Quão livres devem ser os romancistas para imaginar vidas radicalmente diferentes?

Por Morgan Jones



Meu novo romance [The Good Sister, 2018] pode precisar de alguma justificação. Metade dele é narrada por Sofia, uma garota de 17 anos nascida no Cairo; eu sou um homem de 47 anos que nunca viveu fora do Reino Unido. Mais precisamente, a história começa com Sofia chegando à Síria para se juntar ao Estado Islâmico – uma vasta distância de qualquer experiência minha. No âmbito privado, perguntaram-me o que me dá o direito de contar esta história. Com o livro recém-lançado, espero ter de responder esta pergunta publicamente. É uma boa questão.

É uma questão problemática, debatida com compreensível ardor nos últimos anos. Um lado enxerga nela um ato presunçoso ou, pior, exploratório: aqueles acostumados a ter um público para suas histórias usurpam a experiência, cultura e identidade daqueles que nunca são ouvidos. Opor-se a isso é correto. Controle o passado e você controla o futuro, como nos conta Orwell; as estórias ficcionais que contamos nos moldam tão poderosamente como faz a história. Esta responsabilidade deve estar com os donos das estórias – não apenas porque é moralmente correto, mas também porque suas chances de serem ouvidos diminuem cada vez que alguém conta sua estória por eles. Como uma criança que nunca detém a palavra porque seus irmãos mais velhos falam por ela, eles são privados da chance de encontrar sua própria voz.

O lado oposto responde com uma lógica aparentemente irrefutável. Se um escritor pode escrever apenas sobre o que sabe, ele estará confinado a escrever sobre si mesmo, ou sobre sua experiência dos outros. Ele será impedido de imaginar o que é se tornar outro. Os limites se reduzem a quase nada, e a literatura morre: nenhuma Anna Kariênina, nenhuma Molly Bloom, nenhum Frankenstein. Jane Austen deveria ter se eximido de criar Darcy.

Se alguma extensão for permitida, quão longe ela pode ir, e quem decide? Meu último romance [The Searcher, 2016] centrou-se em um judeu nova-iorquino no final de seus 50 anos, rico, solteiro e vivendo em Londres. Eu não sou Isaac Hammer mais do que sou Sofia, mas minha vida é provavelmente um pouco mais próxima da dele, ao menos em aparência. Ninguém apontou essa lacuna. Então está certo? Posso escrever uma personagem feminina, desde que ela tenha uma experiência semelhante à minha? Um personagem gay? Posso subir uma classe, ou descer outra?  Essas categorias cambiantes são tão numerosas que o exercício rapidamente se torna ridículo.

Mas as duas posições se justificam. Os romancistas devem estender sua imaginação pelas vidas e mentes de outros. Ao mesmo tempo, é um processo invasivo que envolve um grau de apropriação. O escritor pega algo para seu uso, e para qualquer comunidade que sofreu longa deturpação representativa, isso não parecerá diverso dos mil furtos e degradações anteriormente ocorridos.

Os romancistas estão familiarizados com o contorno moral dessa relação com o mundo. O que criamos não é gerado a partir do nada; tudo que sai entrou em algum momento. Segue-se que quanto mais rico o que entra, melhores são as chances de ter por resultado um bom trabalho. É por isso que famílias e amigos acertadamente suspeitam de nós, e por que Graham Greene disse que não existe algo como um almoço tedioso, e sim apenas uma oportunidade de coletar material. Se estivermos fazendo isto certo, não simplesmente tomamos por empréstimo a experiência alheia, nós a sorvemos e a tornamos nossa. Nós roubamos.

Que os romancistas não estejam ao lado dos políticos e dos banqueiros na estima popular sugere que há um contrato em vigor, que o mundo reconhece o benefício como superior à intrusão. É por uma boa razão que a maioria das culturas aprecia seus romancistas (e que alguns governos os temem). Mas o recente debate sobre apropriação cultural sugere que, nas suas bordas, os termos do contrato não são mais claros ou razoáveis. O mundo mudou, antigas suposições não mais se sustentam e os romancistas, como todos os demais, precisam se mover com os tempos. Escrever ficção não dá direito a qualquer dispensa especial.

Então, há um caminho para navegar neste território pedregoso? Nas palavras de alguém que me desafiou neste ponto, por que eu pensei que era ok escrever este livro?

A primeira coisa a dizer é que a decisão não foi tomada imprudentemente. Em certo sentido, não foi nem mesmo tomada. Eu estava lendo sobre o EI para uma pesquisa geral, e gastei dias perambulando entre blogs e contas do Twitter de voluntários falantes de inglês. As estórias das mulheres eram as mais fascinantes. Enquanto os homens tendiam a escapar de algo que os afligia (vício, comportamento criminoso, doença mental) por meio de uma rude promessa de transformar suas vidas (com um carro, uma esposa, uma arma), as motivações das mulheres eram mais variadas e mais complexas. Muitas possuíam um veio de radicalismo impressionante, um arrazoado desgosto pelo Ocidente reforçado ostensivamente pelo horror da guerra na Síria e canalizado em um comprometimento genuíno para construir uma utopia islâmica, o califado. Algumas das mulheres jovens eram especialmente brilhantes, com futuros repletos de promessas convencionais. Como uma generalização abundante em exceções, os homens estavam perseguindo uma fantasia; as mulheres, um ideal.

Daquelas muitas vozes, uma começou a tomar forma em minha cabeça – certa e insegura ao mesmo tempo, zelosa, tão inteligente quanto ingênua. Como um exercício, comecei a registrá-la por escrito, o que eventualmente se tornaria a metade de Sofia neste livro. Qualquer questão sobre meu direito de escrevê-la me ocorreu apenas quando um primeiro rascunho estava completo.

Eu sabia que a história e sua expressão eram ambas tais como completamente imaginadas, e portanto tão responsáveis quanto pude realizá-las. A diferença entre um bom livro e outro ruim encontra-se com frequência em quão sensitivamente o escritor pode habitar o personagem. Eu queria entender Sofia, dar um relato verdadeiro de como ela passa a ver seus erros – e não explorar sua notoriedade.

Isto é importante, mas não crítico. Minhas intenções podem não ser relevantes para a questão política da apropriação; roubo bem-intencionado ainda é roubo. Mas há certas condições especiais que se aplicam. Ninguém estava escrevendo a história de Sofia e, crucialmente, parecia haver poucas chances de que alguém iria fazê-lo. Dezenas de livros de não ficção exploram o processo de radicalização, o estranho poder do EI, a realidade da vida no califado. Excelentes pesquisas têm sido conduzidas sobre as motivações que levam as mulheres a embarcar na jornada para a Síria. Relatos individuais das próprias mulheres foram confinados a reportagens – e mesmo isso era desigual, pois se elas conseguissem deixar o EI, viam-se frequentemente apresentadas a algemas, e não a contratos de publicação. (E desde o colapso do Estado Islâmico territorial, mulheres foram julgadas às centenas pelo governo iraquiano e quase que invariavelmente sentenciadas, após julgamentos meramente formais, a encarceramento prolongado ou morte.) Por um bom motivo, talvez, as Sofias do mundo não estariam contribuindo para a narrativa.

A história de Sofia, no entanto, vale a pena ser ouvida. Nós temos que pensar sobre ela. Não porque mudará nosso entendimento de história ou radicalização, mas porque ela poderá parecer um pouco menos alheia uma vez que a tenhamos escutado, e, assim, nos dizer algo sobre nós mesmos no processo.

A doença que ela enxerga no mundo é real, e sua rejeição a ela é uma rebelião adolescente – de grau extremado, mas de natureza semelhante. Em um painel de discussão que participei sobre o fenômeno das “esposas jihadi” [jihadi brides] (uma frase que ninguém presente gostou), alguém do público concluiu: é punk. E ao mesmo tempo que não estava de todo correto, não estava exatamente errado também. Sofia vai a Raqqa porque quer destruir o mundo e recompô-lo à sua imagem. Muitos de nós teremos sentido o mesmo, senão mais suavemente; muitos de nós com filhos adolescentes os veremos convulsionados por energias similares.

Quando comecei a escrever o livro, Sofia representava um mistério e um perigo que eu não estava apto a compreender. Quando terminei o rascunho final, eu havia aprendido que isso mais nos conectava do que separava. Minha esperança é a de que qualquer um que leia livro siga uma série similar de passos.

E é aí que reside a justificação, creio eu. A ficção continua o melhor meio que temos de encontrar conexão onde ela parece não existir; e o romance, em todas as suas formas, encoraja uma busca que é profunda e contínua. Ao ler (ou escrever) um, você viajou a outro lugar. Você se deslocou, ainda que tenuemente, em direção aos outros. Em um mundo que constata e cada vez mais explora a divisão e a diferença, este é um exercício inestimável, precioso.

Os escritores não devem abusar deste importante privilégio. Se forem começar muito longe de casa, é preciso seguir algumas regras. As minhas podem ser: faça-o com o mais generoso intento; tente escrevê-lo bem e por completo; e, sem um bom motivo, não pegue estórias que outros já estão contando.

Mas este privilégio precisa continuar possível. Impeça os escritores de escrever certas estórias e introduziremos a divisão em um processo que existe para rompê-la– e agora não é a hora certa.


* Tradução livre feita por Guilherme Mazzafera a partir de “How free should novelists be to imagine radically different lives”, The Guardian, 13 ago. 2018


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