso
transformar em algo gracioso”, diz a narradora em de seus contos. Em outra de
suas histórias, enquanto uma irmã, ao compreender a dura vida que levou sua
desapiedada mãe, chora desamparada, a outra conclui: “Eu... não tenho piedade”.
Lydia Davis
e um grupo de devotos leitores como o poeta August Kleinzahler ou escritor
Stephen Emerson foram os grandes avalistas da contista resgatada pela editora Farrar,
Straus & Giroux. O apoio deste selo editorial ajudou sua recente popularidade,
mas não é uma explicação suficiente para entender o atual sucesso de Lucia Berlin.
Claro que a
beleza da escritora, o silêncio que rodeou sua obra e sua atribulada biografia
(três casamentos, quatro filhos, repetidos episódios de alcoolismo) contribuem
para alimentar seu magnetismo e lenda. Mas, acima de tudo, está sua prosa, com
um toque mestiço – com palavras intercaladas em espanhol e o exótico ponto de
vista de uma menina sempre dentro e fora do lugar –, engraçada sem cair no
desalmado sarcasmo, e com uma calor sulista que emanta do desfrute próprio de narrar.
O sucesso de
Lucia Berlin talvez possa inscrever-se no interior da mesma tendência que
impulsionou o resgate e o reconhecimento no mundo anglo-saxônico da brasileira Clarice
Lispector (também bela e exótica, original em sua literatura e com uma história
de queimaduras e reclusão). Outro caso recente de feliz resgate seria o da pintora
colombiana Emma Reyes, cuja coleção de cartas Memória por correspondência – em que relata sua paupérrima infância
– se converteu num fenômeno editorial na Colômbia em 2012. Todas foram mulheres
com histórias que não se encaixavam em seu momento. Berlin fala num de seus contos
sobre “a suspensão do tempo”, sobre a “multiplicidade da escala temporal pela
gradação da luz e da escuridão, do frio e do quente”. Talvez isso sirva como
uma explicação poética da moda que agora a rodeia.
Mas qual o
elemento principal que coloca em destaque Lucia Berlin? “Ainda que as pessoas
falem, como se fosse algo novo, da auto-ficção, a narrativa da própria vida,
tirada quase sem mudanças da realidade, selecionada e contada graciosamente e
com arte, é algo que Lucia Berlin estava fazendo desde o princípio”, escreve Lydia
Davis na introdução do volume de contos.
Filha de
engenheiro de mineração, nasceu em 1936 no Alaska e se mudou com sua família
por diversos lugares em Idaho, Kentucky e Montana, até que seu pai fui para a
guerra em 1941 e ela, com sua mãe e irmão, foram parar na casa de seus avós maternos
em El Paso, no Texas. No final da guerra a família se instalou no Chile, onde
Lucia cresceu como uma boa menina. Na Universidade de Novo México, em meados
dos anos cinquenta, foi aluna do escritor Ramón J. Sender. Aos 19 anos se casou
com um escultor. Aos 22 estava casada de novo com um músico de jazz, Race Newton. Lucia deixou este por um de seus amigos, o também músico Buddy Berlin, com quem se mudou
para o México e que acabou se envolvendo com drogas – “naquele momento eu não
sabia o que significava. Para mim heroína tinha uma conotação agradável... Jane
Eyre, Becky Sharp, Tess”, escreve num dos contos. Buddy foi o pai de outros
filhos de Berlin em 1968 se divorciaram. Criou seus quatro filhos sozinha,
batalhando contra o alcoolismo, padeceu uma dolorosa esclerose desde pequena,
teve uma infinidade de empregos temporários. No início dos anos noventa viveu
no México com sua irmã doente e em 1994 começou a dar aulas na Universidade do Colorado.
Um câncer de pulmão forçou seu afastamento, viveu um tempo numa caravana e
morreu em Los Angeles, instalada na garagem da casa de um de seus filhos.
Uma vez Lucia
escreveu a um amigo sobre a relação de proximidade que sentia pela obra de Carver:
“Nossos estilos vêm de nossas origens (similares de alguma maneira). Não mostre
seus sentimentos. Não chore. Não deixe que ninguém te conheça... o controle
blá, blá, blá”.
* Este texto
é uma tradução de “La segunda vida de Lucia Berlin”, publicado no jornal El País.
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