O “Jogo do Senhor e do Servo”, de Paulo Leminski, na visão de Serguei Eisenstein
Por Wagner Silva Gomes
Paulo Leminski (reprodução) para um artigo sobre o Zen (1977) |
No “Jogo do Senhor e do Servo”, poema criado por Paulo Leminski, o
olhar do senhor sobre o servo é a própria autonomia, sua margem de emancipação,
que o senhor vai adquirindo quando se vê humildemente como servo, aprendiz, em
busca do êxtase da apreensão do conhecimento ou da sabedoria contida na relação
com o outro; ao viver e entender o estado de ser relativo, vai então dominando a perda
do absoluto até tornar-se o próprio estado de ser senhor, feito de autonomia e
emancipação, numa dinâmica infinita da liberdade e seus pequenos pontos, suas
pequenas percepções dos lugares, os pequenos olhares fundantes.
Nessa história de um mestre zen do poeta, o budista é um engenheiro das almas
que domina a engenharia ocular como servo e senhor. Como Eisenstein que,
estudante de engenharia e aluno de Levkuleshov, professor da Escola de Filme de
Moscou (VGIK), ao ver no experimento do mestre que um plano cinematográfico só
tem sentido ligado ao posterior, vislumbrou, da relação entre aluno e professor,
a montagem intelectual, partindo do estudo do japonês, de seu conhecimento dos
ideogramas do idioma kanji, onde menino + árvore = descanso, relacionou a
mudança de plano ao produto resultante do homem + trabalho = bem-estar. Visto
que o homem cria seu estado de bem-estar através da transformação da natureza,
o professor como Árvore (senhor) tinha o conteúdo Eisenstein (servo), sua
própria natureza, nele o aluno brotou semente (senhor) e se expandiu em
ideogramas (a passagem da transformação do servo em senhor).
Se o pai foi do exército czarista, Eisenstein foi do exército vermelho; com
isso, nem de perto, quanto mais de longe, a lógica entre senhor e servo para
esse cineasta seria coisa simples. O pai reverenciava o senhor czar, o filho
via-se como a parte que o senhor apropriava, viu-se então como senhor de si,
todos os trabalhadores dentro de um todo, onde o valor-de-uso, de tudo que é
feito para ser usado, seria usufruído pelo próprio trabalhador, senhor do seu
trabalho, servo e senhor da vida. E nenhum direito seria dado a outro para que
pudesse trocar esse usufruto que é de cada ser e o outro que valha do seu
estado de homem + trabalho = bem-estar.
O cineasta conduziria o olhar com foco no conflito permanente entre personagem
e cena, e a sugestão de uma vida onde não existe passividade, porque é o mundo
do trabalho do trabalhador, com seu desfrute ou sua opressão. Se tem um cristal
entre a alma e a mente, citando a filosofia das artes marciais do oriente, esse
cristal é a lente da dialética marxista, nela a tese será igual a antítese,
porque a síntese nunca será negativa, a lente nunca vai terminar embaçada, a
síntese será sempre positiva, o pensamento será sempre claro, mas sempre
sugestivo porque o trabalho não para, se o trabalhador termina, tem o descanso,
o sol a bater, tem quem vai usar o fruto
do trabalho ou quem o vai querer adulterar, em chuva, podendo fazer dela uma
lama e encobrir a lente.
Em conformidade com a descendência judia, descendente de judeus-alemães e
suecos, nascido na Letônia, anos depois indo morar na Rússia com os pais,
pode-se dizer que Eisenstein sintetizou em suas lentes os aprendizados de
Einstein (o efeito fotoelétrico da energia em quanta, resultante das imagens),
de Freud (os direcionamentos aos atos falhos do olhar) e de Marx (o comunismo).
Em seu plano sequência há a preocupação física com a profundidade, com a
escala, com a montagem métrica. Em O encouraçado de Potemkin (1925),
o carrinho de bebê que desce em velocidade a escadaria, juntamente com as
pessoas caídas pelos degraus em desespero, dão uma visão desproporcional da
força do carrinho (que se mostra grande) com um ser minúsculo diante de tanta
gente grande que se mostra pequena, já que não pode socorrer aquela vida. É
como o império trata as famílias (mostra Einstein): filhos em perigo,
fragilizados pelo trabalho e o pouco bem-estar, e os trabalhadores adultos impossibilitados
de fazer algo por eles. A força czarista se valia dessa ilusão que
impossibilitava o trabalhador adulto ver pelo olhar de seu filho, algo
monstruoso que o atropelaria no futuro por uma relação partida sem que um nunca
visse através da lente do outro em uma troca saudável de experiências.
Na mudança de plano do mesmo filme há a preocupação psicológica freudiana, que
procura trazer os símbolos para a realidade, como na emblemática passagem da
estátua de leão, uma dormindo, uma acordando e a outra rugindo, simbolizando
assim a luta do povo contra o império czarista.
Serguei
Eisenstein foi um senhor de si, um diretor cinematográfico que criou com sua capacidade
intelectual, sua habilidade de montagem e seu olhar apurado, algumas das
grandes realizações do século XIX, no nível dos saberes, da política e da
percepção humana no geral.
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