Viajante
Por Rafael Kafka
Eduardo Arroyo |
Dedicado a
Larissa Oliveira
Traveler é
um dos personagens de Cortázar e da literatura em geral que mais me intrigam.
Temos algo em comum e talvez esse ponto de união seja o que me intriga tanto
nele: apesar do nome, Traveler é preso a Buenos Aires, assim como me sinto
preso a Belém. Duas cidades que viraram as costas para o rio, se prestarmos
atenção ao que dizem os moradores belenenses mais compenetrados e os narradores do
filme Medianeras. Traveler parece se
ressentir do amigo Horácio que sofre existencialmente em amores turvos com sua
Maga brincando pelas ruas de Paris e volta a Buenos Aires escorraçado. Traveler
é antítese: o sofrimento de não poder vagar diante do sofrimento de quem não
consegue se achar.
Semana
passada, eu me senti mais Traveler do que nunca. Quando me deparei com Larissa
no aeroporto, fiquei chocado em perceber a disparidade de duas pessoas com
idades consideravelmente distintas, eu quase nos trinta e ela recém-saída dos
vinte, com tão diferentes níveis de descoberta pelos mundos. Há sete anos,
tempo em que dialogo com Larissa nos felizes acasos das redes sociais, não saio
de meu estado. Nos últimos anos, passei a sair mais de Belém para visitar
cidades próximas e ter interessantes exercícios de convivência. Larissa com 22
anos de idade conhece vários países e tem uma formação acadêmica superior a
mim. Não sei até que ponto isso indica o grau de intelectualidade de alguém,
mas nela eu vejo como a determinação de alguém que nunca vai parar de estudar e
ampliar horizontes. Quanto a mim, às vezes sinto que ficaria feliz com grana
suficiente para o cinema e alunos a fim de debater n temas comigo.
Passei cinco
dias andando com Larissa e alguns amigos dela por minha cidade. Em geral, tenho
usado calor amazônico como uma desculpa para chegar em casa e passar longas
horas dormindo, lendo ou reclamando de tédio. Meu estado de espírito começou a
se sentir profundamente envelhecido, cansado e eu realmente sentia que meu
tempo de aventureiro talvez estivesse chegando ao fim, mesmo sem nunca ter me
aventurado de verdade por esse mundo imenso.
Senti-me
ansioso com a vinda dela. Meu emocional estava em frangalhos, meu sono
irregular, minha irritação em níveis exorbitantes. Mas eu precisava conhecer
minha amiga, precisava sentir esse resquício de poesia o qual descobri em 2011
e me remete a um tempo de minha vida em que nada conseguia parar meu gosto pela
arte. Eu me prometi que iria vê-la, me esforçar em ser um bom guia e depois
voltar à monotonia na qual estava afundado, lutando para não ser dominado por
ela, afogado por ela.
Mas quando a
vi, quando dei o aceno indicando onde estava, quando a abracei, senti um temor
profundo, pois sabia que enquanto estivesse perto dela eu viveria dias
poéticos, dias belos, dias existencialmente profundos. Mas e quando ela se
fosse? Olhei para ela feliz e apavorado. Tudo soava vazio demais, tudo soava
solitário demais e eu só queria me afundar em um local escuro no qual o
desespero se tornasse naquela dor confortável que nos faz virar mais máquinas
do que já somos.
Fomos à casa
de minha Ane, onde ela ficaria sua semana em Belém, e em menos de trinta
minutos, quando eu estava vendo um jogo de futebol na televisão, eu a vi pronta
para sair. Eu me sentia estranho, numa sensação de temor e tremor. Larissa
decididamente precisava de um guia em estado de espírito melhor do que o meu.
Por sorte, moro em Belém, cidade localizada naquele limiar entre a magia e a
realidade que sempre vejo nas obras amazônicas de Gabriel García Márquez.
Belém, cidade sufocante em diversos pontos, cidade cruel em seu processo de
exclusão, parece ter me carregado nas costas e com Larissa comecei a percorrer
suas ruas.
Quando
percebi, estávamos havia cinco horas andando pelo centro de minha cidade com
minha amiga completamente encantada por ela. Impossível não lembrar de Gilmar.
Em 2014, ele, que conheci em 2009, fez uma visita de dois dias aqui e no
segundo dia andamos por diversos dos pontos turísticos daqui. Lembro de como
fiquei tocado com sua empolgação pela cidade que a meus olhos parecia apenas
mais tolerável já que meses antes eu me mudara para o centro devido a problemas
familiares sérios.
Até mesmo o
almoço em um restaurante bem popular foi visto por ele como um elemento de
descoberta interessante. Lembro do encanto com a universidade e lembro da chuva
vindo em nossa direção enquanto, sentados no chalé de ferro, falávamos de
nossos anseios. Cinco anos, andamos juntos pelo Rio de Janeiro, comigo
deslocado sendo por ele e por seus amigos acolhido, como se não houvesse
amanhã, com uma despedida que muito doeu em mim, porque assim como com Larissa
agora eu sentia que minha vida cairia em uma rotina pesada de tédio e pobreza.
A memória
tem um funcionamento curioso. Enquanto Larissa olhava para a Praça da República
e enquanto seus pés cansados andavam, também como se não houvesse amanhã, eu lembrava
de Gilmar e de meu sentimento de medo tolo. Se algo incomoda, por que não
mudar? Por que não seguir os passos, por que simplesmente não ir até onde pés
aguentam? Larissa chegava em casa, tomava banho e dormia na cama ao lado,
enquanto eu demorava a pregar os olhos. Larissa se entregou a Belém naqueles
abraços intensos, eróticos, poderosos, de amor que duram horas, dias, mas pela
efemeridade se tornam eternos.
Andamos pelo
centro até acharmos um bar. Ali eu ouvi histórias suas que nunca imaginaria terem
ocorrido. Achamos um velho sebo e decidi que mandarei a ela, todo mês se
possível, alguma coisa legal lida por mim, como uma forma de nos mantermos
próximos. Dias depois de sua ida, leria Bob Dylan falando de um amigo o qual
ele ficou trinta anos sem ver, mas que sentia próximo a si toda vez que lia seu
nome. Enquanto andávamos naquele primeiro dia, único momento em que tive
Larissa mais para mim, eu comecei a sentir que a teria sempre ao meu lado
depois de sua volta. Algo em mim mudaria, não sabia ainda ao certo qual o tipo
de mudança.
Na semana
que ela e os amigos de seu estado, Mato Grosso do Sul, passaram aqui, precisei
conciliar trabalho em Ananindeua, cidade vizinha a Belém, e idas ao centro
desta última para acompanhá-la em seu desejo de desbravar a cidade. Meu cansaço
parecia sumir e comecei a me sentir bobo por em diversos outros momentos eu
usá-lo como desculpa para deixar de ir ver um filme ou tomar uma cerveja
contemplando o rio no Ver-o-Peso. De repente eu me via fazendo exatamente o que
deveria estar fazendo em meu discurso de ocupar a cidade, porém não fazia. O
hábito me vencera e foi preciso uma pessoa de outro espaço provocar em mim a
mesma náusea de outros períodos me mostrando que sou como Traveler, preso em
minha cidade.
Todavia,
circulando com Larissa ao meu lado eu senti na verdade que não sou preso a
minha cidade e sim a uma noção dela e como a personagem de Clarice a qual mata
um inseto para se sentir plena diante da realidade eu precise sentir o calor de
Belém, fora do meu cotidiano burocrático, para me sentir vivo. Quando eu sentia
querer me dominar pelo cansaço, via outras pessoas andando, eu a via andando,
indo a recantos de Belém aos quais geralmente não vou por estar cansado demais
de mim, do mundo, de tudo.
O ponto mais
épico de tudo isso foram os sons de vento em uma praia deserta ouvidos por nós,
cansados, andando, após mais de vinte horas sem sono, após uma festa de
resistência política, após andarmos pela cidade como se não houvesse amanhã.
Quando
Larissa foi embora, eu chorei. Não havia mais em mim o medo do primeiro dia, o
medo de recair na vida sem poesia. Havia em mim o desejo de ser sufocado por
beleza, de buscar no caos da realidade a beleza que Larissa me ensinou a ver.
No dia seguinte, procurando ônibus, pensava nos lugares pelos quais andava
agora sozinho e que andara com ela. Pensava em como a vida tem uma estranha
melancolia que nos obriga a sempre buscar mais das coisas. O temor e o tremor
disso leva muita gente a se prender em aparência. O meu me levou a querer aquele
abraço de novo, aquele gesto de carinho o qual sintetizava que de uma forma ou
outra eu deveria ser o perseguidor ainda.
Ao passar
pela porta de desembarque, Larissa me fez chorar, de saudade, de vontade de ser
diferente de tudo o que vinha sendo. Desde então, as músicas soam mais doces,
os filmes mais reveladores e os livros mais provocativos. Eu me pego mais
eufórico e com uma sede incrível de andar, andar como se não houvesse amanhã. E
em todos esses momentos, eu sinto Larissa aqui, ao meu lado, como sempre senti
Simone de Beauvoir e outros seres amorosos os quais me mostraram uma realidade
mais ampla do que o simples ganhar pão e acumular material.
Como Sal
Paradise pensa em Dean Moriarty, eu penso em Larissa Oliveira. Como o Traveler
de Cortázar, eu me angustio por ainda não conseguir sair de minha cidade, mas
sei que isso agora já não é mais tão distante, tão assustador. Larissa está bem
ali, esperando para devolver o abraço e eu sigo com essa insistente vontade de
me movimentar, de perseguir algo muito além de mim mesmo, que possui a beleza
singela de um abraço ou de uma lágrima de felicidade.
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