Na outra margem, o leviatã, de Cristhiano Aguiar
Por Pedro Fernandes
Na outra margem, o leviatã é um livro de contos de Cristhiano Aguiar, o primeiro depois de o escritor aparecer
incluído na lista da Granta em 2012 –
uma antologia que preteriu reunir, como foi caso em várias outras literaturas,
os principais nomes que angariariam um futuro na literatura brasileira. Aliás,
a condição profética da revista só se sustenta graças ao respaldo adquirido a
partir das listas anteriores; foi de uma delas, que saiu um ganhador do
Prêmio Nobel de Literatura, em 2017, Kazuo Ishiguro. Não que os escritores
eleitos – e nos referimos ao caso nacional – sejam duvidosos; mas é que no
território das criações artísticas o futuro é tão incerto que apostas dessa
natureza não deixam de carregar, como em toda lista do gênero, altas margens de
erro. Se os eleitos são ou não promissores não cabe aqui discutir; a menção ao caso
é apenas para apresentar ao leitor das expectativas que se guardam em torno do
nome do autor desta antologia.
O livro reúne
sete contos: “Miniatura”, “Recortes de Hannah”, “O laboratório do Senhor Mosch
Terpin”, “Os recém-nascidos”, “Teresa”, “Desaparecido” e “Leviatã”; deste
último, que encerra o livro é que provém o título que é o cordel que amarra num
feixe essas narrativas. Embora o que o leitor tenha em mãos seja mesmo um conjunto
de textos, que é este o primeiro sentido que nos chega ante a palavra feixe, não é possível apenas dizer que
está diante de uma reunião aleatória de objetos enfeixados por um título. Por
isso, preferimos antes o termo narrativa e
não texto, isto é, o tipo e não o objeto. Há aqui pelo menos duas razões para a
distinção aparentemente insustentável, pela sutileza que comportam os dois
termos e, claro, porque estamos mergulhados numa condição em que utilizamos as
terminologias sem se preocupar se elas afetam os sentidos mais autênticos do
que designam; permanecer neste gesto seria corroborar com o que não se deve corroborar.
A primeira razão
é meramente formal. Não se constitui num estilo que se diga próprio do contista,
porque é uma recorrência desde há muito entre outros escritores. Forma, aliás,
que tem servido para em diversos casos pensar o texto não como conto, mas como
novela. Grande parte dos contos de Na
outra margem, o leviatã não foram construídos da forma simples que conhecemos,
que corresponde um enredo ou uma situação que determina o todo do texto. Cristhiano
Aguiar prefere a fragmentação, como se copiasse um plano cinematográfico para
seus contos; não é apenas a ideia de fragmentar e atribuir ao fragmento um
título como se o que narrasse em cada passagem constituísse um texto à parte ou
uma sequência narrativa. Cada nova passagem imprime na narrativa principal um
elemento novo e por vezes distinto do texto primeiro como se quisesse nos oferecer
uma totalidade da situação narrada.
Não dá para
deixar de compreender esse tratamento formal sem considerar as interferências
do texto cinematográfico; o enredo se constitui por um conjunto diverso de cenas
e situações, deixando livre a tessitura da narrativa principal como se as
relações fossem uma atividade de responsabilidade do leitor. Em “Miniatura”,
por exemplo, reúne-se um conjunto de quatro pequenas narrativas que têm em comum
como o cotidiano pode e é continuamente invadido pelo acaso e este um produto
de pequenas situações pelas quais sempre acreditamos, erroneamente, que
passamos ilesos. Quer dizer, apesar de o contista se referir ao cotidiano das
suas personagens, o que melhor o aproxima da condição de um cronista, o sujeito
sensível observador do seu entorno, não elege para suas narrativas figuras que,
na ausência de outro termo, designamos como comuns. As situações são triviais,
mas o modo de vê-las não. Assim, as personagens de “Miniatura” estão continuamente
invadidas por outras maneiras de ver e sentir o seu redor: a personagem que, de
uma hora para outra, se percebe envolvida pela melodia de um piano num silêncio
do domingo e que ecoa de qualquer parte aparentemente apenas nos seus ouvidos; a
ausência que se revela na presença de alguém cuja imagem reacende uma variedade
de situações que se misturam ou mesmo se interpõem à situação presente da
personagem; a obsessão de uma personagem que de num olhar de relance descobre
uma rachadura no espelho do elevador do prédio onde mora; ou a percepção da ordem
e da desordem na organização das coisas a partir de uma imagem solta no jornal
que reitera a organização do sistema solar, aparentemente incomum à rotina da personagem,
ainda que ela se perceba o centro de controle do seu próprio sistema.
Os exemplos
poderiam se estender sobre a forma recorrendo aos outros contos, mas isso não
só cansaria o leitor como reduziria seu apetite de curiosidade por Na outra margem, o leviatã. Mas, permita-nos
apenas um só exemplo mais, porque neste caso a fragmentação não é enunciada.
Isto é, as narrativas que formam o que aqui estamos chamando de conto, aparecem
designadas por um título. Não é o caso de “Recortes de Hannah”. Claro, como “Miniaturas”,
o texto induz o leitor para sua forma – recortes
insinua uma reunião de fragmentos. Mas, a fragmentação aqui não é nomeada.
Desta vez, oito pequenas narrativas desenvolvidas a partir de um centro – a pane
no elevador que deixam presos Lucas e Lina. O que poderia significar a
narrativa sobre um encontro de estranhos numa situação, apesar de recorrente,
sempre inesperada, toma outra proporção. Da mesma maneira, aliás, que somos levados
a descobrir, tão aparece o nome da personagem feminina que os tais recortes não
são de uma personagem, mas do edifício onde se situa as narrativas do conto. Assim,
o narrador oferece uma vai-e-vem temporal (ao presente somam-se o passado e o
futuro das duas personagens) que ora aproximam ora distanciam Lina e Lucas –
embora apenas o leitor tenha acesso a esse movimento, visto que, no plano em si
da narrativa o que circula são perguntas triviais sobre o que faziam os dois antes
do momento do acidente.
Depois, e
agora falamos sobre a segunda razão, as recorrências de personagens e lugares
que não deixam de causar no leitor ao menos dois estranhamentos: estaremos
mesmo diante de um conjunto de textos? Se não, como determinar uma linearidade
para os múltiplos episódios – é possível fazer combinações de narrativas? A
resposta para a primeira questão poder ter dois rumos a depender do ponto de vista
que adotemos para explicá-la. À segunda, respondemos com um enfático não. A indeterminação temporal
é talvez o principal fator das histórias reunidas em Na outra margem, o leviatã, o
que de alguma maneira lhe atribui a ideia um tanto recorrente na literatura
contemporânea, sobretudo a de cariz urbano como a de Cristhiano Aguiar, de universalidade
dos acontecimentos.
Voltemos
então à primeira pergunta para respondê-la: primeiro pelo sim e depois pelo não.
As narrativas de Na outra margem, o
leviatã são episódios figurativos em torno do mesmo ciclo de personagens,
os moradores / frequentadores do Hannah, o edifício onde se passa o episódio central
de “Recortes de Hannah”, quando não, a atmosfera é uma só, a de São Paulo entrevista
não por seus habitantes naturais mas por seus habitantes migrantes, os que
foram para a cidade para encontrar melhores formas de sobrevivência. Dessa
maneira, a cidade se constitui o leviatã e as personagens não integradas
totalmente ao espaço urbano são as que estão em luta por sobreviverem a ele.
A antologia se constitui assim num mosaico em que variados tons são as variadas
situações a que estão submetidas as personagens. Quer dizer os textos neste conjunto
funcionam como vasos comunicantes e o resultado é um hipertexto.
Ao optarmos
por compreender que neste conjunto de textos não se operam relações de qualquer
tipo do plano do narratológico, isto é, que estamos apenas diante de uma reunião
de textos que estabelecem recorrência apenas no plano formal – são contos – então
precisaremos considerar que os nomes das personagens são apenas recorrências
sintagmáticas e não estamos, portanto, diante das mesmas personas. Tem valor aqui a ideia de, se mudam os planos e as
situações também se mudam quem as vivenciam. A resposta tem seu fundamento
porque, se considerarmos como elemento crucial para as situações relatadas nos contos
de Na outra margem, o leviatã, a
ideia de universalidade, tudo então que se relata pode até manter correlações mas
estas se estabelecem não no plano interno, mas externo às narrativas. Outra
razão de sentido é que essa consideração não despreza o valor que define o macrotexto.
Mas, sem
estender mais os raciocínios que só se colocam possíveis porque estamos diante
de um livro que de alguma maneira preserva sua singularidade, inclusive, no
trabalho de ampliar de alguma maneira as fronteiras do conto, é preciso deixar
que o leitor encontre estes e outros caminhos a partir da leitura do livro de Cristhiano
Aguiar. E, se há algo que não pode passar despercebido, porque tem grande valor
aqui e está muito à frente disso que discutimos en passant, é a humildade com que o contista se mostra ao reconhecer
uma das linhas principais da nossa literatura e a ela se integrar. Qualquer escritor
precisa se desapegar dos modismos tão frequentes entre a nova geração da qual Cristhiano
Aguiar faz parte para reconhecer as raízes nossas na literatura latino-americana.
Não é possível que depois de tantos descolonialismos e do trabalho criativo de
tantos grandes nomes da nossa literatura ainda queiramos insistir na subjugação
ao europeísmo ou ao que nos é imposto pela literatura estadunidense, que são modelos
que pouco ou nada nos dizem sobre uma renovação de nosso universo criativo.
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