Contra o ensimesmamento: Montaigne e a escrita da leitura
Por Guilherme
Mazzafera
Salvador Dalí, ilustração para Ensaios, de Montaigne |
A palavra é
metade de quem fala, metade de quem a escuta. Este deve se preparar para
recebê-la, segundo o movimento que ela faz.
Montaigne, “Sobre a
experiência”
Meu encontro
com Montaigne se deu em circunstâncias precisas. A seleta d’Os ensaios
acumulava pó na estante há mil dias, comprada unicamente pelo encanto causado
pela leitura, na faculdade, do ensaio sobre “Os canibais”. Livros comprados
enfrentam sinas diversas: alguns são lidos antes de encontrar alojamento;
outros, maturam-se por anos de espera e resignação. Ao saber da morte de meu
avô, da iminência da viagem e dos dias difíceis que se seguiriam, coloquei-o na
mochila e parti rumo a Minas Gerais. Sua leitura incutiu-me um sabor pessoal de
descoberta.
Momentos
profundos de perda instilam uma necessidade estranha de tudo repensar, em uma
tênue linha contemplativa que avoeja da experiência íntima, individual da
morte, ao conforto (ou terror) de um feraz reencontro, como fato inelutável da condition
humaine. Diante do despropósito das ações humanas em face de força tão
avassaladora, a obra de Montaigne não constitui bálsamo, mas, antes, oferta uma
postura de vigilância contra qualquer veleidade ensimesmada que acabe por
esmaecer o exame honesto de seus atos e convicções. O conjunto de seus ensaios
constitui um prolongado memento mori que, em diálogo profundo com as vozes do
passado, encontra seu caminho pela expressão sincera e cuidadosa de uma verdade
pessoal que, mediada pelo critério da experiência, expõe-se como inédita
perspectiva autorizada: “Assim, leitor, sou eu mesmo a matéria de meu livro”.
*
Herdeiro da bona
fortuna deixada pelo avô, Michel Eyquem de Montaigne (1533-1592) foi homem
ativo e de importante atuação política, sendo prefeito de Bordeaux por dois
mandatos e tendo privado com alguns dos homens mais estimados de seu tempo,
pertencentes a espectros opostos das fratricidas guerras religião que então
empesteavam a França. Dono de um
espírito livre e antidogmático, em 1571 recolhe-se às suas terras para ler e
refletir, acabando por criar uma nova forma literária a fim de levar a cabo uma
esmiuçada prospecção da própria intimidade e experiência: o ensaio. Como moderado baixo contínuo, subjacente ao
gesto de procura que a forma ensaio esboça, há a percepção da originalidade de
sua empresa e, mais do que isso, de sua perfeita adequação à tarefa: “Ao menos
tenho essa regra de que nunca um homem tratou de assunto que compreendesse e
conhecesse melhor do que o faço com este que empreendi: e neste sou o homem
mais sábio em vida” (“Sobre o arrependimento”). Ao optar por tal recolhimento,
perturbado pelos clamores do mundo em algumas poucas ocasiões, e sedimentá-lo
em escrita, Montaigne poderia fatalmente produzir uma prosa ininteligível ou
ostensivamente egocêntrica, não mais interessante do que o mero exercício de
sua própria realização; no entanto, o cerne de sua escrita não é o do monólogo,
mas o do diálogo vivo.
Praticamente
confesso do otium studiosun, o ócio forjador da escrita de Montaigne é atravessado
por sua própria crítica. Eis o método: Montaigne parte de exemplos recolhidos
de um vasto conhecimento letrado, extraídos da tradição greco-romana, de
historiadores medievais e de eventos mais ou menos contemporâneos, cuja
exposição, feita em pinceladas breves e saborosas, mescla-se à entrada do dado
pessoal que, evitando a gratuidade, engasta seu conteúdo na determinação
individual e na móvil fixação da experiência. Mais do que apontar o porquê de
seu interesse no assunto, o componente íntimo aufere validade cotidiana ao que
poderia soar mero conhecimento livresco.
Aspecto fundamental de sua escrita é a fascinação profunda pelas coisas
do mundo, algo presente na opção por não hierarquizar formas de saber e conhecer
(“Não há desejo mais natural que o desejo de conhecimento. Ensaiamos todos os
meios que podem nos levar a ele”). Para ele, uma página de Plutarco e uma
conversa com o vizinho podem ter o mesmo poder de desvelamento do que nem
sempre está oculto, mas que apenas espera o olhar e o ouvido armados. Algo
semelhante se nota no seu desembaraço, ao comentar a importância dos sonhos, em
mover-se entre os referenciais do presente imediato (“vários em minha época”) e
aqueles sedimentados pela história: “Vi vários em minha época serem
fantasticamente agitados pelos sonhos. Téon, o filósofo, passeava sonhando, e o
criado de Péricles, em cima das próprias telhas e cumeeiras da casa.” (“Sobre a
experiência”).
Embora lance
mão de citações abundantes, sua presença funciona mais como pontos de
articulação do pensamento do que como reposição daquele velho vício de procurar
“mais a honra da citação do que a verdade do discurso” (“Sobre a experiência”). De modo mais preciso, talvez se possa pensar
que o ato de citar em Montaigne, longe de qualquer dimensão livresca – e poucos
autores rejeitam com tamanha veemência o air livresque –, revela o profundo
desejo e necessidade de nunca falar só, em que a experiência e a sedimentação
da escrita se gestam no sair de si, pela “frequentação do mundo” e seu retorno,
como todo bom romance de formação. Mais
do que argumento de autoridade, a citação, que compõe com o texto um todo
orgânico – daí o equívoco de edições que as destacam para fora do texto –, é o
fragmento do outro chamado a produzir nova síntese e que, no limite, impede a
tirania do eu sobre o texto, i.e., a emergência de uma subjetividade tão
desejosa de autoafirmar-se que acaba por ocupar todos os espaços. Em termos
livremente foucaultianos avant la lettre, Montaigne é o instaurador de uma
complexa matriz discursiva que não se deixa subjugar pela despotismo do autor.
Se o ócio é
condição produtiva e ponto de partida, o refreio da racionalidade não ostensiva
é fundamental, pois “Sem objetivo preciso, a alma se tresmalha” e, carecendo de
ancoragem precisa – e a escrita de Montaigne, que atravessa diletantemente
tempos e espaços, gesta-se em respeito à unidade de espaço em sua produção como
ele indica em “Sobre versos de Virgílio”, – acaba por “não estar em nenhum lugar” ao “estar em toda parte” (“Sobre a ociosidade”).
Seu crivo racional, por outro lado, não é o do raciocínio, mas o do julgar-se a
si mesmo, exteriorizando-se, pelo exame das “verdadeiras sensações”.
Para
entender melhor a perspectiva de Montaigne, é preciso indagar sobre seus
hábitos de leitura e o aproveitamento de tal material. Primeiramente, ele não
escreve com livros na mesa: “Quando escrevo, dispenso a companhia e a lembrança
dos livros: de medo que interrompam meu pensamento” (“Sobre versos de Virgílio”).
As leituras devem ser o combustível para a exploração de si mesmo, e não
propriamente o objeto dos ensaios. Como repositório de saber acumulado, é
sempre lícito a elas recorrer, mas sem deixar-se obsedar: “na verdade, os bons
autores me abatem demais e quebram meu ânimo” (Id.). Se não há dúvidas de que
Montaigne possuía seus autores favoritos e que os frequentava amiúde, como no
caso de Plutarco, que imagino todo anotado, seu modus operandi de leitura não é
o do fichamento acadêmico, que procura extrair todo o sumo do texto, mas o da
leitura diletante, um contínuo flanar por autores, páginas e assuntos,
recolhidos pela mesma lei que deve reger a vida do homem: “A gloriosa
obra-prima do homem é viver como convém” (“Sobre a experiência”). Vai neste
sentido a bela observação de Antoine Compagnon (2015, p. 59) sobre tal método
de leitura: “Montaigne [...] defendia uma leitura versátil, borboleteante,
distraída, uma leitura de capricho e de caça furtiva, pulando sem método de um
livro para outro, pegando aqui e ali aquilo que queria, sem se preocupar demais
com as obras das quais tomava emprestado para guarnecer seu próprio livro.
Este, Montaigne insiste, é produto do devaneio, não do cálculo.”
Quando opta
por lançar mão de suas leituras, Montaigne remete ao imbricamento semântico
presente no verbo cultivar, em que o lavrar a terra se mistura ao semear da
escrita: “Nos raciocínios, comparações e argumentos, se transplanto algum para
meu solo e misturo-o com os meus, propositalmente escondo seu autor. [...]
Quero que deem um piparote no nariz de Plutarco pelo meu nariz e inflamem-se
injuriando Sêneca em mim” (“Sobre os livros”). É escusado dizer que não há
qualquer sombra de plágio em tal atitude; há antes uma percepção não
personalista da cultura, que deve e pode ser fruída por todos. Alfabetizado em latim,
o trato com os clássicos de Roma é prata da casa, mas isso não implica qualquer
supervalorização de tais referências: pelo contrário, Montaigne sempre
desconfia da memória enquanto receptáculo do já fixado – “considero que a
verdade não é mais sábia por ser mais velha” (“Sobre a experiência”) –, pois
sabe que a natureza última do homem e o que o irmana aos seus semelhantes é sua
irrefreável propensão à mudança e à diferença, visada que encontra eco nos
poderosos decassílabos de um contemporâneo seu, Luís de Camões (1524-1580):
Mudam-se os
tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o
ser, muda-se a confiança:
Todo o mundo
é composto de mudança,
Tomando
sempre novas qualidades.
Tais versos
orquestram um interessante paradoxo, em que o conteúdo – a ubiquidade do novo –
é expresso em versos isométricos e, no caso dos dois primeiros, pela repetição
quádrupla de uma mesma estrutura sintática (Muda(m)-se) e que, em cada verso,
duplica-se pela cesura que parte o verso ao meio, com cinco sílabas poéticas
para cada oração. Se Camões fixa a mutabilidade, tornando-a fato presente e
verdade comum, Montaigne faz dela o próprio princípio constitutivo da forma literária
que inaugura. O ensaio, como pensa Adorno, não cumpre obrigação de tudo dizer
ou concluir; apenas finda quando termina de dizer o que se propunha,
produzindo-se, sempre, in medias res: “O ensaio reflete o que é amado e odiado,
em vez de conceber o espírito como numa criação a partir do nada, segundo o
modelo de uma irrestrita moral do trabalho. Felicidade e jogo lhe são
essenciais. Ele não começa como Adão e Eva, mas com aquilo sobre o que deseja
falar; diz o que a respeito lhe ocorre e termina onde sente ter chegado ao fim,
não onde nada mais resta a dizer: ocupa, desse modo, um lugar entre os
despropósitos.” (ADORNO, 2003, pp. 16-17)
Pensando com
Lukács, pode-se ver o ensaio como uma forma que permite a “exteriorização dos
temperamentos humanos”, algo que pode ser feito em escritos sobre arte, mas que
parece alcançar efeitos mais expressivos ao abdicar de tal mediação (da
literatura e da arte), dirigindo suas questões “diretamente à vida” (LUKÁCS,
2017). No caso de Montaigne, o gesto de endereçar perguntas à vida ela mesma
depende da construção de um estilo que possa apagar seu próprio rastro de
palavra: “Quero que as coisas dominem e encham a imaginação de quem escuta, de
tal modo que o ouvinte não tenha nenhuma lembrança das palavras” (“Sobre a
educação das crianças”). A própria percepção desse estilo é vista por ele em
imagens corpóreas, em que a linguagem “suculenta e nervosa, curta e concisa”
deve emular o “desleixo que se vê em nossa juventude no trajar de suas roupas”.
O anseio por uma linguagem descosida, dada aos ventos e ímpetos humanos,
articula-se como desdém pelas convenções e pelo gesto antinatural de emendar,
em falsa unidade, o que se expressa por si: “Não gosto de texturas em que as
junções e as costuras aparecem, assim como num belo corpo não devemos conseguir
contar os ossos e as veias” (Id.) Ao apelo falso do adorno, do artifício de
linguagem, Montaigne opõe a verdade essencial: “Mas a força e os nervos não se
emprestam”.
*
Após tais
observações sobre o mais pessoal dos escritores, cabe a pergunta: é possível
uma leitura pessoal de Montaigne? Pessoal além do mero recorte do que parece
interessante ao leitor, leitura sempre parcial que, talvez, acabaria por
realizar o impensável, a domesticação de uma prosa que não se deixa domar pela
ilusão autocrática do eu? Talvez o segredo de sua escrita – e um antídoto para
nós, modernos? – é a quebra profunda de qualquer sintoma do que entendemos hoje
por ansiedade. Partindo apenas das “verdadeiras sensações”, como quer
Montaigne, sem recorrer às autoridades médicas – que ele não tinha em alta
conta –, a ansiedade é uma emoção complexa, cujo cerne comporta o âmbito do
impreciso e do indeterminado, perante o qual o eu se julga indefeso, recorrendo
à interioridade intransigente que dificulta o engajamento com qualquer
interação externa, sobretudo as espontâneas, as mais capazes de romper o ciclo.
A concentração obsessiva no sintoma, que o aparta do resto, reforça o núcleo
ansioso, que se reproduz sem termo. Embora seja anacronismo apontar qualquer
propensão ansiosa em Montaigne, pode-se falar de uma outra modalidade de
isolamento que traz angústia e inquietude, próxima da melancolia ou da acédia,
“a depressão que atingia os monges na hora da sesta, a hora da tentação”
(COMPAGNON, 2015, p.47). Como já vimos,
a falta de objetivo preciso põe a alma a tresmalhar, “caracolando como um
cavalo em liberdade” (“Sobre a ociosidade”). Diante dos pensamentos absurdos,
quiméricos, alimentados pelo ócio, Montaigne opta por consigná-los por escrito,
“na esperança de, com o correr do tempo, lhe infundir vergonha”. A escrita dos Ensaios,
vem, portanto, de um anseio não tanto de ordem, mas de autodomínio. Como aponta
Compagnon, o recolhimento de Montaigne não tinha a escrita entre seu rol de
objetivos; o intuito era ler e refletir. A escrita, para ele, “foi inventada
como um remédio, ou seja, um modo de acalmar a angústia, de domar os demônios”
(COMPAGNON, 2015, p.47). A obtenção de tal autodomínio deriva, a meu ver, de
uma forma particular de encarar o tempo e a morte, formas ubíquas de ansiedade.
No primeiro
caso, Montaigne não parece acreditar em um necessário aprimoramento progressivo
do homem com o passar dos anos: “É possível que para os que empregam bem seu
tempo, o saber e a experiência cresçam com a vida, mas a vivacidade, a
presteza, a firmeza e outras qualidades bem mais nossas, mais importantes e
essenciais, fenecem e enlanguecem” (“Sobre a idade”). Mais do que isso, ele crê
que aos vinte anos uma alma já teria dado sinal de si, de sua força e promessa,
caso contrário, nada se poderia daí esperar. Dotado de uma alma já se crê
formada, mas que se examina com franqueza a cada meneio, Montaigne parece falar
sempre do presente, enquanto pervaga por tempos e espaços inumeráveis em sua
escrita. Parece ecoar aqui a expressão honesta de nosso Murilo Mendes,
justificando a constante reescrita de versos de outrora: “Não sou meu
sobrevivente e sim meu contemporâneo”. Mais precisamente, talvez se possa aproximar
esse gesto livre de escrita da concepção de tempo pensada por Santo Agostinho,
cujas Confissões se colocam como importante predecessor dos Ensaios em sua
observação atenta dos pequenos fatos cotidianos e das reações humanas a eles
que ajudam a compor uma personalidade sob constante escrutínio. Em sua obra, Agostinho
mantém a percepção triádica do tempo, mas reestruturada a partir do sentido do
presente:
[...] os
tempos são três, o presente do passado, o presente do presente e o presente do
futuro. Esses três, de fato, estão na alma, de alguma maneira, e não os vejo em
outro lugar: a memória presente do passado, a visão presente do presente, a
expectativa presente do futuro. (AGOSTINHO, 2017, p.320)
No entanto,
em Montaigne, pode-se dizer, há uma desconfiança da memória e uma dissolução da
expectativa enquanto incerteza: “Quem teme sofrer já sofre porque teme”.
É no embate
com a expectação e sua manifestação ultimada, a indesejada das gentes, que se
encontra um dos cernes vivos da pena do ensaísta. No ensaio de título mais que
sugestivo “Que filosofar é aprender a morrer”, em que ressoam ecos da tradição estoico-senequiana,
Montaigne adverte que é preciso pensar sobre a morte, trazê-la à meditação
diária para livrar-se de seus grilhões, que se fazem sentir na suavização
eufemística do irreparável: “Em vez de dizer ‘ele morreu’, dizem ‘ele parou de
viver, ou ‘ele viveu’. Consolam-se, contanto que seja vida, ainda que passada.”
Para tanto, “É preciso preparar-se para ela mais cedo [...] Tiremos-lhe a estranheza,
frequentemo-la, acostumemo-nos com ela, não tenhamos nada de tão presente na
cabeça como a morte”. Assim procedendo, evita-se seu especioso jugo, pois “Quem
aprendeu a morrer desaprendeu a se subjugar.” O que Montaigne parece desejar
aqui é o gozo da vida em todo seu fluxo, sem hierarquizações: “Quero que se
aja, que se prolonguem as atividades da vida, tanto quanto possível; e que a
morte me encontre plantando minhas couves, mas despreocupado com ela e ainda
mais com minha horta inacabada.” Os atos, posto que incompletos, não são menos
importantes que qualquer senso imaginado de completude, e a totalidade dos dias
não necessariamente excede a vivência plena de um único dia: “E se vivestes um
dia, vistes tudo: um dia é igual a todos os dias.” O fecho deste ensaio deixa claro sua visada
desveladora contra a mistificação que a morte imprime sobre as coisas do mundo:
“É preciso tirar a máscara tanto das coisas como das pessoas. Quando for
retirada, só encontraremos embaixo essa mesma morte pela qual um criado ou uma
camareira passaram ultimamente sem medo. Feliz a morte que não deixa tempo para
os aprestos de tal viagem.”
Porém, como
nota Compagnon, há nesse gesto o risco de nova servidão, em que a morte se
assenhora da vida ao tornar-se sua finalidade e objeto supremo do pensar (2015,
p.126). Como tudo em Montaigne, não há respostas definitivas. Em ensaio
posterior, “Da fisionomia”, ele repensa a eficácia dos preparativos para a
morte: “É certo que na maioria dos homens a preparação para a morte causa
maiores tormentos do que o instante fatídico”. Diante do irreparável, toda
precaução se balda, pois a natureza é incoercível: “Se não sabeis morrer, não
vos atormenteis; a natureza ensinar-vos-á no momento preciso de um modo
suficiente.” Neste novo meneio errático, ensaístico por excelência, o foco se
desloca do aprimoramento ou naturalização do morrer para um novo aprendizado,
diverso dos anteriores: “Se não soubemos viver, não adianta aprendermos a
morrer, e se o soubemos com calma e serenidade, também saberemos morrer do
mesmo modo.” (2016, p.969) Mas será este segundo olhar tão diferente do
anterior? Talvez, acrescentemos, tudo se resuma ao cultivo de uma bela horta,
sem a turvação da messe iminente: “A própria constância não é outra coisa além
de um movimento mais lânguido.” (“Sobre o arrependimento”)
O maior
risco a que a obra de Montaigne se sujeita, a meu ver, é o da apropriação
fragmentária em lições morais, pílulas de sabedoria encapsulada. Nada mais
errôneo. O veio vicejante em sua prosa não é o da catalogação de verdades úteis
e reaplicáveis, mas o da onipresença da dúvida sobre o mundo e sobre si mesmo, captada
pelo olhar armado capaz de contemplar a feição cambiante da experiência, sempre
insuficiente. O caráter inaudito de sua escrita – consciente e espontâneo – é,
em si, uma aceitação da vida; uma busca, pelas palavras, de coincidir consigo
mesmo. Sua consequência, imprevista talvez, é também outra: o inevitável e
ubíquo esbarrão com o leitor, son semblable, son frère.
Nota:
Vali-me arbitrariamente de duas traduções de Montaigne, indicadas nas
referências. Embora não tenha precisado as páginas das citações, sempre
indiquei os ensaios a que pertencem. Os títulos de ensaio começados por ‘de/da’
(“Da ociosidade”) são da tradução de Sergio Milliet; os que começam por ‘sobre’
(“Sobre a experiência”) são da pena tradutória de Rosa Freire D’Aguiar.
Referências:
ADORNO,
Theodor. O ensaio como forma. In: Notas de literatura. Tradução de Jorge de
Almeida. São Paulo: Editora 34, 2003.
AGOSTINHO,
Santo. Confissões. Tradução de Lorenzo Mammì. São Paulo: Companhia das Letras,
2017.
COMPAGNON,
Antoine. Uma temporada com Montaigne. Tradução de Rosemary Costhek Abilio. São
Paulo: WMF Martins Fontes, 2015.
LUKÁCS, Georg.
Sobre a forma e a essência do ensaio: carta a Leo Popper. In: As almas e as
formas: ensaios. Tradução de Rainer Patriota. Introdução de Judith Butler. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
MONTAIGNE,
Michel de. Os ensaios. Uma seleção. Organização de M. A. Screech. Tradução de
Rosa Freire D’Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios.
Edição Integral. Tradução e notas de Sérgio Milliet. Revisão técnica e notas
adicionais de Edson Querubini. Apresentação de Andre Scoralick. São Paulo:
Editora 34, 2016.
Comentários
A melhor releitura que já fiz
Parabéns pelo texto