José Saramago, o ano de 1998

Por Pedro Fernandes





A aparição destes diários de José Saramago é um acontecimento que guarda relações muito estreitas com um elemento recorrente na sua ficção: o acaso. É o acaso que abre o terror da barbárie em Ensaio sobre a cegueira; é o acaso que coloca em cheque a mesmidade política em Ensaio sobre a lucidez; é o acaso que faz um homem sair à procura de sua própria identidade em O homem duplicado; ou à procura da identidade do outro em Todos os nomes; e os exemplos poderiam se multiplicar. O acaso é um agente de transformação, claro está. Mas, na obra do escritor português, esse transformar só é possível se pela ação humana; sem ela, o acaso é só o acaso.

Foi o acaso que ofereceu a oportunidade de se encontrar um diário que nunca teria fim se as obrigações e o tempo não fossem tão cruéis para com o diarista. É verdade que este último é cruel com todos, afinal não há existência por longa que seja, que não chegue ao fim. Aqui, bem poderia juntar a frase do próprio Saramago: “Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam”. Mas, não fosse a ação humana, neste caso de Pilar del Río e tantos outros envolvidos no processo de edição do Último caderno de Lanzarote, dificilmente os leitores teriam acesso a este material agora.

Os tais cadernos começaram a existir desde quando Saramago foi viver em Lanzarote; nos anos de publicação de O evangelho segundo Jesus Cristo a ideia de ir viver nesta ilha das Canárias foi gestada e concretizada – em fevereiro de 1993, muda-se para A Casa, fato que coincidiu com o veto sofrido pelo Parlamento português sobre o designado polêmico livro que “ataca princípios que têm a ver com o património religioso dos cristãos e, portanto, longe de unir os Portugueses, desunia-os naquilo que é o seu património espiritual”, nas palavras da figura mentora da censura, o subsecretário de Estado da Cultura, Sousa Lara.

Desde então, acompanhamos o ritmo do escritor: seu dia-a-dia à volta com as situações do mundo chegadas aos seus sentidos pela mídia e pela correspondência com os vários amigos e colegas de profissão ao redor do mundo, o nascimento das ideias e a composição de alguns romances, certa visitação aos lugares da memória que sustentaram sua ficção, seus novos convívios na ilha, enfim, a contemplação, ora descritiva, ora dissertativa, ora narrativa da sua vida íntima, das suas inquietações. E isso só foi possível não graças ao distanciamento de Saramago do seu cotidiano mais português – ou mesmo ao que poderíamos aventurar chamar de desenraizamento ou conformação do pensamento insular. Mas, graças ao espírito desassossegado de um escritor que não pensou outra coisa de sua escrita como um gesto político de intervenção, se não nas realidades obtusas, nas consciências dos seus leitores.

A revelação da intimidade do escritor deixará triste qualquer leitor afoito pela intriga e pela fofoca porque Saramago pouco atenta para o comezinho individual ou familiar – no corpo dos cadernos o que se encontra é muito mais a extensão do grande cronista que foi desde sempre. Quer dizer, o que se conta é o que de alguma maneira se relaciona com o seu projeto ético e com a iluminação de determinados aspectos sobre sua escrita. E é válido citar toda a trajetória, da concepção à recepção, de obras como Ensaio sobre a cegueira, Todos os nomes, entre outras.

Assim, a oportunidade de entrar outra vez nesse catálogo de dizeres para a vida, a esta altura, é um presente dos mais valiosos; é a reaparição da voz sentenciosa, ácida, desassossegada – como quem escreve de além-vida para nos mostrar ainda umas quantas coisas que restou dizer porque necessárias. De maneira que os espíritos mais ansiosos não deixarão de, na primeira oportunidade, se envolver outra vez com a voz de um escritor que, propositalmente, quis apagar as distâncias determinadas pelos aparelhos teóricos entre a pessoa cívica e a pessoa narrativa, para, ora se fazer mais próximo de nós, ora nos parecer o mais verdadeiro e mais sincero dos contadores de história, primado básico da arte de narrativa perseguido desde Aristóteles e Platão e renovado pelo princípio saramaguiano de narrar.

Olha o grau de valia da subversão narrativa proposta por Saramago: quando noticiada a aparição deste Último caderno foi comum lermos (e ouvir, para os mais envolvidos com o universo literário do escritor) que poderia se tratar de uns quantos rabiscos manipulados por gente interessada em prover lucro sobre a memória do autor; num arquivo eletrônico se permite tais manipulações, diziam os néscios. O estilo inconfundível, mas também a maneira de perceber as coisas e, claro, o estiolamento dos distanciamentos entre a figura manifestada na narrativa e a figura cívica, permite afastar qualquer tipo de acusação vergonhosa, infundada e precipitada como as que se verificou desde então. É um legítimo Saramago o que se encontra nas páginas deste diário. Em tudo. 

É novamente o Saramago desinteressado pelo pormenor íntimo e este só tornado revelado aquando fundamental aos tais princípios assentes nos cinco volumes anteriores e sobre os quais falávamos acima; é novamente o Saramago atento ao que está no seu entorno, solícito aos convites, engajado politicamente, interessado em questões sobre sua obra e sobre o que dizem sobre ela, o que se apresenta neste diário; diário que, voltamos a dizer, é apenas um modo de classificar os cadernos, mas que é outra coisa além disso, perseguindo outro dos gestos recorrentes na literatura saramaguiana – dilatar a ideia do que são os gêneros textuais e as formas literárias.

As interferências de ordem diversa, as atividades e viagens que se avolumam a partir da recepção do Prêmio Nobel de Literatura – registrado aqui de maneira desinteressada e objetiva como “8 de outubro / Aeroporto de Frankfurt. Prémio Nobel. A hospedeira. Teresa Cruz. Entrevistas” – se revelam na impossibilidade de escrita do diário que passa então a ser preenchido apenas com as atividades do dia, passando a funcionar como se uma agenda de compromissos. Essa fragmentação da obra ao passo que revela o torvelinho que se tornou a vida do escritor pós-Nobel, revela ainda outras coisas, dentre elas, a maneira de composição dos diários. É notável que as anotações à maneira de agenda seriam posteriormente trabalhadas, tivesse o escritor o interesse e o tempo necessários, o que pressupõe a compreensão lógica – e para alguns, trivial – de que um diário, como texto nenhum, revela a inteireza das coisas, antes é um maneira diferente de olhar o mundo e revelá-lo. Mas, como todo texto é produto do labor com a escrita e não uma entidade favorecida pelo imperativo de uma ordem absoluta e regente dos dizeres.



Mas, sossegue o leitor que o volume de entradas que enunciam apenas as atividades de agenda do escritor não superam o conteúdo do caderno que se inicia em janeiro de 1998, com uma narrativa em que o próprio Saramago se compreende protagonista na salvação da vida de uma palmeira no seu jardim depois de padecer-se do sofrimento da planta a noite inteira pelos fortes ventos da ilha, e segue até alguns dias esparsos do ano seguinte, quando recupera um dos episódios mais emocionantes de As pequenas memórias: o de quando ganhou um balão, “o meu primeiro balão em todos os seis ou sete anos que levava de vida”, e tem toda sua alegria frustrada depois de percebê-lo furado enquanto “dois homens que vinham atrás de mim riam-se e apontavam-me com o dedo”. Episódios de arrancar lágrimas não faltam; Saramago sempre conseguiu revolver com muita maestria nossas emoções. Como não se emocionar com a maneira carinhosa com que acolhe as correspondências de alguns seus leitores que de alguma maneira contradizem a compreensão do escritor de que a literatura não modifica realidades? Ou rir-se com o registro de situações inusitadas contadas com o humor comedido do escritor?

Nesse intervalo de anotações, há intervenções de ordem diversa: as repercussões sobre sua obra fora de Portugal, país que ainda o avilta quando recorda do episódio da câmara de Mafra a recusar seu nome para uma escola; a morte de pessoas muito próximas, como a de sua primeira companheira, a pintora Hilda Reis, da escritora Maria Judite de Carvalho; os acasos literários e as correspondências com leitores de grupos e países variados; as questões políticas de seu país natal; as várias intervenções públicas sobre obras e personalidades diversas, como a que escreveu para os Cadernos de Literatura Brasileira sobre a amiga Lygia Fagundes Telles; textos para os jornais; questões políticas que o escritor envolveu-se prontamente, como o caso dos Chiapas, as críticas à igreja católica; as memórias sobre gente querida do escritor como José Donoso, sobre quem apresentou comunicação na Universidade de Santiago ou sobre Aquilino Ribeiro, Juan Cruz; palavras de amigos; entrevistas, como a famosa e inusitada para a edição brasileira da Playboy; os discursos nas cerimônias protocolares do Prêmio Nobel... Quer dizer, um catálogo diverso que nos coloca em relação com o olhar agudo de um escritor sempre capaz de ver tudo com outra mirada, esta que tanto nos falta em tempos de “pensamento zero”, usando os termos de Saramago numa das passagens neste caderno.

Apresentados como o último – e deve ser, afinal sobre este o escritor chegou a falar publicamente e por escrito sobre, mas não sobre outros – esse diário no ano do Prêmio Nobel inteira o fechamento de outro círculo na obra saramaguiana. O dos romances foi fechado com a publicação do que seria seu último título (e que agora figura como se um ensaio, para citar um gênero textual tão preferido de Saramago, ou um libelo), Alabardas, Alabardas, espingardas, espingardas. Porque não foi composto até a hora do fim, como o livro inacabado, o tom aqui não é o da rebeldia que irrompeu da consciência à escrita pelos enunciados vulcânicos de seu trabalho ficcional, sobre o qual atestam não apenas o fechamento de Alabardas, mas seu romance colocado entre os mais controversos e que de alguma maneira também foi seu último, Caim. O ciclo que se fecha com o Último caderno de Lanzarote inclui, além dos citados cinco volumes dos diários, do que também se tem como tal, os livros que reúnem as entradas de Saramago para um blog. Nestes dois títulos, chamados apenas de O caderno, estão o que reiteram de maneira ainda mais clara a natureza da comunicação exposta desde 1993: manter-se próximo dos seus leitores, estabelecer um diálogo com seu entorno e estabelecer leituras sobre o mundo e as pessoas que o conduzem.

Quer dizer, o fechamento desse ciclo de cadernos é também uma abertura, porque, afinal, o diálogo e as leituras sobre o mundo se já agora rareiam não devem ser em nenhuma hipótese apagadas. Se isso ocorre é então a aparição da miséria mais banal, a que coloca homens contra homens que passam a se relacionar pelas forças da barbárie. Sem debate e sem reflexão sobram o silenciamento, a inoperância, o preconceito, a penúria, o fascismo e a morte – palavras que representam o mais escuro de nós e contra as quais Saramago foi um incansável lutador. Os cadernos, e este último reafirma isso, são um demonstrativo sincero dessa conduta.

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