Truman Capote: a borboleta entre as flores
Por Manuel Vicent
Truman Capote. Foto: Slim Aarons |
“Tenho mais
ou menos a altura de uma escopeta e sou da mesma maneira estrepitoso”, assim se
descreveu Truman Capote e não acredito que exista uma definição mais certeira. Em
todo caso, tratava-se de uma escopeta que só disparava cartuchos de sal no
traseiro das celebridades nas festas loucas de Manhattan, onde a inteligência
frívola e mordaz era um dom muito apreciado. “Sou alcoólatra. Sou drogado. Sou
homossexual. Sou um gênio”. Vinha socialmente de muito baixo e talvez pensou que
chegaria ao topo seduzindo gente famosa com o gênio vingativo que brotava com
muita naturalidade de sua língua venenosa, mas houve um momento que descobriu o
rosto da verdadeira maldade e esta borboleta deu por terminado seu bailado
entre as flores.
Nasceu em Nova
Orleans em 1923 e a mãe, recém-divorciada e já um pouco metida no alcoolismo, cedeu o menino aos
cuidados dos avós e depois de uns primos de Monroeville, no Alabama, até o marido
de seu segundo casamento, um cubano chamado Joe Capote, o adotou, lhe deu o
sobrenome e o levou com sua mãe para Nova York, onde o adolescente descobriu muito
cedo que era diferente, bonito, pequeno e divertido e converteu cada um desses
adjetivos numa arma. A borboleta sobrevoou vários colégios, alguns religiosos e
outros militares, até conseguir graduar-se na Franklin School, um instituto privado
na West Side, em Manhattan.
Durante o último
curso já era ajudante de revisor no The
New Yorker. Aquele jovenzinho frágil e adorável carregou
a própria escopeta e começou a mandar contos para as revistas femininas Mademoiselle e Harper’s Bazaar, por onde passaram outros, como ele, que também foram
grandes. Tinha estilo. Amava as palavras bem colocadas. Ante a evidência de seu
talento a editora Random House pagou-lhe adiantado para que escrevesse um romance.
Tinha então 22 anos. Começou a escrever a obra durante as férias na residência
de verão para onde iam artistas, escritores e músicos, em Yaddo, no estado de
Nova York. Toda a memória tenebrosa de sua infância povoada de personagens
marginalizadas pela sorte veio então à superfície. Naquela residência de verão,
enquanto o jovem Capote atravessava uma memória pantanosa de um menino que se
descobre homossexual, apaixonou-se pelo catedrático de literatura Newton Arvin,
com quem conviveu uma longa temporada. O romance Outras vozes, outros lugares o levou a uma fama imediata. Foi sua
primeira forma de flagelar-se, um rito que não abandonaria nunca mais.
A necessidade
de fugir de si mesmo o impulsionou a viajar pela Europa; a necessidade de renunciar
ao próprio deslumbramento o forçava a voltar sempre às festas de Nova York para
queimar as asas junto à suas criaturas. Em sua explosão feliz dos anos cinquenta,
apesar de tantos golpes, um peso interior o mantinha sempre em pé como um boneco
de vento e naquela época não havia lugar da moda que não tivesse assimilado o
nome de Truman Capote. Com aquele que seria seu namorado oficial até o fim de seus
dias, Jack Dunphy, também escritor, extasiou-se entre os gerânios de Taormina,
nas festas de Roma, de Paris, na neve de Saint-Moritz, na Costa Azul, em Ischia
e Capri, em Positano , nos sujos almofadões de Tânger, sempre rodeado de
personagens despreocupadas, até alcançar outra vez o álcool e os barbitúricos.
A borboleta foi atraída também pela fascinação do cinema. Escreveu o roteiro de
Stazione Termini, que foi dirigido
por Vittorio de Sica. Fazia reportagens, crônicas de viagens e entrevistas com
os da alta sociedade. Sobrevoava todas as flores sem decepcionar nunca a quem
esperava dele uma saída capciosa e engenhosa. Com um talento chanfrado, como se
nunca houvesse deixado de desjejuar com diamantes Tiffany’s, seu estilo fluía com
a eufonia perfeita das palavras objetivas que iam se ondulando ao longa de cada
frase. Truman Capote parecia ignorar que debaixo de sua própria vida se encontravam
os podres da sociedade.
Um dia a
maldade veio ao seu encontro quando falava com um Martini na mão. No The New York Times leu que no Kansas uma
família de fazendeiros, os Clutter, havia sido assassinada com um estranho e metódico
satanismo. Capote deixou de lado o copo e recortou aquela notícia. Algo o sacudiu
por dentro. Acabaram-se as festas, o mundo deixava de ser divertido. Propôs à
revista The New Yorker escrever uma
história de folhetim com os pormenores do assassinato.
Como um correspondente
do inferno viajou ao Kansas com sua amiga Harper Lee e usando os recursos
literários da ficção descreveu todos os detalhes do crime, o ambiente, os policiais,
os vizinhos, os testemunhos e quando os assassinos, Dick Hickock e Perry Smith
foram presos, seu interesse por perscrutá-los a fundo se converteu numa obsessão.
Aquelas criaturas eram muito mais excitantes que as celebridades de Nova York e
agora estavam à disposição de seu talento. Truman Capote se refugiou com seu
namorado na Costa Brava, primeiro em Palamós e depois em Platja d’Aro, com intervalos
na Suíça, e ali a borboleta se converteu em lagarta para filar de novo este capítulo
de sangue.
Nesse momento já um drogado sem retorno. Havia
terminado a paródia da felicidade a qual havia se empenhado em representar com
seu próprio chicote. Agora tratava de salvar-se do iminente abismo mediante
aquela história. A publicação de A sangue
frio começou por capítulos em The New
Yorker e num ponto da trama a compaixão pelos assassinos e a necessidade de
êxito no romance entraram em colisão. Se Cristo ao invés de ser crucificado
tivesse sido condenado a doze anos de prisão e um dia o assunto tivesse carecido
de interesse não teria existido a Igreja. Necessitava que os assassinos fossem
levados ao patíbulo para que o romance pudesse se salvar. Durante as visitas havia
se apaixonado por um dos réus. Te amo, mas deverás morrer, para que eu triunfe como
escritor, pensou enquanto lhe dava um beijo na boca de despedida. Com este desejo
tão estético pôs em relevo que a maldade existe muitas vezes no fundo da
beleza.
Quando o par
de assassinos caiu no fosso com a corda no pescoço Capote estava ali entre os convidados
sem saber que também ele estava no corredor da morte. O romance A sangue frio foi um sucesso mundial. Para
celebrá-lo, o escritor obrigou todos os famosos de Nova York a vestirem-se de preto
e branco para assistir à festa que deu no Hotel Plaza. Ali aquele menino
desamparado de Nova Orleans chegou ao topo. Depois quis vingar-se de si mesmo e
de suas próprias criaturas. Tratou de continuar jogando para transformar em
alta literatura as fofocas com as quais se divertia, mas elas lhe deram as costas
e a mariposa começou a afundar-se no álcool e a sobrevoar toda sorte de comprimidos.
No fim, em agosto de 1984, aos 60 anos, em Los Angeles, a morte foi a última
das orações e já havia sido atendida.
Ligações a esta post:
>>> O show de Truman
* Este texto é uma tradução de Truman Capote: una mariposa entre las flores", publicado no jornal El País.
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