Observando fotografias: J.R.R. Tolkien: uma biografia, de Humphrey Carpenter


Por Guilherme Mazzafera



Sob o risco do autoplágio, que evito com uma sutil permuta, afirmo: nada é mais ficcional do que uma biografia, exceto a biografia oficial. O exercício biográfico é perigoso por sua ânsia explicativa, em especial pelo desejo muitas vezes obtuso de construir os liames causais entre vida e obra. Um poeta sagaz como W.H. Auden adverte com clareza sobre os riscos de tal empresa: “Um escritor é um criador, não um homem de ação. Em verdade, algumas e, em certo sentido, todas as suas obras são transmutações de experiências pessoais, mas nenhum conhecimento dos ingredientes crus explicará o sabor peculiar dos pratos verbais que ele convida o público a provar: sua vida privada não diz, nem deveria dizer respeito a ninguém a não ser ele mesmo, sua família e seus amigos.”1  A opinião de Auden era tão inflamada que ele dizia ser melhor que os autores publicassem suas obras anonimamente, o que obrigaria os leitores a se concentrarem no que interessa: o texto. De forma mais explícita, deixou ordens para que suas cartas (inclusive as enviadas a amigos) fossem queimadas de modo a inviabilizar qualquer projeto de biografia.

A aparente digressão sobre Auden não é tão avulsa assim. Entre os vários interesses em comum com Tolkien, de quem foi entusiasmado aluno e, mais tarde, importante resenhista e defensor, incluem-se a admiração pela literatura do inglês médio e antigo e a forte ojeriza ao culto biográfico. Diferente do ex-aluno, no entanto, Tolkien mostrou-se mais aberto, aceitando algumas entrevistas, a realização de um documentário sobre sua vida em Oxford, entre outras ocorrências menores. Recusou, no entanto, a escrita de um livro sobre sua obra por parte do mesmo Auden. Na “Nota do autor” de J.R.R. Tolkien: uma biografia, diz Humphrey Carpenter que essa aversão de seu biografado suavizara-se nos últimos anos, a ponto de Tolkien “ter feito alguns preparativos nesse sentido”, acrescentando notas a documentos antigos e mesmo escrevendo “algumas páginas de reminiscências de infância”. Ao desvelar tais preparativos em busca não tanto de promulgar juízos literários, mas sim para, pela cuidadosa descrição de eventos, influências e interesses que atuaram sobre a imaginação do autor, “lançar alguma luz sobre seus livros”, Carpenter produziu uma obra de referência que se lê como os melhores romances.

Trata-se do segundo livro do vasto “Projeto Tolkien” da HarperCollins Brasil, lançado na primeira quinzena de agosto e suprindo uma importante lacuna editorial há muito prolongada. Publicado originalmente em 1977, quatro anos após a morte de Tolkien e no mesmo ano que seu filho Christopher dá a público O silmarillion, a obra foi composta com o auxílio direto da família Tolkien, que facultou acesso a fontes primárias (cartas, diários, manuscritos, anotações, fotos etc.) consultados in loco pelo biógrafo ao longo de oito meses, pioneirismo que o torna pedra de toque inalienável e altamente copiável para seus seguidores.

O livro já havia sido publicado no Brasil pela editora Martins Fontes em 1992, antes mesmo das traduções atuais (e oficiais) de O hobbit e O senhor dos anéis estarem disponíveis, fato que trouxe implicações para o léxico do livro, que manteve muitos termos traduzíveis tal como no original (Bilbo Baggins e não Bolseiro; Shire e não Condado etc.) Há ainda um outro detalhe importante desta edição de 1992: trata-se do primeiro trabalho tolkieniano de Ronald Kyrmse, seu principal tradutor entre nós.  Ao longo destes 26 anos, a falta do livro – esgotado e nunca reimpresso – foi fortemente sentida pelos leitores de Tolkien no Brasil (inclusive no bolso dos que se atreveram a comprar os exemplares superfaturados à venda na internet), o que levou à proposição de um abaixo-assinado e de campanhas virtuais que aos poucos adquiriram vulto e chegaram até a editora que, no final do ano passado, comprometeu-se a republicá-lo. No entanto, com a compra dos direitos pela HarperCollins, tal ideia ficou rapidamente em suspenso até o anúncio oficial de sua republicação, contando com uma versão amplamente revisada e atualizada do trabalho de Kyrmse.

Mais uma vez, o projeto editorial como um todo é belíssimo, mantendo o padrão de O dom da amizade e trazendo sutis detalhes em verde no interior do livro, além de uma capa contendo um dragão branco sobre uma paisagem montanhosa, alusão a Smaug, o magnífico, mas também, por sua transmutação em verde na folha de rosto, ao “verde dragão grande” que, para o Tolkien de nove anos de idade, significou uma descoberta filológica e um breve entrave imaginativo que deixarei ao leitor o gosto de desvelar.

Este mesmo leitor irá, no entanto, estranhar a grafia de alguns termos: orques, gobelins, anãos. Por mais que os ouvidos (e um pouco dos olhos) se dobrem ao lê-los, trata-se de traduções lastreadas pelas orientações do próprio Tolkien sobre quais termos devem ou não ser traduzidos para a língua de chegada, baliza importante para conferir objetividade a um assunto que facilmente se evola em ditames de gosto e impressão. Além disso, à medida que os textos narrativos de Tolkien forem sendo lançados por aqui, o número de modificações e traduções polêmicas só tende a aumentar (como deixa claro a leitura de A queda de Gondolin, lançado mundialmente em 30 de agosto e que resenharemos em breve, retomando inclusive o caloroso debate atual sobre a não muito amigável recepção destas mudanças).

Se a tradução foi muito bem cuidada ao reproduzir a saborosa fluidez da prosa de Carpenter e prezou pelas atualizações necessárias, é uma pena que o extremamente útil Apêndice C, que traz uma vasta relação das obras publicadas por Tolkien (incluindo a publicação esparsa e individual de poemas obscuros bem como de vários trabalhos acadêmicos pouco difundidos por sua não inclusão na coletânea de The Monster and the Critics, de 1983) não tenha sido completado até o presente, estabelecendo um lapso de 20 anos no qual mais de 10 títulos (inéditos e edições críticas) foram lançados. Este índice é uma inestimável fonte para acompanhar o desenvolvimento da carreira acadêmica e literária de Tolkien, verso e reverso de uma mesma medalha que irmana filologia e literatura em síntese particular. Geralmente presente em biografias pela facilidade que oferece em localizar as referências mais esguias, a ausência de um índice remissivo também se faz notar.

Uma visita

O primeiro capítulo do livro reconta as impressões do biógrafo ao visitar a casa de Tolkien em 1968, descrevendo em breves pinceladas sua garagem-escritório repleta obras de referência filológica e etimológica, um mapa da Terra-média “preso por alfinetes ao peitoril da janela” e uma arca antiga, repleta de cartas. O anfitrião o recebe com leve ressaibo, abrandando-se ao longo do colóquio ostensivamente dominado por “uma voz estranha, profunda mas sem ressonância [...] como se viesse de uma outra era ou civilização”, que se expressa sem muita clareza, aos borbotões, entremeados por pausas profundas. A fala se mescla a uma movimentação constante, marca inequívoca de um “espírito irrequieto”. Em uma dessas pausas, Carpenter declara suas intenções, que, curiosamente, parecem interessar a Tolkien.

Nesta visita, Carpenter mal tinha 22 anos. Ao publicar o livro nove anos depois, dava início a uma sequência impressionante de grandes biografias de personalidades britânicas, entre as quais se incluem Ezra Pound, Evelyn Waugh, Bejnamin Britten, Robert Runcie, Dennis Porter e Spike Milligan. Há que se destacar, pela proximidade temporal e conexões filiais, sua primeira tríade biográfica, composta pelo livro aqui resenhado; The Inklings: C.S. Lewis, J.R.R. Tolkien, Charles Williams and their friends (1978), e W.H. Auden: a Biography (1981), publicado no mesmo ano em que as Cartas de J.R.R. Tolkien, editadas por Carpenter com auxílio de Christopher Tolkien, são lançadas. Além do ofício de biógrafo, Carpenter era também um radialista experiente e, em seus anos finais – que foram breves por conta de uma embolia pulmonar, aliada a um renitente mal de Parkinson, que o vitimou aos 58 anos –, esteve à frente do programa Great Lives da BBC Radio 4, em que apresentou e discutiu um pouco da vida de George Elliot, Charles Dickens, Lord Byron, G. K. Chesterton, George Orwell, entre muitos outros. Vale destacar ainda a série de livros infantis de sua autoria, Mr. Majeika, e o trabalho realizado junto com sua esposa, Mari Prichard, em The Oxford Companion to Children’s Literature (1984).

Um ponto curioso e que distingue a presente edição da anterior, de 1992, e das edições em língua inglesa (possuo a de 2002 pela Harper UK) é a ausência de fotos. Tal fato se agrava sobretudo diante de um dos capítulos mais interessantes da obra: “Observando fotografias”.  Neste capítulo, Carpenter propõe um percurso imaginativo sobre um dia (a)típico na vida de Tolkien e no qual o leitor de O dom da amizade, de Colin Duriez, poderá encontrar uma espécie de embrião das “vinhetas” que abriam os capítulos deste último. A proposta de Carpenter nesse capítulo recusa a pretensão totalizante da explicatio para lançar múltiplos fachos luz em atividades rotineiras. A ida matinal a missa, por exemplo, faz-se índice de um comprometimento religioso profundo, herdado da mãe, cuja morte prematura infundiu-lhe “violentas oscilações de ânimo”, resultando em um caráter apaixonado, “incapaz de expressar uma opinião sem entusiasmo”, fato que se refrata na voz lépida e esbravejante que entoa o “Hwæt” inicial de Beowulf, na galofobia, na preferência pelos autores antigos e nas crises intermitentes de desesperança registradas amiúde nos diários. Vejamos outro exemplo: ao se deter sobre os instantâneos do Tolkien de meia-idade, o que mais parece chamar a atenção de Carpenter é justamente seu modo de vestir, composto por trajes “que são excepcionalmente comuns”. A partir desta constatação, Carpenter supõe que, em parte, os trajes indiciam “a necessidade de sustentar uma família grande com uma renda relativamente baixa, que não lhe permitia gastos pessoais extravagantes”. No entanto, a constrição econômica não explica tudo, pois há algo de marcadamente pessoal nessa escolha, manifesta em aversão ao dandismo – evidenciada de modo mais intenso no amigo C.S. Lewis –, afetação que lhe parecia pouco masculina. Um passo além e a recorrência dos paletós de tweed, calças de flanela (sempre passadas), sapatos marrons e óculos regulares permite vislumbrar o apego a certos “valores positivos, o seu amor por tudo que fosse moderado, sensato, discreto e inglês”. Entre opiniões efusivas e um guarda-roupa modesto, eis Tolkien: um viking de tweed bebendo cerveja artesanal.

A esta primeira observação sobre a simplicidade de vestuário acrescenta-se, pelo deslocamento espacial da mirada, uma nota sobre o aspecto ordinário dos cenários cristalizados nas fotografias. Ao contrário de outros escritores, Tolkien viajou muito pouco – fato que se deve, em parte e de novo, ao baixo orçamento –, ao que Carpenter rapidamente acrescenta que o ato de viajar nunca ocupou parte central em seus interesses, sobretudo “porque não tinha necessidade de estimular a imaginação com paisagens e culturas desconhecidas”, tendo já considerável estoque de “lembranças acumuladas” e buscando estímulo antes nos livros e no que considerava o seu “húmus”: a “matéria linguística”. O que poderia se resumir em um excesso criativo que compensa o sedentarismo cotidiano é desdobrado, em poucas páginas, no delineamento de uma visão de mundo. Embora não fosse era de todo indiferente aos lugares que habitava, não se pode dizer que Tolkien os escolhia, pois “eram simplesmente os lugares onde, por uma série de razões, ele ia parar”. A ausência de reação a tal wyrd (conceito da cultura anglo-saxã referente à ideia de destino pessoal), para usar uma palavra que o agradaria, diz antes, segundo Carpenter, da “crença de que vivemos em um mundo decaído”, pressuposto básico do cristianismo herdado da mãe, cuja perda prematura, assim como a destruição de sua dileta paisagem de Sarehole (a inspiração do Condado), afiguravam-se a seus olhos como prova imanente de uma (nem tão) lenta destruição de todas as coisas, vistas como temporárias, transitórias.

A ausência de fotos, que neste capítulo em especial poderia parecer um ônus, traz uma insuspeitada vantagem: a concentração absoluta no texto. E Carpenter não decepciona. Sua prosa é límpida e certeira, como se espera de um pesquisador dedicado envolto em toneladas de material altamente expressivo, mas ela se vê umedecida por um lirismo profundo, contido é verdade, mas que se permite alguns derramamentos que, longe de qualquer pieguismo, denotam antes um profundo amor pelo seu objeto em uma busca honesta por entendê-lo em sua verdadeira complexidade.  Não se trata de querer reduzir a obra à vida. Apesar de sempre interessantes, a multiplicação de fotos e outras formas de simulacro (que me parece ser o pior legado que as primeiras adaptações de Peter Jackson trouxeram, a despeito de sua inegável qualidade) acabam, muitas vezes, por afastar o leitor das palavras de Tolkien, que é o que verdadeiramente interessa.



Mais do que isso, “Observando fotografias” apenas torna explícito o método que estrutura o livro todo, em que o dado objetivo, seja uma foto, um manuscrito, uma memória relatada, deixa seu estado bruto para se incorporar gradualmente à estrutura da obra, lembrando que “as descrições dos eventos já constituem interpretações de sua natureza”2. A biografia é gênero anfíbio: caminha com um pé na história, nos fatos e eventos, enquanto o outro pervaga veredas mais sinuosas na costura destes mesmos fatos em uma prosa ordenada e coerente. Mas essa própria ordenação, a despeito de qualquer pretensão objetiva, carrega em si um poderoso germe ficcional. O biógrafo é, em essência, um narrador. O recurso à documentação – lembrando aqui a percuciente advertência de Hayden White de que “Os documentos históricos não são menos opacos do que os textos estudados pelo crítico literário” (idem) – jamais é válido por si mesmo, ganhando força pelo gesto compositivo, pelo alinhavar dos fatos em texto, recuperando aqui seu cerne etimológico de tecido.

Tempo e eternidade

Se a biografia de Carpenter nos parece um texto quase definitivo e ainda não superado, resta-nos buscar não tanto a complexa rede discursiva que a consagrou (o aceso privado aos documentos facultado pela família; o fato de ser publicado pela mesma editora que editava Tolkien à época e a que o faz hoje; seu importante trabalho com a correspondência do autor; a série sucessiva de trabalhos que lhe são tributários...) mas a “coerência da história”, isto é, “a adaptação dos ‘fatos’ às exigências da forma da estória”(idem). Um possível caminho para compreender a vita tolkieniana de Carpenter se dá pela tensão profusa entre permanência e mudança, que se desdobra em diversos níveis e, no limite, organiza-se no embate entre Providência e livre-arbítrio admiravelmente analisado por Tom Shippey em The Road to Middle-earth (1982).

A contingência, a ação de forças maiores e mesquinhas como o dinheiro nos parece indigno da vida de um autor de gênio. No entanto, não deixa de ser também algo que nos aproxima de sua humanidade: as interrupções constantes na realização de um projeto de vida, o desânimo diante do que parece inacabável, mesmo para ele; a progressiva falta de forças impostas pela velhice; o sentido agudo de isolamento, agravado pelas sucessivas perdas (dos amigos da T.C, B.S. ao dileto Lewis e, mais tarde, do amor de uma vida toda). De modo mais específico, poucas pessoas mudaram tanto de casa quanto Tolkien e sua família. Se não viveu em tantos lugares assim e pouco viajou, a permanência nesses lugares, sobretudo em Oxford, implicava mudanças constantes de domicílio, ainda que seja para a casa vizinha, como na passagem do n. 22 para o n. 20 da Northmoor Road, uma de suas casas mais icônicas. Sua animosa rejeição ao automóvel e ao motor de combustão significa quase sempre a conversão das garagens em improváveis escritórios/estúdios – e o leitor tem um pouco a sensação de que a extrema atenção e detalhismo da obra se contrapõe a uma vida em certa medida improvisada – ainda que pudesse contar com um emprego estável e de prestígio, mesmo que não tão bem remunerado assim, situação que só se remediará com o sucesso internacional da obra. Extrapolando um pouco, a obra, nunca acabada – e não seria esse não acabamento uma espécie de projeto? –, propiciava o sentido de permanência inalcançável na vida. No entanto, sua própria mitologia é marcada por um senso profundo de ruptura e desvelamento temporal, algo bastante forte na passagem da Terceira para a Quarta Era e o domínio dos homens em O senhor dos anéis, obra vincada por certo tom elegíaco que vai gradualmente impregnando a narrativa.

Toda obra literária contém em si um gérmen de imortalidade – e Tolkien diz não ser outro o cerne vivo de sua obra: “O verdadeiro tema para mim é sobre algo muito mais permanente e difícil [do que Poder e Dominação]: Morte e Imortalidade – o mistério do amor pelo mundo nos corações de uma raça ‘fadada’ a deixá-lo e aparentemente perdê-lo; a angústia nos corações de uma raça ‘fadada’ a não deixá-lo até que toda a história deste mundo estimulada pelo mal esteja completa.” Assim, a dedicação assídua e interminável aos ciscos de cada detalhe evidencia um prazer profundo do gesto criativo expresso habilmente no seu famoso conceito de subcriação que, levando em conta o inegável viés religioso, refere-se à forma que ele considerava mais elevada de participação em Deus. Diferente de Auden, Tolkien não queria que seus papéis fossem queimados; ansiava, antes, pela permanência destes e, em um vislumbre megalômano de uma ideia de arte próxima do Gesamtkunstwerk wagneriano, por sua continuidade a partir do trabalho de muitas mentes e mãos:

“Não ria! Mas, certa vez (minha crista caiu há muito tempo), tive a intenção de criar um corpo de lendas mais ou menos interligadas, que abrangesse desde o amplo e o cosmogônico até o nível do conto de fadas romântico – o maior apoiado no menor em contato com a terra, o menor sorvendo esplendor do vasto pano de fundo – que eu poderia dedicar simplesmente à Inglaterra, ao meu país. [...] Eu desenvolveria alguns dos grandes contos na sua plenitude e deixaria muitos apenas no projeto e esboçados. Os ciclos deveriam ligar-se a um todo majestoso e ainda assim deixar espaço para outras mentes e mãos, munidas de tinta, música e drama. Absurdo.”

Tolkien, de fato, realizou esse “absurdo”. Seja por projeto ou contingência, conseguiu dar uma forma mais ou menos acabada aos três grandes contos (Os filhos de Húrin, Beren e Lúthien e A queda de Gondolin), construiu o arcabouço cosmogônico que encontramos em O silmarillion e modelou o conto de fadas romântico, engastado no “esplendor do vasto de pano de fundo”, que lemos em O hobbit e O senhor dos anéis. Mas, também, deixou muita coisa esboçada e inacabada.

Parece-me, no entanto, que tal anseio de continuidade é infundado. Para além das mãos de Christopher Tolkien e de algumas contribuições de importantes tolkienistas como Verlyn Flieger (que editou A história de Kullervo, A balada de Aoutrou e Itroun, além de versões críticas de Ferreiro de Bosque Grande e Sobre estórias de fadas, este último em parceria com Douglas A. Anderson), não é possível vislumbrar a expansão desse universo como se deu, por exemplo com Star Wars, cuja definição propositalmente vaga dos elementos principais (o que é a força?) estimula o input externo – que pode ou não ser referendado em cânone, posição nunca de todo estável, como a Disney deixou bem claro – e, atualmente, vai de encontro ao dogmatismo radical de alguns fãs diante dos novos filmes, que seriam refratários de uma essência bem pouco discernível. No caso de Tolkien, não se trata de continuar sua mitologia, mas sim de tornar disponível ao público, em versões inteligíveis, o que ele mesmo compôs, sem esquecer, no entanto, que o todo o vasto cabedal de obras publicadas a partir de O silmarillion é, também, fruto de trabalho editorial.

Naquele primeiro encontro com Tolkien, Carpenter observa um aspecto fundamental da relação do autor com sua obra:

“Ele diz que tem que esclarecer uma evidente contradição em um trecho de O senhor dos anéis que um leitor apontou por carta e o assunto requer sua consideração urgente, visto que uma edição revista do livro está prestes a ir para o prelo. Ele explica tudo com riqueza de detalhes, falando sobre o livro não como uma obra de ficção, mas como uma crônica de fatos reais. Parece ver-se não como um autor que cometeu um pequeno erro, que agora precisa ser corrigido ou justificado, mas sim como um historiador que precisa lançar luz sobre um trecho obscuro de um documento histórico.” (grifos meus)

O que o biógrafo desvela aqui é o modus operandi da ficção tolkieniana em seu deslizamento entre ficção e realidade: a Terra-média é o nosso mundo, mas em uma época imaginária, de modo ser descabido falar em autor. No entanto, este, empiricamente existente, encampa sua ficção com raro nível de profundidade, reconhecendo-se como um subcriador que preenche imaginativamente os espaços disponíveis para depois inquirir sobre seu sentido: o que é um hobbit? Essa busca pelo sentido das coisas de sua própria lavra trai certo anseio moderno imanente ao romance como forma, sendo O senhor dos anéis, como propõe um crítico, um prolífico e fascinante espécime de romance épico ou, mais propriamente, de um “romance histórico de um mundo fictício4.

Posto de outro modo, eis um dos grandes paradoxos de sua obra: composta em artificiosas molduras que procuram indiciar uma origem mais remota e coletiva – daí a abismada observação de um articulista do The Guardian geralmente presente na quarta capa de O silmarillion: como pôde um homem, em pouco mais de sessenta anos, tornar-se o equivalente criativo de um povo? –, trata-se de obra incontinuável. Suas brechas, menos do que falhas, são indícios claros de verossimilhança: toda vida é feita de grandes narrativas rodeadas de estórias secundárias cujo efeito, muitas vezes, advém de seu bolsão imaginativo, e não de sua precisão factual, para retomar aqui a clássica distinção aristotélica da Poética. Assim, o anseio pelo apagamento da autoria trai uma unicidade de visão tão forte – e em cujo centro se encontra a consciência linguística como acicate das estórias – que a figura autoral torna-se inalienável. Ninguém escreve Imladris ou Nimrodel impunemente.

O grande mérito do texto de Carpenter – a despeito da canonização que o torna suspeito e refém dos interesses familiares, algo que também se aplica à sua organização das Cartas, em que o aspecto da edição é bastante evidente – é a atenção para detalhes miúdos que complexificam a vida do biografado aproximando-o de nós ao mesmo tempo em que postula uma diferença indevassável. A construção apaixonada de uma mitologia tem seus custos, e é a percepção aguda do biógrafo – que nisso cumpre os requisitos básicos do grande romancista – da liga orgânica entre a rotina (im)permanente e a obra inacabável, atravessada por fraturas familiares (a por vezes onerosa herança materna e os descompassos da vida a dois) e pessoais (o desânimo renitente e a evanescência do tempo) que faz do Tolkien de Carpenter tão vívido, humano e próximo, a meu ver  – com uma leve permuta verbal entre ‘ler’ e ‘escrever’ –, de um dos mais pungentes relatos sobre um professor universitário, o Stoner de John Williams:

“Sometimes, immersed in his books, there would come to him the awareness of all that he did not know, of all that he had not read; and the serenity for which he labored was shattered as he realized the little time he had in life to read so much, to learn what he had to know.”5 

A escrita de Tolkien, sem ser um antídoto impossível à “descontinuidade incessante” da vida moderna, alinha-se fortemente à percepção de escritores emergidos dos escombros da Guerra sobre a dissolução da experiência e de valores comunais, incluindo a própria possibilidade de compor estórias. Seu esforço criativo contínuo, seja no refinamento dos detalhes ou na gestação de novos fios narrativos, a despeito da inconstância da vida, parece-me uma lição fundamental, uma espécie humilde de resiliência que também nos cabe como leitores e que se encontra habilmente resumida por um fragilizado narrador de Guimarães Rosa: “Narrar é resistir”. Resistamos.

Notas:

1 CARPENTER, Humphrey. W. H. Auden: A Biography. Londres: Unwin Paperbacks, 1983. Tradução livre minha.

2 WHITE, Hayden. O texto histórico como artefato literário. In: Trópicos do discurso. Ensaios sobre a crítica da cultura. São Paulo: Edusp, 2014.

3 TOLKIEN, J.R.R. As cartas de J.R.R. Tolkien. Organização de Humphrey Carpenter com a assistência de Chistopher Tolkien. Tradução de Gabriel Oliva Brum. Curitiba: Arte e Letra Editora, 2006, p. 236.

4 ROSSI, Aparecido Donizete. O senhor dos anéis, o retorno da épica e o romance histórico no contexto da pós-modernidade. Revista Iluminart do IFSP, v. 1, n. 3, Sertãozinho, dez. 2009.

5 WILLIAMS, John. Stoner – A novel. Vintage Classics, 2012. Em tradução livre: Por vezes, imerso em seus livros, vinha até ele a consciência de tudo que não sabia, de tudo que não havia lido; e a serenidade pela qual laborara despedaçava-se uma vez percebido o pouco tempo que tinha em vida para ler tanto, para aprender o que devia saber.

Comentários

Unknown disse…
Guilherme,

Terminei ontem a leitura dessa biografia e, como fiz o caminho inverso (ainda não li O Senhor dos Anéis), confesso que precisava de mais material para sedimentar todas as informações que esse livro me trouxe. Seu texto foi de encontro a essa necessidade e, ao mesmo tempo, aumentou minha curiosidade, vontade, interesse e, por que não dizer, uma faísca de paixão por esse escritor. Deixo aqui, de antemão, o meu agradecimento.

A biografia de Humphrey Carpenter delineou muito bem o escritor X pessoa, o pai X professor, o marido X amigo. Porém, o leitor também tem que fazer uso da imaginação (assim como na obra ficcional), já que, como você mesmo elencou em seu texto, não há fotografias nessa edição. E confesso que, mais do que terminar o livro e sair dando um "google" para ver a fisionomia de Ronald Tolkien, queria ouvir sua voz: em várias passagens do livro, o autor fala de sua fala truncada, às vezes de difícil compreensão, mas que era carregada de conhecimento e astúcia. Sorte minha encontrar as entrevistas à BBC e poder me saciar.

Também senti falta de uma lista mais atual de tudo o que foi publicado por aqui e agradeço por poder ter esses novos livros agora, com um trabalho revisitado e revisado, de qualidade, em breve ao meu (nosso) dispor. Espero poder ler suas impressões de todos eles por aqui.

Marília

AS MAIS LIDAS DA SEMANA

Boletim Letras 360º #610

A poesia de Antonio Cicero

Mortes de intelectual

Boletim Letras 360º #600

Seis poemas de Rabindranath Tagore

Boletim Letras 360º #601