A poesia de Guimarães Rosa

Por Pedro Fernandes



Magma foi o primeiro livro de Guimarães Rosa. A data provável de uma primeira versão é 1930 e só aparecerá publicamente, não de um todo, seis anos depois, quando foi inscrito para concorrer ao Prêmio da Academia Brasileira de Letras. Na ocasião, o poeta Guilherme de Almeida, que compôs o júri do galardão, descreveu no seu parecer a poesia do mineiro como “nativa, espontânea, legítima, saída da terra com uma naturalidade livre de vegetal em ascensão”; “poesia centrífuga, universalizadora, capaz de dar ao resto do mundo uma síntese perfeita do que temos e somos” – emendou. No mesmo rosário de elogios, compreendeu, a partir da noção de poesia como “beleza no sentir, no pensar e no dizer”, que a poesia de Rosa era única no atual momento literário do Brasil.

O principiante poeta, entretanto, apesar de reconhecer que sua poesia só recebera elogios desde quando passou a circular entre os leitores mais íntimos, olhou para esse filho bastardo com olhos de desconfiança. Bastardo porque Magma foi o primeiro e o último livro de Guimarães Rosa que ficaria – como o é – reconhecido por sua obra em prosa, seja o romancista de Grande Sertão: Veredas, o contista de Sagarana ou o novelista de Corpo de baile, todos excepcionais. No discurso de recepção do prêmio, em 1937, abriu o tom de desconfiança com que olharia sempre para a obra: “O Magma, aqui dentro, reagiu, tomou vida própria, individualizou-se, libertou-se do meu desamor e se fez criatura autônoma, com quem talvez eu já não esteja muito de acordo, mas a quem a vossa consagração me força a respeitar”. E, mesmo admitindo, na entrevista a Günter Lorenz em 1965, que seus “exercícios líricos” não eram “totalmente maus” – e, certamente veio daí o interesse de revisar o material que submeteu ao júri da ABL – releva ao dizer que eram “tampouco muito convincentes”. Em carta a Harriet de Onis, de abril de 1959, portanto muito anterior a esta entrevista, Guimarães Rosa se refere a Magma como um “ourage de jeunesse”; “depois disso minha maneira de sentir e perceber a poesia se transformou muito, distanciei-me demais dele”.

A premiação, entretanto, não foi elemento motivador para que logo em seguida o livro tomasse forma fora dos lugares mais íntimos, mesmo porque, como relata Vicente Guimarães, tio do escritor, a ideia de participar do concurso da ABL foi tão-somente uma estratégia para suprir as dificuldades financeiras porque passava.  E de então, o livrou levou mais de meio século para que fosse publicado. O autor, aliás, não viu o feito: morreu em novembro de 1967 e Magma só veio à luz em 1997. Apesar de sabermos que Guimarães Rosa tenha preparado quatro cópias finais para a inscrição no concurso da ABL, o conjunto de poemas, aparentemente não recebeu a forma final para publicação, portanto sua aparição não escapa do único interesse comercial que alimenta os editores quando chafurdam os restos de materiais deixados por um escritor. Maria Célia de Moraes Leonel, no importante estudo Guimarães Rosa: Magma e a gênese da obra (EdUnesp, 2000) refere-se que o datiloscrito melhor acabado, com revisões manuscritas do próprio Guimarães Rosa de até depois do Prêmio da ABL, como indica a inscrição “Prêmio da Academia Brasileira de Letras” na primeira página do material, apesar de designado com o termo “Fim”, não significa a versão definitiva da obra.

Que este livro não tenha sido publicado tão logo sua existência se tornou pública é um mistério importante de sondar, mas agora incapaz de realizá-lo e, portanto, preferível de acreditar na tese da vontade do escritor por compreender sobre seu inacabamento. Por outro lado, as implicações que o levaram a se decidir pela não publicação podem ser compreendidas, em parte, pelo reconhecimento do valor questionável do livro para o conjunto de seu projeto literário. Há, em relação à primeira hipótese uma série de apontamentos realizada no referido estudo de Maria Célia Moraes Leonel que assinala as muitas incongruências entre os dois datiloscritos aos quais a pesquisadora teve acesso; a pressa com que a edição publicada pela Nova Fronteira foi responsável por aplainar o texto, de maneira no mínimo desinteressante, ao não se referir o que trata como original para o registro final do poema. Com isso, repisa erros que o próprio Guimarães Rosa havia desfeito numa versão e que se repetiu na outra foi pelos lapsos recorrentes no trato com a datilografia e, claramente, não foram revistos pelo escritor.

A edição de Magma, com 64 poemas, parte do discurso que pronunciou na recepção do Prêmio na ABL, o parecer de Guilherme de Almeida e uma pequena nota da editora apareceu com ilustrações de Poty – sempre marcantes e cujos traços são signos de uma identidade editorial de um tempo rico da nossa criação. Nota-se nesse tratamento um interesse da editora por atribuir elementos genéticos capazes de integrar o livro ao DNA da obra de Guimarães Rosa; isto é, esses desenhos funcionam com uma maneira de reduzir a notável diferença que se verifica entre uma obra já de um todo reconhecida e uma que significa um ponto fora da linha. Basta lembrar que, a partir da quarta edição de Sagarana – e a partir de quando se opera esse grau de reconhecimento do autor e de sua obra –, torna-se tradição o traço do ilustrador brasileiro nas capas e ou no interior dos livros de Rosa. 

Questões editoriais à parte, as relações entre a poesia e a prosa do escritor são operadas por outros caminhos mais profícuos: com a intensa presença de imagens e situações possíveis de ser encontradas de maneira quase limpa na sua obra da maturidade. Ou ainda, o claro exercício de um lirismo que se tornaria marca estilística de sua prosa. José Lino Grünevald observa, numa das primeiras resenhas sobre a obra, que aí se verifica a “poderosa tendência de Guimarães Rosa para a fanopéia”.




De fato, Magma é um livro ricamente imagético – o que só justifica a redundância dos desenhos de Poty. Alguns funcionam como pequenos fotogramas ou narrativas, o que demonstra a tendência imaginativa, rendida já ao trabalho de ficcionalização; estamos diante um prosador principiante que se exercita em composições que cresceriam e tomariam forma mais tarde. Dentre os textos que melhor funcionam como poemas podemos citar a sequência apresentada como “Hai-kais”. Ainda assim, é impossível para o poeta se distanciar do apelo visual descritivo e da narração. De modo que, alguns dos haicai poderiam muito bem, além de ser enquanto tais os precursores de uma forma genuinamente tropical-brasileira, belos exemplares de microcontos. Pode-se citar como exemplo os poemas seguintes:

Romance – I
No cinzeiro cheio
de cigarros fumados,
os restos de uma carta...

Romance – II
Bem na frente
de um retrato empoeirado,
uma aliança esquecida...

Turismo sentimental
Viajei toda a Ásia
ao alisar o dorso
da minha égua angorá...

Para o primeiro caso, o dos poemas de ordem imagético-narrativa, é marcante o poema “Reportagem”, citado aqui como elemento singular capaz de responder por outras situações dominantes no livro. À maneira do que enuncia o título do poema, há um eu que observa, à distância, de forma objetiva o episódio que se registra no poema: um homem que desce de um trem em direção ao Leprosário. Não é apenas a linha narrativa constitutiva de uma dorsal do texto, nem teor de quase crônica na reconstrução ficcional de um episódio do cotidiano; é a situação de expectativa que se forma e se estabelece ao longo do andamento da narrativa: em crescendo, o leitor é arrastado para um mistério que, de uma só vez, encerra o poema, qual o golpe-limite de um conto (pensamos no modelo retomado por Julio Cortázar na releitura que faz de Edgar Allan Poe).

O trem estacou, na manhã fria,
num lugar deserto, sem casa de estação:
a parada do Leprosário.

Um homem saltou, sem despedidas,
deixou o baú à beira da linha,
e foi andando. Ninguém lhe acenou...

Todos os passageiros olharam ao redor,
com medo de que o homem que saltara
tivesse viajado ao lado deles...

Gravado no dorso do bauzinho humilde,
não havia nome ou etiqueta de hotel:
só uma estampa de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro...

O trem se pôs logo em marcha apressada,
e no apito rouco da locomotiva
gritava o impudor de uma nota de alívio...

Eu quis chamar o home, para lhe dar um sorriso,
mas ele ia já longe, sem se voltar nunca,
como quem não tem frente, como quem só tem costas...

Quando Guilherme de Almeida vibra destacando certo nacionalismo da poesia de Guimarães Rosa, refere-se, claro está, à recorrência do elemento paisagístico, o que aproxima o texto do poeta principiante aos modos de certa cartilha dos Modernistas de 1922, filiando-se, portanto, a uma linha recorrente da nossa literatura desde o movimento indianista da literatura romântica. Uma literatura que prima pela afirmação de uma identidade própria e nossa marca pelos requintes da exuberância natural. O poeta de Era uma vez excede-se na justificativa sobre Magma, afinal, o poeta está longe de traduzir a multitude brasileira; escolhe, é verdade, um estrato que realça ora a simplicidade ora a amplitude da paisagem. Mas, parece respirar em toda parte a atmosfera que respirará sua prosa: o norte de Minas Gerais.  

Mas, o verso lírico não está apagado nesta coletânea – já vimos. A sequência dos poemas que são designados pelas cores, para citar outro exemplo além dos haicai, recorre à tradição originalmente determinante da poesia. Se nesta antologia estão os elementos motivadores da sua obra, o lirismo, sua marca precisa, é, conforme dissemos, latente – a começar pelo título escolhido para nomear esses poemas. É uma força ou fôlego subterrâneo o que irrompe na página. Ao discutir sobre o lirismo em Guimarães Rosa, Roberto Schwarz, compreende que este se constitui “uma atitude em face da linguagem e da realidade”. Obviamente que a voz lírica presente nestes poemas não funciona ainda tal como na sua prosa, marcada pela desconstrução dos esquemas tradicionais da narração e o contínuo estreitamento entre o narrado e o imaginado, beirando a tornar o relatado em mito, pela sua perenidade e suspensão da estreita relação entre a realidade externa e interna do texto. Isto é, o lirismo da sua prosa se define pelo esforço da invenção e da criação de um universo autêntico e autônomo ao universo determinante à figuração. Mas, dessa compreensão é possível extrair que o lirismo da poesia de Rosa se oferece no desenvolvimento de imagens só determináveis por uma posição de ver. Isso é bastante visível na sequência de poemas aqui referida, em que o imagético é uma construção que transmuta o filtrado pela visão numa imagem puramente poética. Dessa maneira é possível compreender o elogio do relator do prêmio de poesia a Magma. Esses poemas conjugam o sentir, o pensar e o dizer. Notemos em “Vermelho”:

É uma pomba
– parece uma virgem.
De debaixo das plumas, vem o jorro
enérgico, da foz de uma artéria:
e a mancha transborda, chovendo salpicos,
a cada palpitação.

Cresce, cresce,
parece que meus olhos a tocam,
e que vem aos meus olhos
passando por meus dedos,
viva, tão vivam
que quase grita...
Ardente e berrante...
Como deve ser quente!...
Mancha farta, crescente, latejante,
dói-me nos olhos e me irrita...

Cresce, cresce,
tão depressa,
que chega a mudar o gosto na minha boca...

Tenho-a agora presa nos meus olhos,
quente, quente,
e no entanto a pomba já está fria,
e colorada, como uma grande flor...

A designação da vida pelo tom do vermelho-sangue e a transformação da pomba em corte surrealista “colorada, como uma grande flor” assinalam o que dizíamos no parágrafo anterior. O conteúdo poético possibilita a experiência do estranhamento, ao deixar de ser mera recriação imagética de uma determinada situação para assumir-se enquanto imagem pura, pulsar subjetivo que se abre para múltiplas possibilidades – a considerar o paradoxo, a contradição capaz de nos inquietar pelo instante-vida ou morte da pomba, fugindo-se da lógica exclusivista para a elaboração de uma imagem marcada por oposições coexistentes. Este é um exemplo entre os muitos possíveis de citar em Magma, o que nos leva a afirmar que o incipiente poeta não era de um todo inocente e sim já um profundo estudioso das possibilidades do poético; as lições do tio-poeta terão lhe ajudado na lapidação desses textos que Guimarães Rosa submeteria ao crivo dos imortais da Academia de Letras.

Assim, o livro, a justificar o título que traz, parece reunir das inquietações do jovem escritor ante às múltiplas possibilidades de feitura do poema, sobretudo as de seu tempo, marcadamente de aberturas e experimentações por compreender que o poeta é um manipulador de palavras e, por isso, um inventor de mundos. É possível, então, que pela poesia, o escritor tenha encontrado o lugar do limiar para formação de seu mundo, isto é, Magma coloca o leitor diante não apenas de elementos determinantes do universo rosiano; leva-o ao lugar de gênese sobre um determinado modo de ver as coisas, que é o lado fundamental de todo criador. Claro, não há aqui uma total revelação, afinal não é esta a tarefa de nenhum poeta, mesmo os que não passaram do lugar de principiante. Mas, imaginar não custa caro e só acrescenta significação para se compreender que os gênios não são feitos de espontaneidade, mas de trabalho dedicado e árduo. Numa época quando se volta acreditar no ultrapassado princípio dos dons, quando poetas e escritores querem ser assim reconhecidos apenas pelo esforço simplista de colocar no papel volições, a lição de aprendizagem dos grandes é realmente de extensa valia; tamanha, que até esquecemos a ganância dos editores para reafirmar a importância das obras menores na compreensão das já designadas como maiores.


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