Raymond Carver, o melhor escritor de contos do século (junto com Tchékhov)
Por Manuel de Lorenzo
Recordo a
primeira vez que li algo de Ernest Hemingway. Era um livrinho de contos que
havia na casa dos meus pais. Nem sequer lembro o título. Na época estava
entusiasmado com os labirintos de Julio Cortázar, com a exuberância de Mario
Vargas Llosa, com a minuciosidade de Gabriel García Márquez. Apenas começava a
entrar no assombroso universo de Jorge Luis Borges. A literatura, durante
aqueles anos de adolescência feliz, começa e terminava na América Latina.
Nas páginas
de Hemingway encontrei um deserto. Nada me fascinava. Na me surpreendia. Seus contos
não eram mais que palavras colocadas em ordem, uma após outra, tediosamente
fiéis às normas da sintaxe e da gramática. Avançava por seus parágrafos em
estado de tensão, esperando os fogos artificiais, a explosão repentina, mas
logo o conto começava a languidescer pouco a pouco, como se a pólvora tivesse
sido molhada em algum ponto impreciso de suas linhas e finalmente tudo se apagava.
Sua literatura se parecia – ou eu acreditava assim – como se um galpão
industrial e ou edifício de Guadí: suas sustentações eram as mesmas e isso era
tudo.
Acredito que
se tivesse lido Raymond Carver naquela época teria acontecido algo parecido.
Meu torpe sentido do gosto era incapaz de diferenciar um lugar pobremente decorado
com três ou quatro coisas de um estudadamente decorado com três ou quatro coisas.
Não reparava na importância da precisão. Na oportunidade da palavra objetiva.
Mas, sobretudo, nunca havia me detido em valorizar sua eficácia. Um texto
sensível, carente de grandes recursos literários, pobre em adjetivos e
advérbios, era para os meus olhos um texto pobremente construído. Fruto da mais
neutra redação. Levou algum tempo para compreender que às vezes em literatura, como
em tantas outras coisas, menos é mais. E é muito possível que ainda não tenha compreendido
totalmente.
Um par de anos depois, apesar de Borges
inundar toda e qualquer comparação, sua prosa parecia-me injusta, comecei a
entender que via o mundo em Hemingway. Ali onde parecia não existir nada, à
força tinha que existir algo. Talvez se tratasse do ritmo. Talvez da contundência.
Toda vez que voltava a ele me parecia mais difícil permanecer indiferente. Adeus às armas ou “Estações tempestuosas” não podiam ser os
textos de um escrevente sortudo, mas a obra de alguém que sabia o que queria escrever
e, especialmente, o que não queria escrever. Onde outros construíam cenas com
palavras, ele as completava com silêncio e profundidade. Era uma austeridade
esmagadora que logo comecei a ver em alguns que vieram depois, como J. D.
Salinger ou Norman Mailer, mas também em outros que vieram antes, como Sherwood
Anderson, Ring Lardner ou Stephen Crane – “Pensava que sua prosa era perfeita;
até que li Stephen Crane e me dei conta de onde havia copiado”, escreveria a
respeito Gore Vidal. Então, não voltei a ter a sensação de me encontrar ante
semelhante domínio da contenção até que caiu em minhas mãos Catedral, de Raymond Carver.
“Escrever
precisa ser fácil”. Osvaldo Soriano explicava há alguns anos que esse
pensamento o tomava toda vez que lia os contos de Hemingway, o oposto do que
sentia quando lia William Faulkner. Em Carver alguém pode apreciar o fácil, a
beleza do simples. Mas ao mesmo tempo é impossível não perceber o difícil. A complexidade
de tão elevado grau de concisão literária. Sempre se diz que foi seu mentor, o
escritor e professor John Gardner – de quem Carver acompanhou as aulas de escrita
criativa na universidade da Califórnia em finais dos anos cinquenta, quando acaba
de chegar a maioridade –, quem o convidou a reduzir pela metade a quantidade de
palavras em cada frase que escrevesse. Um singular exercício de depuração
estilística que apareceria já em seu primeiro livro de contos, Você poderia ficar quieta, por favor?,
no qual Carver trabalhou durante
quinze anos até sua publicação em 1976 e o que contém, na minha opinião,
vários dos textos mais brilhantes do autor, como “Sinais”, “Os patos”, “Vizinhos”, “Gordo” ou “Eles não
são seu marido”.
Embora possa
ser seu melhor conto, pelo qual recebeu em 1983 o Prêmio O. Henry de Conto e no
qual a sobriedade chega a roçar por momentos o inverossímil, “Uma coisinha boa”,
incluído em Catedral. Segundo um
artigo publicado em 1998 pelo escritor e jornalista do The New Yorker D. T. Max, o editor de Carver naquela época na Esquire, Gordon Lish, foi o responsável para
que sua prosa se tornasse mais objetiva. Arthur F. Bethea transcreve algumas
palavras do próprio autor de Technique and
Sensibility in the Fiction and Poetry of Raymond Carver: “[John] Gardner
dizia que não usasse vinte e cinco palavras para dizer o que se pode dizer com
quinze. Gordon [Lish] acreditava que podia dizer em cinco palavras; ao invés de
quinze, usasse cinco palavras”. A polêmica que suscitou o artigo de D. T. Max nasceu,
entretanto, da afirmação de que Lish não só terminou de polir o estilo de Carver,
mas se atreveu a recortar e reescrever parágrafos inteiros de seus contos. De
fato, “Uma coisinha boa” já havia sido publicado dois anos antes com o título
de “O banho”, com final diferente e o dobro de extensão no livro Do que estamos falando quando falamos de
amor. Segundo D. T. Max, nessa coleção Gordon Lish reduziu unilateralmente
o número total de palavras à metade e modificou o final em dez dos treze contos,
espalhando a dúvida sobre o quanto há de Carver e o quanto de Lish nos textos.
É algo que acontece,
por exemplo, com “Diga às mulheres que a gente vai dar uma volta”, outro dos contos
de Do que estamos falando quando falamos
de amor e, pessoalmente, outro de meus favoritos de Carver; Lish também foi
acusado de aqui aplicar a tesoura suprimindo da trama o determinante que provoca
uma das personagens principais, Jerry, a assassinar brutalmente as duas mulheres
que Bill e ele acabam de conhecer. Em minha opinião, se o conto é excelente é
precisamente por isso. Porque nada parece motivar semelhante reação. Porque acontece
de repente, sem que o leitor possa prever. Porque, a exceção de alguns indícios
sobre a personalidade agressiva e imprevisível, em nenhum momento se reflete o
que motiva Jerry a dar um fim à vida das duas ciclistas. E a suspeita de que a
elipse pode ter sido ideia de Lish reduz significativamente a contribuição de Carver
sobre a concepção geral da história. A genial história de uma reação desproporcionada,
em todo caso. De um crime sem causa. Cometido porque sim. Uma abordagem que,
seja como for, nos diz muito da natureza de Carver como narrador.
Porque,
apesar do extraordinariamente útil que resulta a objetividade descritiva para
imprimir rapidez e intensidade ao conto, é um erro acreditar que Raymond Carver
é apenas economia. Sua grande virtude é a forma de contar as coisas, certamente,
mas também é o fundo das mesmas. Se é que as duas partes, no caso de Carver,
podem se dissociar. Às vezes, a mera especificação de um gesto ou ação, como a cena
que rompe a pressão narrativa em “Uma coisinha boa”, quando de imediato lemos “‘Fiquei
rezando’”, disse ela. // Howard fez que sim com a cabeça”, é suficiente para
oferecer todo o contexto que requer a cena. Para Carver basta uma pincelada de
realidade para conseguir que o leitor evoque no mesmo instante as qualidades
das personagens, o lugar onde se encontram, suas roupas, suas condições sociais,
suas relações com o mundo que lhes rodeia. Seus contos não são quartos pobremente
decorados com três ou quatro coisas, mas quadros estudadamente decorados com
três ou quatro coisas. Todas elas colocadas no lugar preciso. No momento exato.
Com cinco palavras é capaz de concretizar uma variedade de informação o que para
outros só conseguiriam com vinte e cinco. Não é só sobriedade. Não é só
Hemingway. Também é geometria. Condensação. Eficiência. É literatura.
Seus contos
parecem começar em qualquer parte. Um pouco à maneira de Roberto Bolaño em Chamadas telefônicas, o primeiro livro do escritor chileno. Quando começamos
a ler, a narrativa já havia começado. Talvez em alguma parte da página anterior
em branco. Temos aquela sensação de quando chegamos cinco ou seis minutos depois de
começar o filme. A estranha sensação de que perdemos o primeiro parágrafo e
agora precisamos dobrar a atenção se quisermos construir uma compreensão de
onde ou em que parte da trama estamos. Essa forma de contar as coisas, essa técnica
narrativa, relaciona-se perfeitamente com aquilo que o autor quer contar. E o
que Carver quer contar não é outra coisa que o extraordinário do comum. A transcendência
do insubstancial. O insondável e o esmagador do universo pessoal e insignificante
de um indivíduo qualquer, quase à parte ao acaso de qualquer rincão da classe
média.
Carver é a
voz das tragédias cotidianas. Das pequenas desgraças individuais e invisíveis que
ocorrem em qualquer casa, do outro lado da porta fechada. Escrevia sobre a
gente comum. Sobre o mundano. Sobre seus dramas silenciosos perdidos num oceano
de dramas silenciosos. Em seus contos não se abrem interrogações. Não há juízo nem
condenação. Apenas uma perspectiva principal. Alheia à cena. Vazia. Parca em
palavras. Uma perspectiva a partir da qual se pode perceber o mundo em toda sua
deformação. Como se uma fotografia. Sem filtros. Por isso suas histórias não começam
pelo começo nem terminam pelo final. Movem-se em nenhuma parte. Sensivelmente vêm
e vão, imortalizando um momento concreto numa vida corrente, que na realidade
poderia ser qualquer outro momento em qualquer outra vida. Todas suas
personagens, de certa forma, são a mesma personagem. E isso, para os que alguma
vez foram inconscientemente fotografados, tem algo de aterrador.
Os anos, o
contexto, as tendências ou a equidade – honestamente, o ignoro – quiseram que
muitos dos grandes escritores da segunda metade do século XX repudiassem em
maior ou menor medida Ernest Hemingway. Vladimir Nabokov o depreciava abertamente
e em praça pública. Ricardo Piglia qualificava os textos de seus últimos anos –
especialmente O velho e o mar – como “má
literatura”: “Não conheço um exemplo mais patético (salvo, talvez, o de
Salinger) de autodestruição de uma literatura como o de Ernest Hemingway”.
Jorge Luis Borges, que era brilhante até para ser um bastardo desalmado, disse
sobre ele, depois da sua morte: “Hemingway
se deu conta de que era um mau escritor e se matou com um tiro na cabeça. Esse
fato de alguma maneira o redime”. De Raymond Carver, por enquanto, não lemos
mais que elogios. Mas algo me diz que, com o tempo, quando o vento voltar a
mudar e escrever já não precisar ser fácil – uma vez mais – serão muitos os que
carregarão as tintas contra seu estilo.
Só espero
que nesse momento relembrem alguma vez de Roberto Bolaño, quem disse que Carver era o
melhor escritor de contos do século junto com Anton Tchékhov. Vá você saber qual
século se referia, é verdade. Mas contradizer Bolaño em assuntos literários, de
qualquer maneira, é posicionar-se voluntariamente contrário à razão.
* Este texto
é uma tradução de “Raymond Carver, el mejor escritor de relatos del siglo
(junto con Chéjov), publicado em Jot Down.
Comentários