Naipaul no mundo
Por Antonio Muñoz Molina
Um acontecimento
simples bem contado adquire por conta própria uma qualidade de símbolo. Não é
um adorno literário: é um achado cognitivo. O símbolo sintetiza e explica o real,
à maneira de uma equação ou de uma fórmula química. Um acontecimento assim está
no coração de O enigma da chegada,
que é já em si uma síntese de toda a literatura de V. S. Naipaul, de sua ideia
de mundo e de si mesmo, da origem de sua vocação literária e o processo difícil
de autoconhecimento sem o qual não é possível a aprendizagem do ofício. No romance,
que só o é até certo ponto, o jovem Naipaul começou enfim uma viagem que o levará
de Trinidad à Inglaterra, da periferia semicolonial à metrópole. Será uma
viagem longa e difícil para o estudante que não sabe nada sobre o mundo, que
viveu a partida com uma mistura de exaltação e de pânico. A despedida da
família foi gratificante, sufocante em sua vagareza e em sua espessura
sentimental para o jovem impaciente por desprender-se da opressão da família. O avião decola e quando ganha altitude Naipaul
olha pela janela e vê o que até agora não havia visto antes. Os contornos do
território a que alguém pertence só se tornam visíveis ao abandoná-lo.
Tudo o que
Naipaul escreveu ao longo de trinta anos de fertilidade incomparável tem a ver com
essa primeira viagem, com essa ambição de olhar à janela do mundo e essa descoberta
do que deixou para trás. Sua própria vida lhe deu o símbolo em que se condensa
toda a riqueza e a amplitude de um espaço narrativo que é intimamente seu e que
abarca a geografia de vários continentes, a história da expansão imperialista da
Europa, as turbulências e os fracassos do mundo que os colonizadores deixaram
depois de séculos de exploração despótica, numa retirada tão atropelada e tão
irresponsável como havia sido a conquista.
Por isso, Naipaul é um escritor
político, inclusive quando conta histórias sobre sua família e sobre sua
própria vocação, e é autobiográfico quando ao buscar as origens da calamidade
pós-colonial remonta às viagens de Cristóvão Colombo e às de Sir Walter
Raleigh, à conjunção de ganância e fantasmagoria delirante que animava no século
XVI os conquistadores a dedicar a vida buscando o Eldorado ou a Fonte da Eterna
Juventude. No jovem Naipaul está a melancolia do adolescente de província que
alimenta como pode sua vocação precoce numa comunidade que lhe parece fechada e
hostil, muito distante do esplendor das capitais das quais vêm os livros que lê
e nas quais imagina que acontece a literatura. A distância geográfica não tem
porque ser demasiado grande.
Entrevistei uma vez Don DeLillo, que havia nascido
numa família trabalhadora italiana do Bronx, e me contou que para ele Manhattan,
o lugar da literatura, lhe parecia tão remota como Paris embora estivesse a umas
quantas paradas de metrô de seu bairro. A província de Naipaul estava mais distante
todavia porque era uma ilha sem passado nem consistência social ou econômica,
sem possibilidade de uma tradição na qual poderia ter sido educado. O passado
das populações indígenas, pela matança indiscriminada e pelas epidemias, havia sido apagado sem deixar pegadas. As paisagens da ilha haviam sofrido uma extinção semelhante,
ao serem arrasadas para converter todo o território numa vasta plantação de cana-de-açúcar.
Escravos de África e, depois do fim da escravidão, trabalhadores trazidos da Índia
para o cultivo da cana e produção do açúcar à serviço de proprietários europeus
que não tinham outro vínculo com a terra em que viviam se não o da extração sem
comedimentos do máximo benefício.
Em sua
província submissa e opressiva, o aspirante a rebelde quer fazer borrão e nova conta,
romper com suas raízes: Naipaul, o jovem colonial, membro de uma família de emigrantes
indígenas que seguem sendo estrangeiros ao cabo das gerações, não pode
apoiar-se mais que em sua própria obstinação, e como vem de um território culturalmente
devastado, necessitava fazer sua, embora em seus próprios termos, a cultura dos
colonizadores. Seus primeiros modelos foram El
Lazarillo de Tormes e Dickens. O espanhol do Lazarillo era referência dos conquistadores e dos cronistas das
Índias: mas o olhar e a escrita de Lázaro, de seu autor anônimo, eram uma lição
de claridade e de irreverência que desmentia os palavreados imperiais e
ensinava a contar as coisas tal como são, à luz fria e desenganada da verdade.
E
o ofício narrativo que havia servido a Dickens para mostrar o por dentro do tecido
das vidas inglesas e o funcionamento social na época do grande empenho imperial
podia ser usado para contar o outro mundo, o da experiência distante dos colonizados
em sua ilha perdida no Caribe. V. S. Naipaul, em Uma casa para o Sr. Biswas, se apoderou da forma clássica do romance
de Dickens com a mesma ambição e o mesmo descaro com que seu coetâneo caribenho
Derek Walcoltt fez sua tradição igual à sacralizada do grande poema épico. O marginal
cheio de talento toma por assalto a cidadela do intocável como o que esgueira à
noite num museu, e faz dele e ao mesmo tempo contemporâneo, o devolve da arqueologia
da vida.
Sem nada
mais a alcançar na arte do romance clássico V. S. Naipaul abjurou dele. Tateou outras
formas mais fragmentárias da ficção que se corresponderam com as vidas de desenraizamento
e deslocamento que queria contar. Considerou que a ficção não lhe bastava e
tomou outro gênero clássico da literatura colonial, o relato de viagens, e deu à
volta para contar com urgência e com uma clareza corrosiva como a do Lazarillo histórias que já não podiam
ser abarcadas dentro dos limites do romance. Dava igual gênero: o que importava
era a precisão da escrita e a agudeza do olhar e do ouvido. Ninguém, que eu
saiba, chegou tão longe nestes tempos como V. S. Naipaul em converter a transparência
em estilo; numa época de veleidades expressivas, de brilhos irresponsáveis de
palavraria, ninguém cultivou de igual maneira que ele a prosa como uma forma de
conhecimento.
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