O anel do general, de Selma Lagerlöf
Por Pedro Fernandes
“Tinham se
embebido de medo de malfeitores com o leite de suas mães; tinham sido ninados
até dormir com cantigas sobre bandidos. Consideravam todos os ladrões e
assassinos como abominações e demônios, que não deviam mais ser considerados seres
humanos. Não achavam necessário lhes mostrar qualquer compaixão” – a reflexão é
do narrador de O anel do general na
altura em que acompanha, pelo levantamento dos ânimos do pequeno povoado de Broby,
o julgamento de três acusados de assassinato de um jovem para o roubo da peça
de extrema valia que ocupa do título ao núcleo principal da narrativa. O excerto
é trazido aqui porque justifica em parte uma compreensão dos elementos
motivadores da obra. Noutra passagem, como se num arroubo metanarrativo, o
narrador interpõe: “A caneta cai de minhas mãos. Não é inútil tentar escrever
essas coisas? Essa história me foi contada ao crepúsculo à luz de uma fogueira”.
Selma Lagerlöf
é, por assim dizer, quem se embebeu e foi embalada pelas histórias de seu povo e
delas forjou alguns dos motivos de suas obras; no caso dessa novela, não são as
narrativas sobre malfeitores e sim sobre fantasmas, cuja gênese remonta a um
mistério ora tornado preocupação ora reflexão universal desde sempre – a morte.
O que pode ser uma boa morte, o que se passa, se existe, no mundo além, qual a
relação dos vivos com os que se foram e o contrário, quais os significados de existir
e não mais existir, entre outras questões, têm servido de maneira muito rica ao
imaginário popular. Muitíssimo do que corre no interior da tradição oral, inclusive,
circula de maneira diversa no mundo inteiro, atestando, o que é afinal, a
universalidade das inquietações humanas.
Se as
histórias de fantasmas determinam a base narrativa de O anel do general, elas não constituem, mesmo que aí se apresentem,
o seu tema principal como é noutras situações da obra de Lagerlöf: o seu romance
que deu origem a várias adaptações cinematográficas, O cocheiro da morte, por exemplo. A novela motivo destas notas, por
sua vez, encontra raízes nos valores que as histórias da tradição oral popular
tratavam de veicular; nesse caso, a natureza da ambição humana, bem como suas consequências,
e a necessidade do respeito para com a memória dos mortos. Todo imbróglio narrativo
se reveste do tom fabular para contar uma história de exemplo. Isto é, se no
romance antes citado é a lenda escandinava segundo a qual o último homem a morrer
no último dia do ano torna-se o cocheiro predestinado da Morte, nesta novela, se
recorta uma das muitas histórias associadas a um tal General Löwensköld.
Feito homem
de grande importância, ao menos aos seus olhos, para o Rei Carlos XII, o
general recebera como súdito um anel de grande valia pelos feitos durante os
tempos de guerra e decide, pouco antes da sua morte, que seja sepultado com o
objeto – uma maneira de ser reconhecido no reino eterno pelo monarca que o
distinguiu. Tornado figura de histórias variadas, todas que reforçam o caráter benevolente,
o espírito guerreiro e vitorioso, a força e o valor da joia que levou consigo
para o túmulo, Bengt passa a ser não apenas uma figura mítica entre os da região,
mas cobiçada. O anel, logo, só durará em sua mão o tempo necessário de se
apresentar a ocasião que faz o ladrão.
E a ocasião é
dada meses depois, quando o mausoléu do general é aberto para receber o esquife
da neta; um fazendeiro de Olsby, Bård Bårdsson, que participa dos rituais fúnebres
da pequena descobre sobre a inoperância da segurança dos Löwensköld, que o
mausoléu ficará aberto durante toda a noite porque sendo domingo nenhum trabalhador
deixará seu descanso sagrado pelo trabalho. A situação leva a personagem a se
sentir tomada de inquietação pela joia que jaz com o general. Da inquietação à obsessão
logo transmitida para sua mulher, e da obsessão à ambição, o roubo do anel pelo
casal de Olsby inaugura o mito pós-morte de Bengt: da sua condição de alma vingativa
à de fantasma em desassossego entre os da sua propriedade.
A novela de
Selma Lagerlöf é magistralmente bem construída. O enredo é, da investigação ao périplo
do anel entre os ambiciosos ou tomados por certa força sedutora e destrutiva da
joia, constituído por um conjunto aparentemente diverso de narrativas intercaladas
por momentos de reflexão do próprio narrador que engendra paisagens nostálgicas
sobre um tempo ora perdido na memória ora refigurado pelas tintas da fabulação
e reflexões sobre as histórias aí engendradas. Tal como se passa na realidade do
narrado, o anel aparece e desaparece nas camadas do texto, o que, tal como nos
romances policiais, induz a curiosidade do leitor para descobrir os rastros de
sua presença.
Apesar da
linearidade temporal, as narrativas estão desenvolvidas em torno do roubo do
anel do general, as situações estão em unidades de tempo bastante distintas – começam
em março de 1741 e arrastam-se até à terceira e quarta geração das personagens;
a joia atravessa assim um tempo caracterizado pela crendice popular que deposita
no sobrenatural uma resposta para as situações cotidianas ao tempo de apagamento
do senso-comum pelo ceticismo da pura razão.
Quer dizer,
de alguma maneira O anel do general
recupera nossa própria história do pensamento, do pecado original – a tentação
aos Bårdsson remete-nos à de Adão e Eva que resulta na expulsão do casal genesíaco
do paraíso – à discussão ética, da lei e do direito, patente na pergunta de Bård
ante o interesse em pegar a joia do general: “que mal pode haver em tirar de um
morto algo que ele não quer?”. Nesse ínterim o leitor assiste da vingança
maligna de um espírito ensandecido pelo roubo capaz de ações que destroem a pacata
vida dos ladrões à transformação de Bengt Löwensköld numa alma penada cuja
presença não causa nenhum espanto aos habitantes de Hedeby.
Em toda
parte, a ambição se faz o tema principal nesta novela. Dos Bårdsson, quem primeiro
dedicam-se a explorar a ocasião propícia ao roubo e levam consigo o anel do general
ao próprio comportamento do capitão Löwensköld; seu pai, no passado ambicionara
o reconhecimento da corte e o alcança depois de muito esforço, mais tarde, o
filho não afeito às honras do pai almeja construir outro lugar no qual prevaleça
sua figura. Aqui acontece algo importante de apresentar, antes do fim deste texto.
Acompanhamos
duas faces da mesma personagem: o capitão, apesar de deitar vista grossa para o
passado heroico da família, não consegue o tal lugar de destaque apenas pelo
discurso de que no seu tempo as preocupações são outras. São as histórias do
avô – aumentadas ou não – as que dominam o pensamento e o interesse dos filhos.
Tomado por certo ciúme, a natureza dessa personagem sofre então uma
transformação; do ideal pacificador passa ao do guerreiro-vingativo quando é tomado
pelo agravante sempre desprezado do roubo do anel de seu pai. E é para inventariar
uma imagem heroica que emprega toda força e energia em recuperar a joia. O
mesmo também se passa no além: o general, até então sempre benevolente com os
seus precisará o medo arcaico aos de casa para que seu objeto de consolo
retorne ao lugar de sua pertença.
Isto é, estamos
inseridos numa zona de variações, cujo enredo fabular não se resume apenas ao
encadeamento crime, punição, arrependimento e recompensa. Tampouco no jogo de
oposições bem / mal. Selma Lagerlöf mostra-se interessada em compreender a
natureza humana a partir de seu interior, estabelecendo como justificativa que
esta é, desde a origem dos tempos (e depois dele, ironicamente), penosamente marcada
pela inconformidade e a ânsia de poder. Nesse ínterim, é que se determinam as compreensões
de cariz empírico e mítico sobre a ordem das existências qual se apresenta nas
narrativas populares, a fonte de criação da escritora sueca.
As
semelhanças, entretanto, param por aí. Sabedora de que a toda história oral de
uma boca a outra se aumenta um ponto, Selma acrescenta que não tem a literatura
o objetivo de simular um felizes-para-sempre ou mesmo imiscuir o medo e a determinação
pedagógica nos leitores. Apropria-se da arte de contar bem uma história (fato inegável
à tradição) para determinar que o caráter da literatura – se há algum – é do entretenimento.
Voltemos ao segundo excerto apresentado na abertura deste texto a fim de concluir
as considerações do narrador, que reafirmam os dizeres agora apresentados:
“Ainda posso
ouvir a voz convincente, consigo sentir o calafrio percorrendo minha espinha –
o pequeno tremor não tanto de medo quanto de expectativa.
Com que ansiedade
ouvíamos a história, pois parecia erguer um cantinho do véu que esconde o desconhecido.
Que estranha sensação permanecia conosco, como se uma porta tivesse sido
aberta, e agora, por fim, algo surgia daquela grande obscuridade!
Quanta verdade há nisso? Cada narrador herdou a história de seu antecessor; um
acrescentou um pouco, outro tirou um pouco. Mas não contém, pelo menos, uma pequena
semente da verdade? Não dá a impressão de descrever algo que realmente aconteceu?”
Essa compreensão
não pode ser confundida com a ideia de passatempo ou de conforto ao espírito, mas
de exercício criativo da imaginação e retirada do leitor para um território de
inquietação. Mas isso é a principal das coisas que um leitor espera de toda boa
literatura.
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