Sobre Patricia Highsmith
Por Laura Broitman
Não acredito,
além disso, faço doutrinação sobre, que a vida, a biografia e a personalidade
de um autor sejam a explicação de seus textos, de sua obra. Pode ser que sim. Como
um autor encara sua obra, suas ideias, suas convicções, tudo o que existe em
sua mente antes da criação, tem a ver, será, como encara sua vida?
Inclusive
influencia esta, sua vida (infância, relação com os seus pais, juventude) na
forma criativa e nas escolhas que estes fatos biográficos o impulsionam? É inegável
que um autor não é uma ilha. Provém de algum lado e isto influencia na criação.
Mas logo, a
análise do texto se centra mais nele que em tais convicções pessoais e opções
estéticas; a análise não parte da personalidade e chega assim ao texto, mas
parte deste para estudar a forma, a maneira de narrar, as opções estéticas e a
escolha do ponto de vista, elemento primordial para explicar uma obra.
No caso da
narrativa, partimos da análise sobre a forma para descrever as predileções estéticas
que caracterizam um autor: as transgressões ou obediência às leis do estilo, do
gênero, ou mesmo as contextuais. Vale dizer, o que me interessa, como crítica,
não é tanto a personalidade mais ou menos atraente de um autor, mas de que maneira
coloca no papel, preto sobre branco, essas características distintivas.
No caso de
Patricia Highsmith sinto, de forma estranha, a necessidade de inserir por entre
a análise de sua obra os elementos mais característicos de sua personalidade:
seu “demonismo”, sua vida pouco ordenada, suas convicções transgressoras e politicamente
incorretas, sua perversidade. Que se correspondem com as personagens que cria
em suas obras: ambíguas, inocentes, imprevisíveis e amorais, como ela própria.
Não é em vão
que o ponto de vista da narração se situa, em muitos de seus textos, do lado do
delinquente, de quem comente o delito, mais que do lado já distanciado de quem
o investiga. Esta condição permite e é propensa ao trabalho psicológico das
personagens. Estas pertencem, nas palavras de Joan Schenkar, ao melhor das
biografias de Patricia Highsmith, ao “universo Highsmith”. Os crimes, se existem,
e por isso costumam incluir suas obras no âmbito do gênero policial, por mais
que Highsmith rompa cada uma de suas leis, são um elemento a mais na conduta de
suas personagens.
Se dedicarmos
um breve olhar sobre sua personagem mais conhecida, Tom Ripley, com sua falta
de moral, culpa e arrependimento, sua faceta criminosa tem a mesma espessura
narrativa que as outras facetas de sua personalidade. É assim que se descrevem
seus crimes (sempre levado pelas circunstâncias e, de alguma maneira, “necessários”
dentro da lógica amoral da personagem, que, inclusive, coincide bastante com a
da autora), da mesma maneira que se descreve sua preocupação por destacar uma
peça em suas aulas de música ou para comprar um presente apropriado para sua
esposa, Heloise.
Os detalhes são
realistas, abundantes e beiram o anedótico. Mas, sobretudo, a atmosfera que se
respira nos romances de Ripley é de harmonia, segurança, e mesmo de bonomia. É
sintomático que nas narrativas em que existe um verdadeiro culpado (Ripley, por
exemplo) o que se respira é a tranquilidade doméstica, a estabilidade. Do contrário,
naquelas narrativas em que a culpa é psicológica, tudo é insegurança e
desaprovação social.
Nas
narrativas de Highsmith, o característico do gênero policial está mediado pelo conflito
psicológico, desfazendo-se assim suas regras: o suspense e a revelação final não
existem, embora o suporte anedótico aporte de alguma maneira a empatia pelo criminoso
mais que pelas vítimas. O que constitui outra saída da norma.
Tratam-se, sobretudo,
de acontecimentos banais que vão tomando forma sinistra à medida que a
narrativa avança, formando-se uma bola de neve que desemboca no crime e este
processo é o que interessa, mais que a revelação final.
Tom Ripley,
figura emblemática, personagem recorrente porque protagonista de cinco de seus
mais famosos romances, muitos deles adaptados ao cinema, tem uma personalidade
definida, tem passado e tem história, gosto e preferências, uma psicologia que o
transforma numa marca distintiva na escrita de Highsmith.
Essa é sua
genialidade e sua originalidade: os acontecimentos cotidianos, domésticos, inclusive
gerados de condutas posteriores como na vida em si, têm o mesmo peso narrativo
que os outros, os que marcam hiatos na narração anedótica. E esta toma distância
do que narra. Não toma partido, não há atitude moralista nem reprovadora à
parte, tanto da narração como de sua autora, que, nessa mescla em que quisemos propor
entre a personalidade e as formas narrativas, nos fala dessas mesmas características
numa autora que viveu e escreveu de costa para os convencionalismos e normas
imperativas, transgredindo tanto na literatura como na vida.
* Este texto
é uma tradução de “Sobre Patricia Highsmith”, publicado em Letralia.
Comentários