Quando as estratégias de leitura matam o prazer de ler
Por Rafael Kafka
Há uma
preocupação imensa em desenvolver estratégias de leitura com os alunos do
ensino fundamental e médio. Algumas são atitudes bem curiosas e que remetem a
métodos bem arcaicos. Há quem defenda, por exemplo, a cópia. O aluno fica na
missão de copiar determinadas páginas do livro didático com intuito de estudar
o conteúdo em seu caderno, melhorar sua caligrafia e mesmo a ortografia.
Confesso que esse método me pareceu útil quando fiz um curso de inglês anos
atrás, mas só pareceu.
Há também
quem defenda o uso do ditado. O professor fala algumas palavras e frases e o
aluno deve copiá-las no caderno. Após isso, o professor coloca a resposta no
quadro e o aluno verifica quantas delas ele foi capaz de acertar. Há os que
falam em cadernos de caligrafia para a melhoria da letra. Em suma, métodos
antigos que muitos de nós provavelmente sentimos na pele e que eu de vez em
quando me pego questionando a validade dos mesmos, para usar um eufemismo.
Porque na verdade, não há validade alguma nesses métodos.
Quando
jovem, todo mundo falava que eu era extremamente estudioso. Na verdade, não
tinha nada para fazer de divertido e pegava os livros didáticos para encontrar
algo mais interessante do que simplesmente olhar o teto ou os desenhos. Quando
passava as férias na casa de minhas tias, onde eu tinha primos que estudavam em
grandes escolas de Belém, eu pegava seus livros e os lia. Vários, como “Éramos
Seis”, li e reli até a exaustão. Havia também uns gibis da turma da Mônica e
uns livros de piadas que de vez em quando caíam em minhas mãos e me ajudaram a
sentir o prazer do texto.
Perto do
final da infância, descobri as revistas de videogame que matavam o vício da
leitura e ajudavam a compensar a impossibilidade matar outro. Pobre, eu não
tinha como ter um aparelho em casa e pegava as revistas de amigos para ler e
fingir que eu jogava aqueles jogos legais, os quais jogo hoje em dia usando
emuladores em computadores baratos. Apenas com 16 anos de idade, decidi sempre
me manter com um livro por perto, mesmo demorando demais para ler os mesmos e
tendo uma média de um por mês. Com o passar dos anos, essa média foi ampliando
e chegou a um por semana.
Hoje, lendo
vários e nem sempre lendo algo, leio um a cada quinze dias. Que estratégia de
leitura eu tive aí? Nenhuma. Eu tive apenas contato com a leitura, prazer com o
texto, prazer inclusive no sentido de sentir desprazer e deixar o livro de
lado. Prazer no sentido de pesquisar sobre o texto, de discutir sobre ele, de
repassar o livro adiante e de ver outras pessoas lendo algo que me tocou.
Digo que a
leitura me tornou uma pessoa melhor, pois ler me levou a sempre querer ler
mais. Mas esse melhor não é em um sentido maniqueísta, elitista ou
academicista. Mais cedo no dia de hoje, uma pessoa me deu carona do trabalho
até perto de casa. Em coisa de quinze minutos, proferiu uma série de verdades
em formato de senso comum e toda vez que eu tentava responder era cortado.
Quando fui deixado fora do local no qual pretendia descer, diante do pedido de
desculpas, disse que não me importava tanto com aquilo e sim que me fosse
impossível terminar um ponto de vista.
-Mas para
que te deixarei terminar se não vais mudar meu ponto de vista?
-Então tu
podes falar as tuas verdades e eu não?
-Precisas
mais prático. Pensas demais.
-Pensar é
bom.
-Sim, mas
teoria sem prática não é nada.
-Assim como
a prática sem teoria é cega.
Já tive esse
tipo de discussão em minha vida diversas vezes tendo apenas 29 anos. Ela varia
entre a pessoa que “nada lê”, resumindo-se a manchetes de jornais e correntes
de aplicativos de conversa, ou aquela que lê somente textos de sua área. Em
geral, essas pessoas falam da vivência como um fator importante ao mesmo tempo
em que podem citar estudos muito duvidosos para ratificar os pontos de vista
descobertos em suas vivências. O primeiro tipo de pessoa, porém, é mais comum
em minha existência, pois pouco participo na universidade de grupos muito
fechados em suas temáticas. A interdisciplinaridade é um signo muito valorizado
por mim.
A fala da
pessoa que diz que não me deixa terminar uma fala é reveladora da dimensão
egotista do discurso da impessoalidade, tão explorado por Heidegger em seu
tratado fenomenológico. Tal fala mostra como a figura não leitora se fecha a
novos pontos de vista e assume pensamentos pré-fabricados os quais muitas vezes
descambam para a violência simbólica. Para piorar tudo, tal fechamento é
difícil de romper, pois fecham-se falas em ciclos fechados a reforçarem-se
mutuamente em suas visões cristalizadas. Nesse sentido, a leitura me tornou
alguém melhor: pois há em mim uma estrutura de pensamento a todo instante
perturbada por elementos externos.
Claro que
devemos sempre entender ser a leitura um hábito a ser conquistado por status ou
por desassossego. Meus primos não liam seus livros por serem pouco incentivados
nesse sentido. Mas se tivessem lido, provavelmente se tornariam pessoas de ar
elitista e um discurso culto meritocrático. No meu caso e de muitos outros, a
leitura é uma forma de fuga, mas uma fuga que te leva ao encontro da realidade
em outra perspectiva. A leitura literária encena situações e não dá respostas
prontas e por isso, mesmo em suas formas mais clichês, ela gera inquietude. Um
leitor apaixonado por livros românticos pode tentar entender os motivos de seus
pais não se amarem como os personagens do romance lido por ele no momento e
assim, pela reflexão, ele pode ser levado ao confronto com fatos sociais como a
violência doméstica, os relacionamentos por conveniência e mesmo a carência
afetiva potencializada pelas músicas das rádios FM.
Não à toa, a
literatura em países totalitários é sempre perseguida, pois mesmo obras com
aparente caráter abstrato, como as Kafka, são vistas como ameaça por provocarem
reflexão e angústia nos leitores, não entoando hinos de amor aos sistemas
impostos pelos poderosos. Quando penso nas estratégias citadas mais acima,
lembro que em minha cidade é uma tarefa difícil encontrar uma biblioteca aberta
em pleno funcionamento. Quando mais jovem, eu tinha muitas crises de melancolia
por me ver sem nada para fazer e longe dos livros. Hoje tenho tido algumas por
não conseguir criar disposição para sair aos finais de semana para os locais
distantes onde passam filmes alternativos e espetáculos teatrais. A segregação
social começa já nos modos de acesso aos objetos de consumo cultural.
Nesse
sentido, como discutir com os alunos meramente o uso de estratégias de leitura,
tratando o texto literário como mero conjunto de elementos estruturais a serem
decifrados pelos leitores por meio de competências linguísticas estas ou
aquelas? O texto literário em si, diria Umberto Eco, é todo envolvido pela
abertura da obra, pela ambiguidade, como também diria Roland Barthes em sua
diferenciação do escritor e do escrevente. Quando lemos uma obra literária ou
cinematográfica mesmo somos levados a um universo de significados que se
permeiam e se cruzam com diversos fatores estéticos, os quais mexem com nosso
horizonte de expectativa e nossa capacidade e gerar sentidos. A mesma obra lida
em outro contexto e em outro tempo assume um novo tipo de percepção para nós,
assim como quando lida por outrem. Nesse sentido, mais do que estratégias de
leitura, devemos discutir em nossa sociedade como se dá o acesso do aluno ao
livro, ao cinema, ao teatro. Devemos permitir ao jovem que ele leia o livro,
sinta prazer ou nojo por esta obra e diga o porquê, usando a emoção e a razão
em seu diálogo.
Com poucas
bibliotecas com difícil acesso, as estratégias de leitura não formarão
leitores, pois os mesmos não terão o que ler. Por isso, muito mais interessante
seria levar os textos para a escola, seja nas aulas de língua portuguesa e
literatura, seja nas salas de leitura, as quais costumeiramente ficam fechadas.
Um leitor nasce, Todorov alertou bem isso em famoso tratado, não com o ensino
de técnicas de leitura e elementos de crítica literária preliminares à leitura.
O leitor nasce com o texto em suas mãos, com a possibilidade de se sentir
emocionado com a literatura. De nada adianta ele aprender uma receita para ler
algo que lhe é negado e de nada adianta ele aprender tal receita quando está
diante de um estilo de texto que o convida sempre a recriar pensamentos e
impressões.
A inquietude
do leitor só pode ser obtida pela leitura em movimento. Querer prender isso em
noções muito interessantes de linguística aplicada, sem entender que o
fundamento da literatura é o prazer, é matar a essência mesmo da leitura
literária. Por esse motivo, em minhas aulas, gosto de ler textos curtos com os
alunos quando consigo driblar as dificuldades de acesso ao material impresso ou
de passar filmes e pedir aos jovens para dizerem o que sentiram diante da obra.
A única estratégia relevante para espíritos sedentos de descoberta e de fuga da
mesmidade é oferecer a eles outra possibilidade de viver a vida, sem cairmos na
arrogância de querer lhes dizer como devem executar uma tarefa tão aberta
quanto é a leitura.
Comentários
Eu sou leitora assídua (tambem usava as férias para ler almanacões dos primos) e nunca parei pra pensar nos métodos que me levaram a esse hábito!
Amei a reflexão!
osenhordoslivrosblog.wordpress.com