O que podemos pedir às primeiras páginas de um romance?

Por Natalia Chávez Gomes da Silva

Datiloscrito de Cem anos de solidão. Provas corrigidas por Gabriel García Márquez


Não existem fórmulas. Nem atalhos. Não existe “escrita for dummies”. Construir uma história requer algo mais que ter na mão algumas situações interessantes e definitivamente mais que um gatilho ou “boa fidelidade” para com o que conta. Não estamos competindo por atenção ou por amor, mas gestando e parindo um ente. As primeiras páginas de um romance não estão aí para vender ou para fazer amizades; não lhe pedimos isso.

Fisicamente, é verdade, por estar mais próxima à capa e porque lemos a partir da primeira página, esse trecho do livro sim tem uma missão “natural”: será o responsável de nos dizer o que interessa. Dirá que tanto o que nos permitirá saber e, como a autoridade que representa o ser na sua origem, deixará muito claro que não podemos pedir algo diferente do que já está nos dando.

O início do romance é um oráculo que responderá a perguntas como as seguintes: por quanto tempo é suficiente ficarmos diante – sobre, ou por trás – de cada personagem? Qual tom tem a voz que nos leva pelas ruas que não conhecemos e nos faz dedicar atenção a certas coisas dizendo “veja isso”, “veja aí”, “isso não existia antes, certo?”, enquanto vamos à procura de algo? Essa voz é grave, segura, arrastada, um sussurro? Conhece as ruas ou estamos sendo cegos juntos? Está nos levando pela mão ou está a uma prudente distância de nós para evitar uma incômoda e invasiva confiança que não deve existir se este é nosso primeiro, único e último encontro? Finalmente – ou não “finalmente”, mas no mesmo sentido no qual viajam todas essas dúvidas – de quem são estas palavras?

Essa é a pergunta que, segundo James Wood em Como funciona a ficção “aparece tão instintivamente como quando, num quarto às escuras, o braço se estende para frente e a mão se abre buscando uma parede que nos guie pelo tato e nos leve a uma saída, um interruptor, talvez ao alivio de saber que estamos num lugar familiar e que não nos materializamos de repente numa dimensão inexplicável do universo”1.

A seguir, apresentam-se breves e limitadas ilustrações da atividade de decifrar as vozes desde o começo de três romances que em nada se relacionam entre si, exceto que existem.

Em Imposto sobre a carne [tradução livre de Impuesto a la carne] (2010), Diamela Eltit nos apresenta a história através da voz de uma filha que sentiu quase por transmutação as profundíssimas dores de sua mãe, como se fossem uma mesma pessoa e como se as duas soubessem disso. De quem são essas palavras? De uma filha que fala por si, por sua mãe e por, talvez, se assim compreendermos por todas as mulheres. Uma filha que rememora coisas que seu corpo não viveu. É uma voz-espírito na qual confiaremos todas as situações da história que nos são apresentadas. A mãe é, possivelmente, a origem, a batida no tambor, mas o som que escutamos é a reverberação. São as ondas que se expandem para abarcar tudo o que acontecerá:

Nossa situação hospitalar foi tão incompreendida que a esperança de digitalizar uma minúscula impressão de nossa passagem (humana) nos parece uma aberta ingenuidade. Hoje, quando nosso ímpeto orgânico findou por fracassar, só conseguimos deixar alguns fragmentos do que foram nossas vidas. A de minha mãe e a minha. Morreremos de maneira impositiva porque o hospital nos destruiu duplicando cada um dos nossos males.

Adoeceu-nos de morte o hospital.

Aprisionou-nos.

Matou-nos.

A história nos infligiu uma punhalada pelas costas.

Desde que nascemos minha mãe e eu fomos maltratadas pelos médicos e seus admiradores. A internação se deu como a condição mais comum ou mais normal em nossas vidas. Recordo, com uma obsessão destrutiva, enquanto nos sentimos depreciadas e relegadas quando se desencadeou uma impressionante mania hospitalar fundada na paixão por acatar os sintomas mais desagradáveis das enfermidades. O costume de louvar e até glorificar as enfermidades (como parte de uma missão científica) marcou o clímax da medicina e coincidiu com nosso precário nascimento.

Logo a nação ou a pátria ou o país se colocaram contra nós.

De quem são as palavras em Os papéis de Aspern (1888) de Henry James? Ele nos coloca frente a um culto homem das letras numa certa época que não é a nossa. Este nos conta o que o levou ao lugar onde se encontra. Diz-nos o que disse a uma mulher sobre suas estratégias por um objetivo. Mostra-nos, orgulhoso, sua preparação, tudo o que sabe até o momento e as razões que justificam seu aparente desejo. O mapa está sobre a mesa, impecável, irretocável, virtuosamente desenhado. É uma primeira pessoa muito confiante e autossuficiente. Nós, inclinados sobre os planos, assistimos pacientemente sua explicação, atentos aos resultados operatórios.

Mrs. Prest nada sabia a respeito dos manuscritos mas minha curiosidade despertava-lhe interesse, como mereciam sempre interesse as alegrias e as tristezas dos seus amigos. No entanto, enquanto deslizávamos sob o toldo acolhedor da gôndola com janelas em movimento que enquadravam de um e outro lados a fascinante vista de Veneza, pude verificar como o meu grande entusiasmo, como o fato de esses manuscritos se terem feito para mim uma ideia fixa, a divertiam. “Dir-se-á que espera encontrar lá a resposta para o enigma do universo”, disse ela; e só neguei a sua acusação respondendo que, a ter de escolher entre essa preciosa resposta e um maço de cartas de Jeffrey Aspern, tinha a certeza de saber qual me parecia melhor dádiva. Fez um ar de quem não reconhecia importância ao seu gênio, e não me dei ao trabalho de o defender. Não há que defender o que é nosso deus: um deus defende-se a si próprio.2

Em Paradiso (1966) de José Lezama Lima, a voz é uma elástica terceira pessoa que agarra nossa cabeça para, às vezes, colocá-la sobre o ombro de alguém (o de Baldovina, no capítulo primeiro). Outras vezes, nos força até quase tocar com o nariz à ponta de seus dedos. Em ocasiões, a voz nos obriga a ficarmos noutro quarto. Penso no que disse Edgar Allan Poe: “a essência de todos os crimes fica irrelevada” e porque me fascina a frase obrigo uma relação com a Baldovina que começamos a conhecer e digo que, pelas condições da voz que narra em Paradiso, somos testemunhas – dos movimentos de Baldovina sem compreender os motivos. Vemo-la, mas ela não nos vê e, portanto, não tem por que nos dá explicações. Observamo-la observar.

Baldovina voltava com o álcool e a estopa, empunhados à falta de algodão. Estava novamente diante da criança, que continuava arquejando e fortalecendo em cor e relevo seus víbices. Depois da meia-noite, como dissemos, todas as casas do acampamento ficavam às escuras e só permanecia acesos os postos fixos e as lanternas de ronda. Ao ver como a casa toda escurecia, Baldovina teve ímpetos de correr até o posto que cobria a frente da casa, mas não quis afrontar, a essa hora, sua solidão com a do soldado sentinela. Conseguiu acender a vela do candelabro e observou sua sombra desgrenhada dançando nas paredes, mas o menino continuava sozinho, obscurecido e sem fôlego. A estopa embebida em álcool começou a pingar sobre o pequeno corpo, sobre os lençóis, e já encharcava o chão. Então Baldovina substituiu a estopa por um jornal abandonado sobre a mesa de cabeceira. E começou a friccionar o corpo, primeiro de forma circular, mas depois com fúria, às borradelas, como se toda vez que surgisse um víbice ela lhe aplicasse pranchadas mágicas de uma espada embebida em álcool. Depois retrocedia e continuava, situando o candelabro a pequena distância da pele, comprovando seus ataques e contra-ataques e seus resultados quase nulos.3

Ao mesmo tempo que prometem coisas, as primeiras páginas descartam possibilidades. Vão tomando corpo até que são uma correnteza com força própria. As histórias avançam a partir daí, pois, ampliando-se, aprofundando-se, até tornarem-se em mares, inundações, piscinas, pântanos, bacias onde se colocam os pés para abrandar as fadigas. Grandiosas ou esquecíveis, a depender de como se olhe para elas.

As primeiras páginas não existem para seduzir e prendermo-nos a elas, porque são apenas uma parte de um aparato de características muito específicas, com funções e capacidades próprias. Não encontraremos crocodilos no ártico. Nem cabem baleias num tanque. Cada romance nos dá o que contém e podemos recebê-lo ou, melhor, ir buscar o que necessitamos noutro lugar: no próximo livro na prateleira.


Notas
1 Este excerto é tradução direta do espanhol cf. o texto original, tal como o excerto seguinte do romance de Diamela Eltit.

2 Tradução de Aníbal Fernandes. Por Cristian Vázquez.

3 Tradução de Josely Vianna Baptista.

Ligações a esta post:

* Este texto é uma tradução de “¿Qué podemos pedirle a las primeras páginas de una novela?” publicado na revista Letras Libres.

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