Vesuvio, de Zulmira Ribeiro Tavares

Por Pedro Fernandes



Qual o motivo da poesia? Esta pergunta junto a outra, aquela que ensaia um conceito sobre a poesia, deve se constituir uma das questões mais recorrentes no âmbito da Teoria da Literatura, campo do saber interessado em estabelecer compreensões acerca da arte manifestada pela escrita e logo da problematização e discussão sobre fenômenos que a determinam e a constituem. De alguma maneira, Vesuvio se prontifica a transformar essa questão-problema em expressão artística, ainda que não apareça assim designada em nenhuma parte do livro. Mas, se a questão não se apresenta tal e como, então como determinar que ela se constitui na preocupação principal da poeta?

Estas anotações sobre o livro de Zulmira Ribeiro Tavares tentarão responder não à primeira questão – porque ela pertence a um debate que não interessa por enquanto tomar partido – e sim à última. Evidentemente que essa tentativa não deixa de cumprir, certamente, em apresentar algumas inquietações com a mãe de todas as perguntas nesse contexto, o que é poesia. E adiantando em responder a esta velha senhora tentada a um conceito desde Platão e Aristóteles, agora, considerando a leitura de Vesuvio, isto é, aos olhos da poeta, o fenômeno poético se institui quando somos dados a reparar na língua e no mundo as contradições que o regem. O poema então se constitui enquanto o espaço textual de torná-las evidentes sem que nesse processo se materialize uma perda da contradição. Em grande parte, essa resposta serviu de norte criativo para a poeta que, além do livro agora apresentado estreou-se na poesia com Campos de dezembro, em 1955, e não deixou de oferecer ao leitor uma mostra sobre a versatilidade do escritor contemporâneo ao se dedicar ao ensaio, ao conto e ao romance. Assim, as considerações mais gerais aqui apresentadas podem garantir melhor significação para o trabalho de Zulmira com a poesia e por isso sua determinação a partir da sua obra poética.

A partir do título escolhido para a antologia que aparenta reunir outros sete projetos criativos da poeta – “Instalações”, “Ultraleve”, Figuras”, “Estações”, “Lírica canhota”, “Palco / encenações” e “Glosa” – e da leitura de alguns poemas, a obra conscientiza o leitor do blague para o qual ele é arrastado. O termo Vesuvio, preservado em sua grafia original, se por um lado sugere uma erupção, qual o vulcão que soterra Pompeia e suas cercanias, por outro, encinza os materiais que constituem o imaginário poético referido nesta obra, como se a poesia estivesse parte nos complexos jogos ideológicos favorecidos pela linguagem: revelar e velar o mundo. Quer dizer o termo quer abrigar uma dialética da destruição e da criação e, oferecendo-a como exercício fundamental ao trabalho do poeta na contemporaneidade. Para a poeta, o poema não é mais apenas produto de uma poiesis, isto é, a livre criação – ou, para não sermos redundantes, a criação – é determinada por procedimentos tão variados que reinstitui a mimesis, representação do que poderia ter sido.

O impasse entre destruição-criação se verifica, por exemplo, em poemas como “Desertificação”. Neste texto, a paisagem natural que uma literatura de corte realista se dedicaria a escaneá-la a fim de nos propor uma imagem autêntica do visto, é desconstruída pela poeta de maneira que o visto se interpõe à criação poética e se verifica enquanto o próprio poema. Nesse processo não se perde, entretanto, os elementos determinantes da paisagem, com o indício da forma: o poema é apresentado num só bloco em prosa. Metapoema, logo dirão uns. Sim, mas indispensável notar como o que se estabelece nesse processo de criação o traço da mimesis, como o poema se propõe a uma dialética entre o visto e o imaginado (ou somente a transmutação do visto pelo imaginado) e como o que se forma é o poema mas também outro visto. E este, por não se oferecer imagem única, logo se multiplicará à quantidade dos olhares que se dedicarem ao texto. Ao dizer isso, sobra uma pergunta – como, então, estabelecer relações diretas entre o que se enuncia e o que se verifica, entre o indício principal de leitura de um poema e seu texto, isto é, o que há de desertificação num poema em que a morte do cisne (com todas as implicâncias simbólicas que a imagem sugere) finda com o corte fantástico, um “peixe farto olhando-o de volta com suas pálpebras de homem pisca-pisca”, “empurrando os salgueiros para trás que correm no vento como escoteiros aturdidos”? Eis a materialização do efeito destruição-construção e do contraditório enquanto matéria do poema, ou melhor, enquanto poema.

Há ocasiões em que o contraditório se revela pela própria linguagem, como quando o poema ensaia naturalizar as expressões usadas comumente e que mesmo assim produzem de alguma maneira efeitos de estranhamento e a depender dos círculos pelos quais transitem ocupam a censura porque denunciam aos olhos do dominador uma inferioridade cultural dos seus usuários. Nesses casos, a poeta prefere inclusive uma transmutação do dizer na coisa representada, o que acentua aquele traço do fabuloso ou do fantástico assente em “Desertificação”. É o que acontece em “Jiboia”. A partir da expressão “jiboiar”, fazer a sesta em parte da digestão do almoço, o poema torna o humano em serpente ao ponto de o leitor não estabelecer distinções de uma ou de outra, digredindo a figura para representação e a fim de construir uma metáfora para o embate de classes, acentuando que este não se reduz apenas a uma disparidade econômica, mas também linguística; o poema revela como a linguagem popular, ainda que mais rica e colorida, finda por ser digerida pela linguagem do dominante – reabrindo as fronteiras da ideia de digestão.



Uma maneira ainda de sublinhar essa poética do impasse em Vesuvio vem de outro poema, um dos mais bonitos do livro. Chama-se “Surfista” e nele a poeta desconstrói toda a natureza do possível ante “o corpo pronto para fazer filhos” reduzido pela força feroz da própria natureza que o converte em “maré vazia”:

Tinha o corpo pronto para fazer filhos
e surfar à grande.
Não lhe guardei o nome. Era um homem

de ancas estreitas e ombros largos.
O seu peito arrostava os repelões do ar.
Não perdia o equilíbrio

e a musculatura o trazia
a um palmo acima da água.
Tanta força e destreza
Vinha-se do arcabouço exato.

Veloz, impunha respeito às gaivotas.
Elas não lhe batiam no crespo da cabeça
de caracóis duros como o das estátuas.

Era um homem feito
e sabia o quanto. Ele pensava

a sua descendência de ouro.
Esperma e espuma fosforesciam na noite.

O surfista corria pelo escuro do mar
sonhando novos obstáculos –
o olhar esperto e vigilante.

Golpeado por um impulso a contrapelo
– vagalhão sem lei –
a prancha partiu-se em dois
e os urubus lhe abriram espaço
no céu das gaivotas.

Da praia sua descendência se desata
no raso da vazante – maré vazia.

Mas, se Vesuvio se alimenta de poemas tão bem elaborados – formal e estruturalmente – como estes, apontando para um exercício poético que propõe ao leitor somente outra forma de ver, sobram os poemas cuja a posição é o limítrofe da natureza do poema, como é o caso dos poemas da primeira parte da antologia, incluindo o que aquele que lhe dá título. “Vesuvio” se apresenta, pela variabilidade de imagens e a impossibilidade de determinação de uma paisagem coerente. Os poemas de “Instalações” e o de “Glosa”, uma ressemantização de um poema de Ruy Belo, ao passo que acentuam a pluralidade desse livro, permitem-nos firmá-lo enquanto um catálogo de proposições poéticas. Vesuvio constata assim uma compreensão sobre o desfazimento do poema por seus motivos.

Desconsideramos que sua fragmentação se defina pela organização aleatória de um conjunto de poemas que antes de figurarem num livro integrou outras publicações esparsas. Isso porque a dispersão não se limita ao fazer poético de Vesuvio; ela se observa a partir de outras produções do gênero pela poeta, sobretudo seu projeto mais heterogêneo – Termos de comparação. Este livro publicado em 1974, reúne contos, ensaios e poemas; um complexo amálgama cujo interesse pareceu residir em demonstrar as fragilidades das fronteiras entre as formas literárias, quer dizer, outra maneira de questionar na prática as implicações da teorética.

O que se exibe em Vesuvio é o poema e suas entranhas. Por esta última razão, o contraditório, a fragmentação e a dispersão apresentados na sua inteireza conformam uma preocupação predominante da poeta. Como se numa visitação à sua poética, Zulmira Ribeiro Tavares rumina alguns dos seus poemas-conceitos como dois poemas singulares de Termos de comparação: “A criação: contradições 1” e “A criação: contradições 2”. Neste último, a poeta assim principia: “Faço do mundo um relato curto / pois que me acho pronto para um outro / espaço”. Naquele, diz, à maneira de “Jiboia”, mas ainda revelando as nervuras do impasse entre a figura e a representação: “Se estou no mato sem cachorro / Isto é força de expressão / Ou fato consumado”. 

O que se revela, por fim, é a desconstrução de determinados falseamentos. Porque encerrar-se em conceitos, o exercício contínuo da teoria é desobrigar-se da tentativa de compreender a variabilidade das forças e das formas. É evidente que a tarefa de se entregar à desordem não pode ser do espírito científico, por mais sagaz e desconstrutor que seja; para isso, existe a arte. Nesse âmbito da desconstrução, a obra poética de Zulmira é uma maneira de dizer o fundo falso da subjetividade enquanto determinação da poesia e do poema. Pode parecer repetição de vanguarda, mas não o é. Ao voltar-se para o mundo e suas aparências, seja a refletida pelas coisas, pelas formas e pela linguagem que os determinam sua poesia que nos dizer avesso delas. Essa maneira particular, entretanto, reveste-se do racional e da objetividade – um exercício possível apenas a partir da subjetividade, como sempre nos disseram. Eis o motivo da poesia da poeta paulista.


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