O livro da vida de Virginia Woolf
Por Winston Manrique Sabogal
Vinte e seis
anos antes de Virginia Woolf se afogar nas águas frias do Rio Ouse, em 1941,
publicou seu primeiro romance em que a vida da protagonista termina de forma
prematura, ao mesmo tempo que avança seu renovador e magistral futuro
literário. Era 26 de março de 1915, e o romance premonitório
intitulado A viagem. A partir daí começou sua
contagem regressiva, não só ao contar a história da jovem Rachel Vinrace, em
que ela criticou o mundo da época, quebrou os esquemas narrativos e também colocou
em livro o que foi e haveria de ser sua vida, sua concepção de si e suas últimas
horas.
A viagem então é uma entrada biográfica
e literária a Virginia Woolf e da qual irradiam conexões entre o romance e os
últimos dias da escritora: as dos acontecimentos que sucedem quase ao começo da
Primeira e da Segunda Guerra Mundial, respectivamente. Ambos estão precedidos
por irrupções psicóticas da narradora e ensaísta; a protagonista quer desligar-se
da herança vitoriana e reivindica os direitos da mulher, enquanto na vida real,
Woolf, com 59 anos, já é reconhecida por tudo isso e enfrenta um mundo
insuspeito de mudanças vertiginosas; é nessa história em que aparece Mrs Dalloway,
uma das senhas para a identidade da escritora inglesa; no romance, o amor é uma descoberta,
oscilante, que se tenta descrever, algo sobre o qual Virginia Woolf insistiu de
maneira infrutífera. Bom, e isso é apenas a primeira largada entre sua
obra-prima e seu adeus.
Vinte e seis
anos separam esses dois momentos conectados por um relâmpago que ilumina tudo o
que a vista alcança nas mais de nove centenas de páginas redigidas por Irene Chikiar
Bauer em Virginia Woolf. A vida por escrito.
Esta foi a primeira grande biografia em língua espanhola de uma das escritoras
mais influentes do século XX e que desde o início quis romper com os esquemas
narrativos e dar voz à Voz, como a água que corre e sempre encontra uma saída. Falam por
ela Mrs Dalloway, Ao farol, Orlando, As ondas, Um teto todo seu.
E aqui, Chikiar
Bauer, jornalista e escritora argentina, reconstrói essa existência e mostra o
ir e vir entre realidade e ficção. Virginia Woolf, diz a biógrafa, utilizou
experiências de sua vida em seus livros, mas, precisamente, não se pode
“afirmar que a sua literatura seja uma literatura autobiográfica ou de autoficção,
embora ao contar com todo o material autobiográfico do qual dispomos, suas cartas,
seus diários pessoais, ensaios e memórias, vejamos que a temática de sua
literatura tem a ver com questões que diziam sobre si”.
É a felicidade
partida.
Foram sete
anos de trabalho o da jornalista resumidos numa obra dividida em duas partes:
uma que recolhe os 22 anos iniciais de Virginia Woolf até à morte e seu pai em 1904 (período
quando nascem seus demônios, para bem e para mal, e que a perturbam: o pai na
torre de marfim, a mãe vigilante, sua irmã Vanessa, pintora, e a sombra do incesto
por culpa de um de seus irmãos postiços). A segunda parte é o restante da vida
da escritora, ano a ano. Supõe uma entrada ao universo Virginia Woolf, que
transita entre as pegadas da Era Vitoriana e as das duas guerras mundiais e,
pelo meio, o mundo que se abre ao modernismo e com o qual ela própria contribui
com sua literatura ou grupos como de Bloomsbury. Como colofão, sua vida em
fotografias.
Quase tudo e
toda ela está em A viagem. É como o
livro da vida de sua vida, escrito 26 anos antes de morrer, e que Irene Chikiar
reconstrói: “Ela começou no verão de 1907 e enviou à editora em 1913, até ser
publicado em 26 de março de 1915. Buscou, como em seus principais livros,
experimentar maneiras menos convencionais de tratar a narrativa e as
personagens, o que lhe requeria sair dos cânones estabelecidos. Pode-se dizer
que A viagem reflete as preocupações
de Virginia Woolf durante sua adolescência e primeira juventude, sendo centrais
questões como as dificuldades nas relações entre homens e mulheres jovens, a
ignorância sexual e o lugar na sociedade que ocupavam as jovens de sua classe,
inclusive o efeito da morte prematura da mãe”. Já nessa obra assinala a
necessidade de um quarto próprio para a protagonista, “onde pode ouvir música,
ler, meditar, desafiar o mundo, quarto que podia converter-se em fortaleza e
santuário”.
E assim fez
ela própria até o fim, sem deixar de trabalhar os temas que a conectaram com A viagem. Na história de Rachel, o amor
e a felicidade, sua busca com o jovem Terence Hewet, é frustrada, e “a questão
sexual não se aborda”, enquanto a escritora e Leonard sim se casaram, mas
levaram uma vida sentimental singular onde, tanto no romance como na realidade,
o amor vai mais além do terreno e sua realização está impregnada de um ar de
impossibilidade; a atração homoerótica parece pairar ao redor da jovem
protagonista e se concretiza em torno de sua autora. Rachel adoece e morre
prematuramente, enquanto a escritora se mata. Depois da morte das duas,
enquanto no romance se diz “Nunca duas pessoas foram tão felizes como fomos
nós. Ninguém amou nunca como amamos um ao outro”, no mundo real, Virginia Woolf
deixou uma carta a seu marido cujas últimas palavras são “Não acredito que duas
pessoas puderam ser mais felizes do que fomos você e eu”.
E tudo aconteceu
numa sexta-feira. Uma sexta-feira 26 de março de 1915 Virginia Woolf deu a conhecer
seu mundo literário em A viagem e
numa sexta-feira, 26 anos depois, ela disse adeus.
Virginia
Woolf em seus romances
Irene Chikiar
Bauer conta que a escritora inglesa emprestou sua vida a quatro de seus romances
mais emblemáticos e por isso os escreveu. Ao
farol (1927), romance-chave do modernismo e reafirmação de sua autora no
âmbito do cânone do século XX, e que é, talvez, sua obra mais autobiográfica
não está incluída nesta lista, precisamente porque é das que mais se pode falar
sobre tal relação. Lembranças da infância e manipulação do tempo resumidos pela
biógrafa em Virginia Woolf. A vida por escrito:
“As ideias e visões de Ao farol convocavam
emoções associadas às memórias de seus pais e de sua própria infância e evocavam
os verões em St. Ives e toda a força dessa realidade perdida. Enquanto escrevia,
Virginia chamava o passado e o fixava em palavras”.
Mrs Dalloway (1925). “Neste romance, o
preferido de muitos leitores, quis ‘mostrar o indescritível da alma’, mas
também, enquanto o escrevia, sentiu que tinha muitas ideias, queria ‘dar vida e
morte, cordialidade e loucura’, ‘criticar o sistema social e mostrá-lo em funcionamento,
em sua forma mais intensa’. Em Mrs
Dalloway rascunhou um estudo da loucura e do suicídio: ‘O mundo visto por
sãos e loucos, lado a lado’. Aqui gravou experiências de suas próprias
enfermidades e transtornos psíquicos (na personagem de Séptimus, um soldado que
sofre stress post traumático e se
mata depois de uma irrupção de loucura), também refletiu sobre a condição das
mulheres da época em Clarissa Dalloway, sua filha, a governanta, ou Sally, a
amiga de juventude de Clarissa. As dificuldades da relação entre homens e
mulheres está presente nesse livro, o mesmo que seu amor pela cidade de
Londres, ou a devastação que produz a guerra, uma problemática sobre a qual trata
em quase todos os seus romances.
Talvez, uma
das questões que ela considerou mais importante é que nesta obra conseguiu uma
grande ‘descoberta’, um método que lhe permitiu escavar ‘belíssimas cavernas’
detrás de suas personagens, conseguindo ‘humanidade, humor, profundidade’. De
alguma maneira, Clarissa Dalloway atua como duplo de Virginia Woolf; mostra o
que poderia ter sido ela, se a rebeldia em relação às normas, sua consciência
humanitária e a paixão pela literatura não tivessem sido interferidas pelo
destino vitoriano que havia traçado seus pais e a época em que nasceu”.
Orlando (1928): “Quis escrever Orlando num estilo zombeteiro, claro e
sensível, de modo que as pessoas entendessem o romance. O livro, em homenagem à
sua amiga e ocasional amante Vita Sackville-West, devia ter um cuidadoso
equilíbrio entre verdade (fatos) e fantasia (ficção). Mas Orlando é mais que um exercício brilhante e libertador. Graças a
este romance a autora conseguiu sobrepor-se a Vita, a recriou, e através dela
talvez reelaborou os ciúmes que provocavam suas relações com outras mulheres.
Além disso, graças a Orlando,
expressou, em chave literária, a liberdade sexual que caracterizava os
integrantes do grupo de Bloomsbury. Além da biografia ficcional de Vita, no
livro também se reconhecem versões satíricas de amigos, parentes e mesmo a
própria Virginia Woolf já que recria aspectos de sua própria experiência como
escritora, aborda as problemáticas de gênero e alude a bissexualidade de Vita e
a questões da identidade ao explicitar que em Orlando, ‘a mudança de sexo modificava seu futuro’, não sua
identidade’.”
As ondas (1931): “Aqui fez confluir sua
introspecção e aventura estética e justifica sua tendência, sempre presente em
seus diários íntimos, de voltar ao passado para entender o presente e
projetar-se para o futuro. A partir de um ponto de vista autobiográfico, explicou As ondas como uma tentativa de plasmar
uma visão ou estado mental que teve quando terminava Ao farol, seu romance anterior, sentindo-se muito miserável e
experimentando a ‘dor fisicamente como uma dolorosa onda que caía sobre o coração’.
Também havia desejado expressar certas visões: ‘O lado místico da solidão’. As ondas é um livro de maturidade, onde
recria os ‘momentos de vida’, que tanto lhe haviam comovido quando criança; como
a vez em que não pode pular numa ‘poça d’água na trilha’, porque ‘tudo de repente
foi irreal [...] o mundo inteiro se tornou irreal’. Neste romance quis
expressar ‘a ideia de uma corrente contínua, não só de pensamento humano’ mas
da infância, embora deixando claro que não se trataria de sua própria infância.
Em polifonia, alternam os solilóquios de seis personagens que se conhecem desde
pequenos e que conservaram sua amizade ao longo de suas vidas. Uma sétima personagem,
que as demais evocam, tem claras analogias com Thoby, o irmão que morreu quando
jovem. Ainda assim, características das personagens se podem associar às da
própria Virginia Woolf, de seu marido, Leonard Woolf, sua irmã Vanessa, e
outros integrantes de Bloomsbury.”
Entre atos (1941): Tanto Three Guineas
(1938) pode se considerar um libelo pacifista, como em seus últimos romances, Os anos (1937) e Entre atos, a referência à Segunda Guerra Mundial é inegável. Uma
Europa ‘levantada de canhões, coberta de aviões’ marca o último romance de
Virginia Woolf. No livro se mostra o registro da vida social de uma aldeia inglesa.
O tema tem por fim seu objetivo de relacionar as vidas de seus protagonistas com
a maior parte da história do país; e se há uma pequena cena que tem lugar a
noite anterior, a história se desenvolve durante o transcurso do dia seguinte, com
os preparativos e finalmente a representação teatral organizada anualmente
pelos do vilarejo para juntar fundos para instalar luz elétrica na igreja do
povoado. A obra conta com um público que inclui a pequena nobreza, a alta
burguesia e os aldeãos, que além de ver a obra compartilham um refresco. Durante
os últimos anos de sua vida, marcada pela guerra e sem poder retornar a Londres,
Virginia Woolf conviveu muito de perto com a gente de Rodmell, onde tinha sua casa
de campo. Pode-se dizer que em Entre atos,
recriou muitas de suas preocupações e temas que a guerra reatualizava: seu amor
pela Inglaterra, seu particular patriotismo ligado à tradição literária e à paisagem inglesa, seus pensamentos sobre a vida individual e coletiva, seus medos
associados à guerra. Também se refere à sua ideia da impossibilidade de comunicação,
embora entre pessoas que se amam. De fato, as personagens se unem e se separam consciente
ou inconscientemente, guiados por afinidades eletivas diversas, reprovações a atrações
que vão desenhando constelações que as unem, as resgatam, ao menos momentaneamente,
de seu isolamento. As diferenças de classe, gerações, sexuais e mesmo ideológicas
atuam como forças de atração e repulsão que afetam aos indivíduos, isolados de
seu próprio universo.
Além de inovar
no estilo, Virginia tentava indagar uma problemática de amplo espectro e que
abarcava desde temas sobre o futuro da civilização, a outros especificamente
literários como a relação entre o autor e seu público e os modos de representação,
para chegar a questões de ordem quase metafísica”.
* Este texto
é uma tradução de “El libro de la vida de Virginia Woolf” publicado no jornal El País.
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