O Estrangeiro, de Albert Camus
Por Pedro Belo Clara
O presente
trabalho, publicado em 1942, é considerado uma das obras-primas da literatura
francesa do século XX, e consequentemente aquela que consagrou o seu autor como
um dos principais desse século. Saída dos
prelos em plena Segunda Guerra Mundial, foi pela grande maioria da crítica
daquele país considerado "o melhor livro desde o Armistício", numa clara alusão
ao tratado pelo qual a Alemanha, no término na primeira grande guerra, assinou a
sua humilhante rendição. E o facto de um dos maiores vultos de sempre do
universo literário francófono, Jean-Paul Sartre, ter realizado sobre este autor
uma magistral (e deveras extensa) análise crítica, contribuindo assim para a
apresentação e divulgação do trabalho do mesmo junto do público americano, só
sublinha o que se acabou de afirmar.
Desprovido da intenção de revelar mais do que a este nível e com este propósito se pretende, pois o texto de hoje não terá maior ambição que introduzir e apresentar, podemos sem prejuízo para o conjunto da obra afirmar que uma das principais noções a reter será a seguinte: um homem desenquadrado da sociedade que o rodeia, decadente e capitulante, que ainda não descobriu em si o ímpeto da revolta, é, em diversos momentos, uma presa fácil dos seus costumes nunca questionados.
Torna-se uma árdua tarefa apagar a ideia de que a situação antes descrita apenas fomenta uma visão fútil de tudo e de todos. Ainda assim, essa parcela não deixa de suportar um carácter diferenciador, mesmo que algo encapotado, uma – arriscamos – virtude tão complexa de lidar por quem vegeta no sono dos iludidos, principalmente num mundo que expressamente rejeita e até castiga quem não cumpre as suas directivas pré-estipuladas.
O Estrangeiro pode, assim, ver visto como uma subtil crítica à sociedade que então subsistia, bem como aos indivíduos que a compunham: os seus hábitos dúbios, crenças aceites sem questionamento e comportamentos invertidos (entenda-se: um comportamento desfasado da vontade íntima).
Recordemos, a respeito do que se escreve, as seguintes palavras do próprio autor, inscritas no prefácio de uma edição universitária americana da presente obra:
Desprovido da intenção de revelar mais do que a este nível e com este propósito se pretende, pois o texto de hoje não terá maior ambição que introduzir e apresentar, podemos sem prejuízo para o conjunto da obra afirmar que uma das principais noções a reter será a seguinte: um homem desenquadrado da sociedade que o rodeia, decadente e capitulante, que ainda não descobriu em si o ímpeto da revolta, é, em diversos momentos, uma presa fácil dos seus costumes nunca questionados.
Torna-se uma árdua tarefa apagar a ideia de que a situação antes descrita apenas fomenta uma visão fútil de tudo e de todos. Ainda assim, essa parcela não deixa de suportar um carácter diferenciador, mesmo que algo encapotado, uma – arriscamos – virtude tão complexa de lidar por quem vegeta no sono dos iludidos, principalmente num mundo que expressamente rejeita e até castiga quem não cumpre as suas directivas pré-estipuladas.
O Estrangeiro pode, assim, ver visto como uma subtil crítica à sociedade que então subsistia, bem como aos indivíduos que a compunham: os seus hábitos dúbios, crenças aceites sem questionamento e comportamentos invertidos (entenda-se: um comportamento desfasado da vontade íntima).
Recordemos, a respeito do que se escreve, as seguintes palavras do próprio autor, inscritas no prefácio de uma edição universitária americana da presente obra:
"(…) o herói
do meu livro é condenado por não aceitar as regras do jogo que lhe impõem. E
nesse sentido é um estranho na sociedade em que vive, e erra, como um marginal,
nos desvãos da vida privada…"
Sem cair,
contudo, em excessos que alguns críticos poderiam classificar de obscenos,
digamos assim, propõe uma longa reflexão sobre a vida assumida por cada indivíduo,
mesmo aquele que se julga despido de escolha face às dobras do destino. Mas não
alonguemos muito o discurso sobre tal tópico, pois a divagação seria sem dúvida
o seu destino final.
Focada na
teoria do absurdo, onde tudo é tido por inútil e de vago sentido, deixa a obra ainda
transparecer um agonizante grito de liberdade, um grito que pretende atingir a vibração
ideal com o intuito de quebrar os tão estimados vitrais do enraizado pensamento
convencional.
Os olhos da
principal personagem são, efectivamente, os olhos de Camus. De visão algo
turva, embaciada por ocultas ideias e abafados sentires atormentados pelo
terrível calor de uma Argélia de espírito colonial, vai fermentando essa acidez
íntima com o desenrolar da sua história, desde a notícia da morte da mãe até à
condenação por homicídio voluntário. E é apenas aqui, no final da narrativa,
quando a personagem rejeita confessar-se a um simples padre, que o derradeiro
clímax é atingido (certamente, o mais significativo), onde a razão de todo o
transparecido marasmo (o calor, sempre o calor) e dessa atitude de desapego é
expressamente sublinhada.
Eis a derradeira conclusão, embora seja apenas
uma dentre várias: nada importa, realmente. De uma forma algo curiosa, é nesse
vazio exposto que a personagem, em seu cárcere, aguardando o dia da execução,
encontra a sua paz – pois sabe viver, finalmente, na liberdade do nada. É ao
expelir a sua imensa cólera contida e, posteriormente, ao saber-se vazio de
esperança, que a sua visão do mundo se aclareia e, assim, dele se sente coevo e
empático. Percebendo que o mundo não se importa com ele na condição de indivíduo,
este dele nada mais tem a esperar; despoja-se enfim de expectativas que, no
fundo, não passam de meras ilusões ocas e permite que um fraterno sentimento cresça
em seu âmago.
É igualmente interessante verificar como aqui facilmente se identifica a presença de uma certa união entre semelhantes através do sombrio universo da existência. Sabendo de antemão a verdade do mundo e da sua não continuidade, desenvolve-se a compaixão pelo próximo. Afinal, ambos estão juntos nesse barco que navega sem qualquer direcção ou destino, onde o único acontecimento garantido, mais cedo ou mais tarde, é o seu naufrágio – fatal metáfora para a morte, o grande nada. Dada essa certeza, o que se poderá anunciar veramente crucial? Aqui, a transcendência é finalmente alcançada.
Apesar de tudo, é obvio o carácter humanista adjacente à obra, entre laivos de existencialismo e de uma diluída sátira. E é a partir deste patamar que o mote à reflexão e à auto-avaliação conjunta se impõe (isto é, no sentido de indivíduo e sociedade). Ademais, acrescenta-se que tal ocorre sem que a narrativa se veja privada de um tom bastante próprio, corrido e seco, turvo até, como a visão da personagem alienada, o caldeirão onde ferve uma crescente revolta – notória, como subtilmente atrás revelámos, ao longo da obra – , e que a coloca, como Sartre tão bem considerou, ao justo nível de um conto de Voltaire.
É igualmente interessante verificar como aqui facilmente se identifica a presença de uma certa união entre semelhantes através do sombrio universo da existência. Sabendo de antemão a verdade do mundo e da sua não continuidade, desenvolve-se a compaixão pelo próximo. Afinal, ambos estão juntos nesse barco que navega sem qualquer direcção ou destino, onde o único acontecimento garantido, mais cedo ou mais tarde, é o seu naufrágio – fatal metáfora para a morte, o grande nada. Dada essa certeza, o que se poderá anunciar veramente crucial? Aqui, a transcendência é finalmente alcançada.
Apesar de tudo, é obvio o carácter humanista adjacente à obra, entre laivos de existencialismo e de uma diluída sátira. E é a partir deste patamar que o mote à reflexão e à auto-avaliação conjunta se impõe (isto é, no sentido de indivíduo e sociedade). Ademais, acrescenta-se que tal ocorre sem que a narrativa se veja privada de um tom bastante próprio, corrido e seco, turvo até, como a visão da personagem alienada, o caldeirão onde ferve uma crescente revolta – notória, como subtilmente atrás revelámos, ao longo da obra – , e que a coloca, como Sartre tão bem considerou, ao justo nível de um conto de Voltaire.
"Sentia-me
agora outra vez calmo. Estava estafado e deixei-me cair sobre a cama. Julgo que
dormi, pois acordei com estrelas sobre o rosto. Subiam até mim ruídos
campesinos. Aromas de noite, de terra e de sol refrescavam-me as têmporas. A
paz maravilhosa deste Verão adormecido entrava em mim como uma maré. (…) Como
se esta cólera me tivesse limpo do mal, esvaziado de esperança, diante desta
noite carregada de sinais e de estrelas, eu abria-me, pela primeira vez, à
terna indiferença do Mundo."
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