As crônicas de Clarice Lispector


Por Pedro Fernandes



Boa parte das frases que circulam na internet atribuídas a Clarice Lispector é produto de um gênio capcioso que sem qualquer valor pela memória de quem quer que seja dá-se ao trabalho de falseamento dos dizeres. Na outra ponta repousam os que cegamente acreditam no falso e reproduzem ad infinitum a barbárie. Fora isso, a outra parte dessas frases são provenientes dos textos que a escritora publicou em jornais – ainda que tais excertos agora repousem entre as linhas de algum dos seus contos ou romances.

Se desde a aparição do mundo virtual Clarice Lispector tem sido vilipendiada pelos detratores, antes foi ela própria vítima de si mesma. A sua obra sempre foi um extenso canteiro e esteve, enquanto viveu, aberto à experimentação. E pela contínua atividade de refazimento dos textos terá introduzido modificações ao ponto de um texto original passar a ser outro, tornando o anterior, por vezes, falso texto, ou a escrita de outra que não Clarice.

O texto, para Clarice Lispector, é, como disse noutra ocasião, um continuum que mantém, em menor ou maior grau, aberturas para outros textos. Sua literatura é work in progress, isto é, formada pelo retrabalho até o limite da saturação do objeto e a impressão de matérias diversas na composição, ainda repetindo uma observação minha. Dito dessa maneira, o maior desafio de leitura da obra da escritora não é propriamente o texto, mas o estabelecimento das nervuras que o constitui.

É como se à entrada de uma obra fosse dado ao leitor a ponta de um fio capaz de lhe garantir alguma segurança para o labirinto que precisará enfrentar. Mas, curiosamente, quem oferece o fio é quem convida ao labirinto. Logo, o gesto de ajuda é falso. O fio é oriundo de um novelo cujo fim é indeterminável e a saída do labirinto torna-se, assim, uma impossibilidade.

Possivelmente, a mesma figura que nos deixou a ponta do cordel à entrada do labirinto terá sido capturada por sua própria armadilha. Isso porque se viu muito adiante, a escritora, impossibilitada de estabelecer uma atitude objetiva para sua obra ou mesmo pegando-se numa espécie de proposital repetição.

A mistura de coisas não é apenas uma operação para a reinvenção dos dizeres e consequentemente dos sentidos. É produzida pela imprecisão das vozes, de um esquecimento e uma retomada sem propósito dos dizeres, como quando voltamos ao mesmo tópico de uma conversa e já não percebemos que o que dizemos foi dito antes da mesma ou de outra maneira. Isso não tem nada a ver de acusar a escritora de má memória porque seria este um gesto sem propósitos, afinal repetir-se está em toda ordem que se constitua por mais de um elemento.

A mistura se dá ainda pela ruptura com as fronteiras estabelecidas para a definição dos lugares textuais. Assim, Clarice Lispector pecou reiteradas vezes dizendo que o texto pertencia a uma determinada forma quando pertencia a outra. Para citar um exemplo, basta lembrar do seu último livro. A hora da estrela foi uma obra insistentemente nomeada pela autora como uma novela, quando, em todos os efeitos responde às determinações de um romance.

No caso específico das crônicas, muitos são os textos que nasceram para ser crônica e depois formaram parte em contos ou narrativas numa obra maior. Para voltar ao mesmo texto no qual falei anteriormente, vale citar um pequeno esboço sobre as origens de Água viva, talvez sua obra mais emblemática pela impossibilidade de precisar os seus limites enquanto forma textual. Vários textos e-ou excertos foram publicados noutras ocasiões como crônicas e depois reapresentados como contos em A legião estrangeira, escritos que foram tratados por Clarice como “textos de fundo de gaveta”. Água viva é produto de um longo manuscrito cujo título inicial era “Objeto gritante”; o primeiro manuscrito data de 1971 e até dois anos depois ela retrabalha o texto ampliando procedimentos criativos experimentados como os que deram forma a Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, este nascido do contínuo refazer de textos para o jornal.

Se a obra de Clarice Lispector se afirma enquanto abertura, pode-se, já a esta altura, quando conseguimos visualizar o lugar principal de suas experimentações com a publicação do que é até o presente uma reunião de todas as crônicas, mudar o lugar do seu canteiro criativo. Não é mais a própria obra e sim as crônicas, ou melhor, nem estas, mas o jornal. É possível que a escritora tenha aceitado o convite para se aventurar pelos diários – paixão exercida ao longo de toda sua trajetória como escritora – com um propósito muito claro: construir experiências das mais variadas que poderá servir ao fazimento de seu projeto principal, a literatura.

Está no jornal obriga-lhe à produção contínua. O trabalho de imaginar, de criar, de prover novas situações e novos lugares da escrita. É notório isso quando lemos crônicas que não respondem em nada pelo que dizem ser: são entrevistas, cartas, contos, microcontos, conferência, textos de opinião, anotações críticas, fragmentos de ideias goradas e até poemas, seus (!) e de amigos. Crônicas, em grande parte, não. Por essa razão, ela própria desistiu da publicação de alguns textos, substituindo-os, para tomá-los parte num livro de contos ou num romance. Ou depois reescreveu com outro título, outras saídas para apresentá-los no mesmo jornal onde publicou pela primeira vez ou em outro; ou ainda, retrabalhou, mesmo depois de publicado em lugares diversos, para incluí-los em antologia de contos ou num romance.



Se o jogo das imprecisões não poupou nem quem se aventurou executá-lo, os leitores, mesmo os mais atentos, têm se engalfinhado e possivelmente continuaram a reinventar as fronteiras para o que naturalmente nasceu sem fronteiras. Assim, quando Benjamin Moser decidiu reunir todos os contos numa só edição – em parte tomado pela imprecisão tornada em impossibilidade e em parte por um certo modismo cafona que tem perdurado entre nós, o do ineditismo – acabou por incluir na antologia textos que eram crônicas. E, porque a edição com todas as crônicas organizada por Pedro Karp Vasquez preferiu – talvez pelo interesse de preservar certa unidade editorial da obra – caiu no mesmo laço: à medida que deixou de fora as crônicas tomadas como contos por Moser, preferiu não seguir o raciocínio do estadunidense e deixar aquelas crônicas que também poderiam ser tomadas como conto da mesma maneira que designou a escritora. Quer dizer, este dilema, acabou por restabelecer na prática um ditado segundo o qual por causa do erro de um os que vêm depois pagam. E os critérios de organização ficaram, assim, marcados pela inconsistência.

Embora os critérios de um escritor possam sempre ser questionados por especialistas, como é o caso da classificação de A hora da estrela como novela, em alguns casos o ideal é não os contradizer. No caso dos textos curtos de Clarice Lispector, ao que parece, esperava-se que os antologistas prezassem pela memória da escritora e considerassem sua opinião, principalmente porque foi extremamente zelosa com sua obra (basta a leitura do prefácio a Todas as crônicas, cujo registro na catalogação apresenta-se como Todos as crônicas, de Marina Colasanti para compreender isso). Mais que preservar as vírgulas, conforme rememora a amiga, que era o pedido mais urgente e de sempre da cronista, devia se preservar seu tratamento para com parte desta que é de longe a obra menor de Clarice.

Além do quê, a própria escritora tratou do refazimento dos lugares desses textos quando se percebeu incerta de suas determinações. O alisamento proposital dos especialistas, fere, portanto, a própria volatilidade da obra (uma de suas características principais), naquilo que ela definiu (e que Pedro Karp Vasquez recupera no seu posfácio), como “um modo carinhoso do inacabado, do malfeito, daquilo que desajeitadamente tenta um pequeno voo e cai sem graça no chão”. As aparas dos leitores atua lado a lado com o trabalho de fabricação de uma Clarice que só existe pelas mãos dos que a inventam. Ficará sempre a dúvida se a ocasião fosse outra se não teria restado maturidade para a adoção de critérios mais sérios que estes cujo zelo deixa-se prender pelo calor da hora e novamente, agora, do feitio que se quer inédito.

Em Todas as crônicas se cataloga mais de 120 textos que só agora ganham edição em livro; somados aos que já haviam sido publicados compõem o painel mais completo da produção literária de Clarice Lispector neste gênero, que começou no Jornal do Brasil, onde esteve por mais tempo, entre agosto de 1967 e dezembro de 1973. As publicações inéditas foram recolhidas de outros jornais, como A manhã, O jornal e Última hora e revistas como Joia, Senhor e Mais, muito embora tenha sido desta seara que Benjamin Moser compilou com conto parte dos textos. A antologia agora publicada, portanto, guarda um valor inestimável para os leitores: têm, agora, um único lugar onde podem encontrar mais inteiramente Clarice, seja porque se lê suas opiniões sobre assuntos diversos, incluindo sua contínua obsessão com uma maneira de escrever, seja porque podem encontrar alguns elementos com que concebeu suas mais geniais criações, seja ainda porque se poderá notar a escritora na sua intimidade. Ainda no mover-se das imprecisões, a leitura conjunta destas crônicas nos coloca como se diante de um diário de Clarice.

Não poderia deixar de dizer, mesmo porque este texto abre-se com a denúncia do desleixo de uma parte dos leitores para com a memória da escritora, que já é possível deitar fora a preguiça e a inoperância para a reprodução a esmo sem verificar a verdade das coisas (esta que pode ter várias faces, mas não se exime de nos oferecer uma coerência ou uma autenticidade sobre o que se diz) para alcançar autênticos ensimesmares à Clarice. Chamaria essa antologia de a bíblia para os incautos, por isso, indispensável em todas as casas. Por um trabalho desse fôlego, não há valor que pague.

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